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“Ser juntos”, um novo ethos gestáltico

Rosane Lorena Granzotto

É chegado o momento, não temos mais o que esperar. Ouçamos o humano que habita em cada um de nós e clama pela nossa humanidade, pela nossa solidariedade, que teima em nos falar e nos fazer ver o outro que dá sentido e é a razão do nosso existir, sem o qual não somos e jamais seremos humanos na expressão da palavra.
Rubem Alves

I – Do paradigma individualista

Aprendemos e repetimos por muito tempo a famosa oração da Gestalt proferida por Perls (1969) para ilustrar a principal orientação da Gestalt-terapia em direção à autonomia dos sujeitos e a não submissão ao desejo do outro. De grande pertinência para a época pelas características das relações políticas, sociais e de gênero daquele momento histórico, também se fazia valer das teorias da neurose sejam psicanalíticas ou gestálticas, ambas leituras possíveis sobre os conflitos de poder entre o desejo individual e o desejo do outro, seja este outro uma pessoa, uma instituição ou uma ideologia.
Não é o caso exatamente de invalidar a mensagem poética de Perls, ela tem um valor e um lugar importantíssimo na construção de nossa autonomia, na equalização de direitos em nossas relações afetivas e sociais, e principalmente desconstrói a ideia de que precisamos ser como o outro deseja que sejamos para satisfazê-lo e vice-versa.
Porém não podemos deixar de considerar as implicações que um excesso de individualismo produz em todas as formas de relação social.
O nascimento e a priorização da noção de indivíduo, tributária da modernidade, se constitui em oposição à diversas realidades, à sociedade, ao Estado, aos demais indivíduos. A sociedade seria apenas um agrupamento de indivíduos com um único fim, qual seja, o de satisfazer ao máximo os interesses de cada um, o que se contrapõe à concepção de comunidade ou coletivismo, considerados como destrutivos à liberdade individual. A harmonia só seria possível se cada indivíduo pudesse se manifestar tal como é. Daí decorre o conceito de sujeito como central e o culto ao individualismo como paradigma moderno onde as concepções de self são descritas como estrutura intrapsíquica, imanente, um em si separado.
O tratamento fenomenológico dado por Paul Goodman (1951) ao conceito de self subverte esta lógica quando o descreve como um sistema de relações de campo desdobrado em funções compartilhadas como generalidade e apenas uma função individual, a função de ato (ego), que tem a criatividade como característica principal. Tal qual a consciência transcendental, o self é
[...] uma generalidade histórica em torno de dados materiais, os quais, a sua vez, abrem possibilidades e impossibilidades para aquela generalidade. [...] O advento de uma individualidade apenas se configura quando, diante das possibilidades, uma escolha é feita, uma fixação é estabelecida, uma consciência advém. [...] Considerando que essa temporalidade não pertence a um indivíduo, mas a um self
como campo, o ego ele próprio não pertence a um indivíduo, mas é o processo de constituição de uma individualidade num campo organismo/meio. (Müller-Granzotto & Müller-Granzotto, 2007, p. 201)
Porém, mesmo com este avanço filosófico, ainda encontramos na teoria gestáltica resquícios da centralidade no individualismo na ênfase dada à responsabilização sobre as próprias escolhas e atos e na construção da autonomia e auto suporte como objetivo da terapia.

II – Dos ditames pós-modernos

Tudo que despontou na modernidade alcança nos tempos atuais um patamar exacerbado. A pós-modernidade é esta continuidade acentuada do individualismo, da competitividade, do consumismo, da banalização, da busca desenfreada pela beleza e pelo prazer. O mundo virtual e as redes sociais favorecem este culto narcísico, autofágico, onde a alteridade não tem lugar. A diferença é cada vez mais substituída pelo mesmo e arrastada para o lugar da exclusão atendendo assim aos ditames da globalização, que, anulando as diferenças entre as pessoas e as tornando mais e mais idênticas acelera a velocidade da informação, a circulação do capital e das mercadorias (Han, 2017a). Associado a tudo isto está o capitalismo, que na sua versão mais radical e destrutiva, extrapola o sistema econômico se transformando em forma de vida, nivelando a todos como meros consumidores, homens mercadoria, descartáveis e substituíveis. Tudo se torna obsoleto muito rapidamente e precisamos fazer o descarte para em seguida substituir coisas e pessoas por uma novidade mais atraente, conforme os modelos sistematicamente criados e impostos pela mídia a serviço da ideologia capitalista.
Também os relacionamentos se tornam ambíguos, por um lado as pessoas se sentem ansiosas pela segurança do convívio e desejam se relacionar, por outro sentem medo e desconfiança a respeito da condição de estarem ligadas permanentemente. Moldados pela lógica consumista, os amantes buscam satisfação imediata e quando esta deixa de existir não há porque continuar, pois no ideal do prazer permanente não cabem sofrimentos (Bauman, 2003).
Nesta redução de tudo à mercadoria, as identidades também são embaladas para se tornar objeto de consumo se tornando perfis virtuais, imagens perfeitas de sucesso e felicidade. Esta coação expositiva vivida na virtualidade leva à alienação do próprio corpo, coisificado e otimizado, transformado em imagem, pronto para ser consumido por ninguéns (Han, 2017b). E assim nos alienamos mais e mais.
Porém tudo tem seu preço, e em meio ao excesso de demandas por produção e consumo, agora vivido como auto exigência, vemos o crescimento de um sofrimento político, reativo, sujeitos deprimidos e fracassados, angustiados por não conseguirem fazer tudo que poderiam, de não triunfar, culpando-se pelas derrotas e por sua própria incompetência. Em busca de uma realização muitas vezes impossível as pessoas escravizam a si mesmas. Nesta lógica perversa do neoliberalismo vemos sujeitos cada vez mais isolados e individualizados (Han, 2017a).
E estes são os sujeitos que nos procuram, paralisados, impotentes, ou em crise, banalizados e não raro destrutivos, criando os ajustamentos mais inusitados para dar conta de um mundo cada vez mais coercitivo, hostil e excludente.

III – Do mesmo ao “outro”

Me interrogo se uma atitude individualista e nada cooperativa do tipo se não houver coincidência não temos nada a fazer, seria uma orientação terapêutica suficiente
para os sujeitos contemporâneos lidarem com as inúmeras diferenças e transformações sociais, políticas, tecnológicas e relacionais que o tempo foi desdobrando a partir da metade do século passado. Buscar a coincidência para que haja relação exclui a diferença, impossibilita a relação, mata o desejo. Na presença do semelhante estamos sempre sendo surpreendidos pelo “outro”, pela novidade, e vamos em busca disto que é inalcançável, mas que se coloca sempre como um horizonte possível.
Vale lembrar que em sua filosofia da intersubjetividade, Merleau-Ponty (1964) nos diz que o próximo, enquanto outrem, é diferente de mim, não pode ser alcançado, havendo nele uma alteridade radical invisível para mim, “não há coincidência entre o vidente e o visível”, diz ele, “mas um empresta do outro, toma ou invade o outro, cruza-se com ele, está em quiasma com o outro” (1964, p. 235). Portanto, a percepção do outro é, ao mesmo tempo, familiaridade e estranhamento, identificação e diferença. Há entre eles múltiplas possibilidades de quiasma, mas jamais coincidência, nunca constituindo uma unidade de fato sem diferenças. A primeira sensação é o estranhamento, uma quebra do mesmo, um descentramento, um desvio, uma visão desnorteadora, um não continuísmo, e a partir daí se abre a possibilidade do deslocamento, da criação de uma intimidade “intersticial” (Bhabha, 2014), um espaço de comunalidade, uma realidade interpessoal, a parte comum entre “dois círculos quase concêntricos” (Merleau-Ponty, 1969, p. 195).
A teoria é um recurso renovável, e quando visitamos as teorias filosóficas e sociológicas contemporâneas, é inegável a constatação de que não existe outra realidade além daquela que construímos na relação social, e a ideia de construir é fundamental, isto está na definição de Goodman (1951) sobre contato, definido como o: “achar e fazer a solução vindoura” (p. 48). Somos ativos nesta construção, nosso corpo é atravessado por algo que é outro nos abrindo para possibilidades de criação de novas realidades e somos transformados por esta experiência.
Portanto estamos sendo desafiados a pensar uma forma de construção da autonomia que não precise excluir o outro. Isto implica em desenvolvermos uma consciência de que tudo o que escolhemos repercute na vida de nosso semelhante, de que vivemos num contexto ecológico de coexistência, um sistema de mútua dependência e de hetero suporte. Inclui estarmos atentos ao lugar da alteridade na nossa vida, seja ela o próximo ou o próprio planeta, entender que “achar e fazer a solução vindoura” (ibid.) não se refere apenas às minhas necessidades mas sim em ir para o mundo e existir juntos buscando encontrar nas diferenças os “entre lugares” criativos de Homi Bhabha (2014, p. 20), onde as coisas se juntam e se alteram, onde os elementos se influenciam mutuamente criando uma relação híbrida, introduzindo a invenção dentro da existência, dando início a novos signos de identidade. A passagem intersticial entre eu e o outro abre a possibilidade de um hibridismo que acolhe a diferença sem hierarquias ou julgamentos. Estabelece uma intimidade que questiona as divisões binárias abrindo espaço para a diversidade. Neste sentido avançar a fronteira, onde tudo começa a se fazer presente, se deparar com o outro e se haver com ele, é condição de possibilidade não só de crescimento, mas de convivência solidária (ibid.).
Na esteira de Franz Fanon (1986) que já dizia batalhar “pela criação de um mundo humano, um mundo de reconhecimento recíprocos” (p. 218), também nós clínicos gestálticos temos um lugar político a desempenhar nesta conjuntura sócio cultural em que vivemos, na direção de uma sensibilização à presença do outro, à alteridade sempre presente e provocadora de afetos e transformações. Nossa clínica se estabelece através de movimentos interacionistas e intersubjetivos, primamos pela emergência da alteridade, da porosidade dos corpos às afecções, às contaminações que o campo proporciona. Buscamos mais aquilo que define o humano como ser em relação do que aquilo que o
coloca sob o paradigma individualista que o endereça em parte para a autonomia mas também para uma auto responsabilização por tudo que o afeta, o que muitas vezes exclui a produção social do sofrimento.
Compreendemos que o que nos constitui como unidades temporais (históricas) são nossas experiências no campo relacional. A experiência é primeira, o contato é primeiro, a relação antecede o eu e o tu como “personalidades” que são registros verbais, simbólicos do vivido. Quando nos encastelamos no individualismo, cessa o crescimento, a rigidez neurótica se instala, as repetições, o mesmo; mas, até nos ajustamentos evitativos, tais como a introjeção, a retroflexão, etc, há a presença da interação relacional nos afetando como demandas de algo que não podemos dar. Como relações de campo os ajustamentos de qualquer natureza se realizam no laço social, por isso precisam do outro não só para se repetir como também para se transformar em contato fluido.
Ainda a respeito da presença do Outro na compreensão do nascimento da vida psíquica, ou desta espécie de sociabilidade antes de qualquer vida social, vale nos determos sobre as ideias do filósofo alemão Peter Sloterdijk, um fenomenólogo contemporâneo, cujo pensamento de caráter relacional vai ao encontro de outros pensadores pós-humanistas. Sloterdijk (2016) faz uma investigação a respeito do “sujeito antes do sujeito”, uma espécie de “arqueologia da intimidade”, uma ontogênese onde sempre somos Dois. O autor entende a subjetividade não mais como uma cápsula fechada sobre um indivíduo, mas, desde sempre, como um aparato de ressonância de dois polos que se inicia na vida intrauterina, e que buscamos repetir ao longo da vida construindo novas bolhas de ressonância. A história da subjetividade é, então, uma busca pela intimidade que constrói biunidades, numa tentativa de reestabelecer a ressonância inicial.
Vivemos, desta forma, em um campo de coexistência, em relação não apenas aos sistemas biológicos, mas também aos sistemas simbólicos e sociais. Em sua obra Esferas, uma trilogia que parte da análise das microesferas de intimidade interpessoal (Bolhas) às macro esferas da coexistência social (Globos e Espumas), Sloterdijk afirma que nesta grande esfera global em que coabitamos, os ajustes criativos terão que equalizar certas polaridades como por exemplo inclusão e exclusão, vulnerabilidades e superação, familiaridade e estranhamento, etc. O fracasso em lidar com estas ambiguidades se apresentará como falha em coexistir, dificuldade em habitar espaços de intimidade e de solidariedade. Surgem os sujeitos “singles” em bolhas que tendem a perder o poder de criar vínculos emocionais, sofrendo pela deterioração da solidariedade, confinados em sua solidão, deixando de ser participativos, vendo o mundo passar pela tela das mídias. (Ghiraldelli Jr., 2016)

IV - Um novo ethos

Para pensar um novo ethos para a clínica gestáltica que ultrapasse o paradigma individualista e psicologicista, herança da modernidade no discurso dos autores da abordagem, e que de alguma forma se perpetua na prática clínica e nos cursos de formação de gestalt-terapeutas, temos que caminhar na direção de uma concepção do humano como capaz de coexistir numa ética solidária, um ethos do “ser-junto”. Aqui mais uma vez tomo como referência o pensamento de Sloterdijk (2016), em sua investigação de uma ontologia do Dois, especificamente quando faz a passagem da facticidade do ser-aí para a relacionalidade do ser-junto, do estar-com-outro, redefinindo o paradigma existencial fundamentando a ideia de que a coexistência precede a existência.
Se o ser-aí é invariavelmente ser-juntos, não há ato ou espaço possível que não seja ato dialógico ou espaço comunicacional. [...] O ser-juntos fala não apenas da
essência coletiva do ser humano, mas também da determinante relação deste com sua técnica: não somos humanos que possuem técnica, somos humanos exatamente ao possuí-la. Assim, o ser-juntos diz respeito não apenas aos humanos, mas também às relações destes com os mundos que produzem. (Cespedes, 2018, p. 314, 315).
Este paradigma nos abre a questão sobre nossa posição na clínica. Não só em relação a uma concepção da produção do sofrimento mas também na leitura teórica e prática metodológica que desenvolvemos como clínicos. Afinal, esta é a nossa “técnica”, é assim que construímos mundos.
Podemos por exemplo, nos questionar se é possível conceber uma clínica que vise reconstruir um lugar social, uma clínica que não atribua todo sofrimento psíquico apenas ao sujeito, privatizando seus sentimentos, mas que parta da concepção de campo na produção deste sofrimento, ou seja, que entenda que o contexto social, econômico, afetivo, relacional e tudo mais que implica em existir em um determinado mundo são fatores predominantes na criação de vulnerabilidades.

V - Uma Clínica do Sofrimento Ético, Político e Antropológico

Chegamos então na Clínica do Sofrimento Ético, Político e Antropológico, enunciada por Perls e Goodman como a vulnerabilidade de uma das perspectivas da experiência intersubjetiva denominada de sistema self, a função personalidade, conjunto de construções históricas que constituem nossa humanidade social e compartilhada, dimensão antropológica de nosso existir.
Porém Perls e Goodman não nos deixaram mais que uma pista, não avançaram no desenvolvimento desta clínica, o que restou como tarefa nossa. Isto exigiu um aprofundamento do sentido e da abrangência da função personalidade e uma compreensão do que seria a interrupção da espontaneidade vivida como aflição, impotência e desespero, dialogando com a filosofia, a sociologia e a antropologia contemporâneas. Já sabíamos que não se tratava de inibições habituais próprias dos ajustamentos neuróticos, nem mesmo da ausência ou desarticulação dos excitamentos, vulnerabilidade esta encontrada nos ajustamentos psicóticos. A que se deveria então este sofrimento tão contundente que nos assola de imediato a partir da perda de um lugar social?
Trata-se de um sofrimento produzido pela falência social das experiências de contato que ocorre quando da emergência de contingências advindas de nossa condição humana de finitude, de habitantes de um planeta vivo e imersos em culturas permeadas pelas relações de poder e pela exclusão da diferença.
Nestes casos os dados de realidade tornam-se inacessíveis e a continuidade dos atos criativos se interrompem abruptamente. Esta vulnerabilidade está presente nas pessoas vítimas de violência familiar, urbana, racial e de gênero, nos excluídos da cadeia produtiva ou que trabalham na condição de escravos, nos que foram atingidos por uma tragédia natural, nos que foram acometidos de uma doença, naqueles excluídos das relações sociais por conta de preconceitos e conflitos ideológicos e nos sujeitos que são identificados a representações sociais indesejáveis como a loucura, a diferença, a minoria e a marginalidade. O sofrimento aqui é decorrente da não formação, da perda ou da aniquilação das representações sociais, identidades às quais se estava identificado e da impossibilidade de vivenciar o futuro que já estava prospectado (Müller-Granzotto & Müller-Granzotto, 2012a).
O sofrimento pode ser caracterizado como antropológico, político e ético dependendo de sua gênese. O sofrimento propriamente antropológico é o nome que damos ao sentimento que compartilhamos com outros sujeitos diante da finitude da
história, a aniquilação circunstancial da materialidade de nossos corpos funcionais, da perda de pessoas queridas, de nossos lugares de abrigo e identificação. O luto é sempre das possibilidades históricas que não temos mais.
Já o sofrimento de motivação política ocorre quando o desejo do outro se impõe às nossas representações sociais para assim dominá-las. Este é o caso das demandas por produtividade e consumo, desejos do outro capitalista que deixa os sujeitos submissos à determinadas identidades sócio históricas. É o poder exercido sobre os corpos, que Foucault (1979) denomina de biopoder. Suas reflexões são de extrema importância para compreendermos a gênese política do sofrimento. Estamos sujeitos à dispositivos micropolíticos de poder, estes são configurações históricas não intencionais de dominância recíprocas que geram uma estabilidade relativa, um assujeitamento. Resulta disso que o sujeito não é uma interioridade, mas um efeito destas configurações de poder. O jogo de dominação está nos corpos e nas práticas sociais, que são os modos de subjetivação, que acabam se tornando naturalizados e normatizados. Quando as demandas por sujeição se intensificam podem levar às crises neuróticas e às transgressões vividas como conflitos políticos e econômicos. Porém os conflitos são necessários para gerar uma diversidade. É nas rupturas seletivas de continuidade e descontinuidade históricas que a diversidade tem lugar.
O sofrimento de fundo ético se refere a exclusão arbitrária dos sujeitos do campo das representações sociais. É o que acontece nos estados de exceção, nos regimes autoritários, na exclusão social das formações psicóticas e interdição dos direitos civis do sujeito da psicose, nas segregações raciais e de gênero, na violência em regime carcerário, entre outros inúmeros exemplos que poderíamos citar (Müller-Granzotto & Müller-Granzotto, 2012a).


VI - Ajustamentos de Inclusão

Diante destas impossibilidades surge um novo ajustamento ao qual denominamos de ajustamento de inclusão. Trata-se de uma criação que tem relação com os apelos por gratuidade, por suporte, verdadeiros pedidos de ajuda por inclusão. Assim o semelhante é colocado no lugar de um corpo auxiliar, que pode se utilizar do que para si não está interditado para ajudar o sujeito excluído a resgatar um lugar social. Funda-se assim, a experiência da ajuda desinteressada, gratuita, e um tipo especial de identificação que é a solidariedade. À gratuidade deste ato, o sujeito sofredor responde com gratidão e a vida social alcança um patamar propriamente humano, onde cada qual é capaz de doar-se a outrem independentemente dos valores ou projetos políticos a que esteja ligado ou submetido (Müller-Granzotto & Müller-Granzotto, 2012b).
Sloterdijk se refere à solidariedade como uma “ética da generosidade”, que também se traduz em bravura, sentido de cuidado, capacidade de colocar a indignação em favor do que se quer preservar. “Dar mais que receber e fazer as coisas por doação e orgulho de cuidado é mais inteligente e natural para Sloterdijk” (Guiraldelli, 2016, p. 320).
VII - Clínica da Inclusão
Esta clínica se caracteriza pelo desvio da nossa atenção em direção àquilo que se manifesta como sentimento de exclusão, para o sofrimento expresso como desespero, impotência e aflição. É a clínica da escuta ao pedido de socorro ao qual somos conclamados e respondemos com suporte e acolhimento, acompanhando o processo de
reconstrução da autonomia e tomada de decisão que cada sujeito sofredor empreende face aos conflitos e dificuldades que esteja vivendo.
Temos a mais importante das ferramentas conceituais, nossa compreensão da experiência de subjetivação e dessubjetivação como uma função de campo. A partir daí entendemos a própria experiência clínica como uma experiência de campo de afetos, gestos e significados. Olhamos prioritariamente para a relação, para o vínculo. Trabalhamos na relação, criando e recriando realidades sociais, atuando politicamente. Trabalhamos com horizontes temporais que nos permitem construir no agora com um olhar prospectivo, sabendo que isto só é possível a partir de um fundo de passado que é permanentemente requisitado no presente. E é neste lugar, tão conhecido por nós gestalt-terapeutas, que vamos vivenciar aquilo que nos aflora espontaneamente frente aos ajustamentos de inclusão. A doação de nossos corpos para a criação de um novo oikos de ressonância que favoreça a inclusão do sujeito sofredor no mundo do reconhecimento social.
Iniciamos este processo acolhendo o sofrimento. Isto implica em uma atitude de aproximação, um disponibilizar-se a ouvir o outro, a dar crédito aos seus lamentos, a dar lugar ao sujeito sofredor. Essa é uma das atitudes de maior relevância ética, política e antropológica da intervenção nos ajustamentos de inclusão.
Ética por reconhecer a alteridade, acolher o semelhante em suas diferenças, seu sofrimento, mas também suas alegrias, suas formas singulares de sentir e agir na vida. É o cuidado que podemos dirigir àquilo que nos é outro. Política porque potencializamos protagonismos, acompanhamos as tomadas de decisão na reconstrução de identidades fragmentadas ou perdidas, o que também implica em um compromisso com a coletividade. Antropológica porque trabalhamos reconstruindo vínculos que proporcionem uma vida mais humanizada e solidária.
A intervenção clínica em relação ao sofrimento ético, político e antropológico se traduz em atitudes de disponibilidade gratuita, sem objetivos pessoais, onde emprestamos nosso corpo, nossa presença, nosso conhecimento, mas principalmente nosso cuidado e sensibilidade. Sua marca fundamental é a solidariedade, a inclusão, a luta pela criação de um mundo plural onde possamos coabitar com os que são diferentes. E é nos momentos mais dramáticos que compartilhamos com nosso semelhante, que nos damos conta de que participamos de um mesmo destino, de uma mesma vulnerabilidade, expostos à violência, à dor e à morte, que somos comunidade e que vivemos numa dependência mútua.
Nesta realidade de nada vale a atitude individualista e competitiva, temos sim que nos solidarizar e nos sustentar coletivamente, numa sociedade colaborativa e inclusiva, orientados por um novo ethos, o de “sermos juntos”.


REFERÊNCIAS

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BAUMAN, Z. Amor líquido. Rio de janeiro: Zahar, 2003
BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014
CESPEDES, F. G. “A comunicação esférica de Peter Sloterdijk”. Matrizes, V. 2, n. 2 maio/ago 2018, p.311-316. São Paulo
FANON, F. Black Skin, White Masks. London: Pluto, 1986.
FOUCAULT, M. 1979. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. São Paulo: Graal, 2008
GHIRALDELLI JR., P. Para ler Sloterdijk. Rio de Janeiro: Via Verita, 2016
_______. 10 lições sobre Sloterdijk. Petrópolis: Vozes, 2018
HAN, B-C. Sociedade do cansaço. Trad. de Enio Paulo Giachini. 2ª edição ampliada. Petrópolis: Vozes, 2017a.
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MERLEAU-PONTY, M. 1964. O visível e o invisível. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2000.
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MÜLLER-GRANZOTTO, M.J.; MÜLLER-GRANZOTTO, R.L. Fenomenologia e Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 2007.
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PERLS, F.; HEFFERLINE, R.; GOODMAN, P. 1951. Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1997.
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Sloterdijk, P. Esferas I: Bolhas. Trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2016.
i Artigo publicado em BOCCARDI, D.O. (org). Gestalt-terapia e Sociedade, São Paulo: Ed. LiberArs, 2021, p.75 a 85.

El término ‘aquí y ahora’ es aplicado en la Terapia Gestalt tanto para explicar el carácter temporal del sistema self y de las vivencias de contacto en él establecidas, cuanto para designar un “estilo” de intervención clínica adoptado por los terapeutas gestálticos y cuyo propósito es promover la “concentración” del consulente en el modo “como” este, en la actualidad de la sesión, opera con eso que, para él, es pasado o futuro. Los dos empleos están íntimamente relacionados, a punto de poder decir que constituyen la misma noción.

En la obra Ego, hambre y agresión (1942), Frederick Perls no emplea explícitamente el término ‘aquí y ahora’. Sin embargo, al criticar las prácticas psicoanalíticas que hacen del pasado la causa de los síntomas presentes, Perls afirma que no hay “otra realidad a no ser el presente” (1942, p. 146). Lo que no significa que despreciase la importancia del pasado y del futuro en la experiencia clínica. Aún así, afirma Perls (1942, p. 148), el pasado solo existe mientras pudiera hacerse sentir en el presente, de la misma forma como el futuro no es más que una posibilidad que se abre en la actualidad. A partir de esa constatación, Perls propone una forma de intervención clínica en que, en vez de promover la búsqueda “arqueológica” en el pasado por las causas del sufrimiento actual, el terapeuta incentive la “concentración” del consulente en las manifestaciones presentes de ese pasado, tal como ellas se dan a conocer en la actualidad de la sesión. De esa forma, el consulente recobra la awareness de sus propios modos de ajuste, de la manera como se interrumpe y de las posibilidades que todavía le restan o que la actualidad inaugura para él lidiar con lo que hubiere restado como situación inacabada venida del pasado.
Es sólo en la obra Terapia Gestalt (1951, p. 18) que la expresión ‘aquí-ahora’ gana su formato definitivo. Los autores agregan a la forma como Perls concebía la integración de las dimensiones temporales en el presente una lectura fenomenológica, explícitamente fundamentada en el modo como el filósofo Edmund Husserl proponía la noción de “campo de presencia”, de que la noción de “aquí y ahora” es una versión. En su tentativa para explicitar de qué modo nosotros vivimos, antes de representarla, la unidad de nuestra inserción operativa en el mundo de la vida, Husserl propone una interpretación, según la cual: toda vez que somos afectados por una materia impresional, por ejemplo, una nota musical, si esa experiencia fue capaz de dar, a mis vivencias pasadas, la ocasión de una retomada, ella no desaparece tan luego yo oiga otra nota. La primera nota permanece “retenida” como horizonte de percepciones duraderas, lo que no quiere decir que permanezca inalterada. A cada nueva vivencia, aquella que quedó retenida sufre una pequeña modificación. Aún así, permanece como fondo disponible a la espera de retomada. Razón por la cual, el valor de cada nueva nota escuchada no se restringe a las propiedades materiales que esa misma nota es capaz de movilizar, pero incluye un fondo de vivencias pasadas (por ejemplo, notas ya oídas), para lo cual la nota actual ha de abrir perspectivas, posibilidades de retomada (en un todo de sentido, que es la melodía). Y ahí que, en torno de cada vivencia material, se forma un “campo de presencia” temporal (HUSSERL, 1893, p. 141), en que el pasado y el futuro no están ausentes, mas se presentan como horizontes virtuales. Ese campo, a su vez, no permanece eternamente. Tan luego un nuevo dato material surja demandando la participación de mis horizontes de pasado y futuro, el campo de presencia se desarma en provecho de la configuración de uno nuevo. Ese paso asegura a mi propia historia una auto-aparición fluida, por cuanto, a cada nueva aparición, es la misma historia que vuelve, pero en una configuración diferente. Perls, Hefferline y Goodman utilizan la expresión ‘aquí y ahora” para elucidar esa unidad de pasaje que es el “campo de presencia”. Con aquella expresión, los autores no están queriendo referirse a un determinado instante o lugar, sino al hecho de que, en cada instante y lugar somos traspasados por una historia que nos lanza al futuro y, consecuentemente, a aquello que nos viene a sorprender. Cada ‘aquí y ahora’ es más que una posición determinada. Se trata de un campo temporal o, lo que es la misma cosa: campo de presencia de lo ya vivido como horizonte de futuro para la materialidad de la relación organismo/medio. En el interior de cada ‘aquí y ahora’, operamos el ‘contacto’, que es justamente esa reedición creativa (o ajuste creativo) del pasado frente a las posibilidades abiertas por la actualidad del dato. En las palabras de los autores:

(e)l contacto es “el descubrimiento y la construcción” de la solución futura. Se siente interés ante un problema presente y la excitación aumenta hacia la solución futura aunque sea todavía desconocida. La asimilación de la novedad se da en el momento presente cuando va pasando hacia el futuro (1951, p. 14).

El self, por su vez, es apenas el sistema de contactos en el presente transitorio, el fluir de un “aquí y ahora” en otro, el paso de un campo de presencia para otro, la frontera-de-contacto en funcionamiento que es otro nombre para la síntesis de paso de que hablaba Husserl. En las palabras de los autores: “el presente es el pasaje del pasado hacia el futuro, y pasado, presente y futuro son las etapas de un acto del self cuando contacta la realidad” (1951, p. 191).

De donde se desprende, más una vez, que “en psicoterapia, nosotros buscamos la presión de las situaciones inacabadas en el momento presente y, mediante la experimentación en el presente de las actitudes nuevas y del nuevo material (…), buscamos una integración mejor” (1951, p. 15). O entonces, conforme Perls, “(l)a terapia gestáltica es, entonces, una terapia ‘aquí y ahora’, en que pedimos al paciente durante la sesión para volcar toda su atención a lo que está haciendo en el momento, en el transcurso de la sesión”. Por esa razón: “(p)edimos al paciente para no hablar sobre sus traumas y problemas del área remota del pasado y de la memoria, sino para reexperenciar sus problemas y traumas que son situaciones inacabadas en el presente - en el aquí y ahora” (1973, p. 75-76).


AUTORES: MÜLLER, M.J.; GRANZOTTO, R.L.


REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HUSSERL, Edmund. 1893. Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. Trad. Pedro M. S. Alves. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda,[s.d.].
PERLS, Frederick; HEFFERLINE, Ralph; GOODMAN, Paul. 1951. Terapia Gestalt:Excitación y crecimiento de la personalidad humana. Trad. Carmen Vázquez Bandín. Ferrol: Sociedad de Cultura Valle-Inclán, 2006, 3 ed.
PERLS, Frederick 1942. Ego, Fome e Agressão. Trad. Georges Boris. São Paulo: Summus, 2002.
______. 1973. A abordagem Gestáltica e Testemunha Ocular da Terapia. Trad. José Sanz. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

El término ‘configuración’ significa, para la Terapia Gestalt, una de las posibles formas de traducción del sustantivo alemán ‘gestalt’. Conforme Perls, Hefferline y Goodman: “(c)onfiguración, estructura, tema, relación estructural (Korzybski) o totalidad significativa y organizada, son los términos que se acercan más a la palabra alemana Gestalt, para la que no existe ningún equivalente en inglés o en español” (1951, p. xlii). O, entonces, según Perls (1973, p. 19): “(u)na gestalt es una forma, una configuración, el modo particular de organización de las partes individuales que entran en su composición”.

El término ‘configuración’, tal como él es empleado en la lengua española, favorece la descripción de los aspectos dinámicos envueltos en la formación de una Gestalt. Se trata de un modo de nominar el proceso de formación de una totalidad, la cual no es resultante de la sumatoria de las partes envueltas, tampoco es algo apartado de esas partes, como si de ellas independiese. Al contrario, cuando hablamos en configuración tenemos en vista una totalidad tal como nuestro organismo: este no es resultado de la suma de los órganos de que somos formados, tampoco es uno de esos órganos. Se trata de una unidad que se expresa entre nuestros órganos, que no existe sin ellos, pero no es uno de ellos. Nuestro organismo es la propia relación de los órganos entre sí, la previa disponibilidad de uno para el otro, el sistema espontáneo de equivalencia que establecen entre sí. O, incluso, el organismo es la frontera viva entre esos órganos, aquello que los hace cambiar informaciones físicas y vitales. Lo que nos permite entender la configuración como una especie de frontera viva.
Sin embargo, entendido como frontera viva, la configuración no se limita a designar nuestro organismo. La configuración –como frontera viva- también existe entre los organismos, entre ellos y las cosas inanimadas, entre ellos y las instituciones culturales. Lo que nos permite hablar de las configuraciones como totalidades impersonales y genéricas, de las cuales participamos en diversos niveles: físico, biológico, vital, social… en este sentido, dicen Perls, Hefferline y Goodman:

La experiencia se da en la frontera entre el organismo y su entorno, principalmente en la superficie de la piel y en los otros órganos de respuesta sensorial y motora. La experiencia es la función de esta frontera y, psicológicamente, lo que es real son las configuraciones “globales” de este funcionamiento cuando se consigue algún sentido o cuando se completa alguna acción. (1951, p. 5)

Esa forma de emplear la noción de configuración recuerda la teoría fenomenológica del todo auténtico; la cual fue presentada por Husserl en la tercera de las Investigaciones Lógicas (1900 – 1901) y retomada en la obra Ideas (1913), la cual sirvió de modelo para Goodman establecer la redacción de la teoría del self, en la tercera parte del segundo volumen de la obra Terapia Gestalt (1951), conforme declaración del propio Goodman (GOODMAN apud STOEHR, 1994). Según Husserl, un todo auténtico es aquel cuyas partes o contenidos están relacionados de modo dependiente, lo que significa decir: la modificación de una parte acarrea la modificación de las otras. En el caso de una totalidad acústica, por ejemplo, se cambió la calidad del sonido, simultáneamente alteró su intensidad y, así, sucesivamente, de modo que pasó a disponer de una nueva unidad sonora. Para Husserl, las Gestalten o configuraciones son totalidades auténticas, en que se puede observar, en los términos de una relación de dependencia entre las partes envueltas, la vigencia de una intencionalidad comunitaria, sin portavoz específico, pero compartida por todos los envueltos, tal como una frontera viva.
Los psicólogos de la Forma tomaron para sí la teoría fenomenológica del todo auténtico y con ella intentaron pensar fenómenos naturales, como la percepción. Según ellos, las discusiones fenomenológicas permiten comprender que es la organización de los hechos, percepciones y comportamientos y no los aspectos individuales de que son compuestos que da a los todos su definición o significación específica y particular (PERLS, 1973, p. 18). También llamaron a esa organización espontánea de Gestalt o configuración. Diferentemente de la fenomenología, entretanto, los psicólogos de la Forma tomaron las Gestalten como si ellas pudiesen ser traducidas en términos objetivos, como si ellas pudiesen ser reducidas a leyes o regularidades fenoménicas, despreciando lo que en ellas pudiese haber de intencional. Es como si cada Gestalt o configuración expresara una combinatoria de partes que valiese como ley universal – y no como si hubiese entre las partes envueltas una intencionalidad común. Los fundadores de la Terapia Gestalt criticaron esa tentativa de objetivación establecida por los psicólogos de la Forma. A partir de estos, Perls, Hefferline y Goodman intentaron establecer un retorno al empleo fenomenológico del término configuración (Gestalt); lo que significa restituir el carácter intencional que define la manera como las partes de una Gestalt están ligadas entre sí. Lo que tal vez explique por qué razón, en la práctica clínica de la Terapia Gestalt, por ejemplo, importa acentuar que las sesiones terapéuticas, los trabajos de acompañamiento terapéutico y los workshops –entre otras modalidades de intervención- son menos repeticiones estructuradas a partir del pasado y más ajustes “creados” en el aquí/ahora de la sesión. La creación es el ingrediente intencional a partir del cual las partes envueltas, vengan ellas o no del pasado, asumen una configuración única, formando una totalidad autentica – whole, en la terminología de Perls, Hefferline y Goodman (1951, p. 5).


AUTORES: MÜLLER, M.J.; GRANZOTTO, R.L.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HUSSERL, E. 1900-1. Investigaciones Lógicas. Trad. Jose Gaos, 2.ed. Madrid: Alianza, [s.d.],V. II
______. 1913. Ideas relativas a una fenomenologia pura e una filosofia fenomenológica I. Trad. José Gaos. 3 ed. México D. F.: Fondo de Cultura Económica, 1986.
PERLS, Frederick; HEFFERLINE, Ralph; GOODMAN, Paul. 1951. Terapia Gestalt: Excitación y crecimiento de la personalidad humana. Trad. Carmen Vázquez Bandín. Ferrol: Sociedad de Cultura Valle-Inclán, 2006, 3 ed.
STOEHR, T. 1994. Aquí, ahora y lo que viene: Paul Goodman y la psicoterapia Gestalt en tiempos de crisis mundial. Trad. Renato Valenzuela. Santiago: CuatroVientos, 1997.

En el prefacio a la obra Terapia Gestalt, texto inaugural del abordaje que lleva el mismo nombre, sus autores presentan la orientación general de la investigación que proponen:
(...) desplazar el objeto de la psiquiatría: en lugar de hacer un fetiche de lo desconocido, de adorar al “inconsciente”, era preferible dedicarse a los problemas y a [la fenomenología de la awareness]. ¿Cuáles son los factores que actúan a nivel de la awareness, y cómo las facultades que no pueden funcionar eficazmente salvo en los estados de awareness pueden perder esta propiedad? (PERLS, HEFFERLINE Y GOODMAN, 1951, p. xli, cursiva y negrita es nuestra).

He ahí, entonces, la primera aparición del término fenomenología en la literatura de la Terapia Gestalt. Fenomenología aparece aquí como la disciplina por cuyo medio Perls, Hefferline y Goodman pretenden aclarar en qué sentido la noción de awareness lanza las bases para una nueva concepción sobre las formas de contacto entre el hombre, el semejante y el mundo – formas estas a las cuales denominan de sistema self.

Inspirado en el uso que Edmund Husserl dio a la expresión ‘fenomenología’, Martín Heidegger establece para ella una nueva etimología. Heidegger (1927, §7) explora el hecho de que el verbo legein (discursar), de que el sustantivo logia es derivado, ser sinónimo de apophainesthai, lo cual, a su vez, es compuesto por el prefijo apo (que significa hacer ver) y phainesthai (que es una forma verbal reflexiva que significa “manifestarse desde sí”). De donde proviene la traducción de la expresión “fenomenología” (legein ta phainomena) de la siguiente forma: hacer ver, a partir de sí mismo, aquello que se manifiesta, tal como, a partir de sí mismo se manifiesta (apophainesthai ta phainomena). Fenomenología, en ese sentido, no es el estudio de lo que aparece, sino el hacer ver – en el ámbito de nuestra experiencia – aquello que se manifiesta desde sí, tal como se manifiesta desde sí. Lo que se manifiesta desde sí, a su vez, no es una cosa objetivada, ya inscrita en nuestro código natural, en nuestras definiciones espacio-temporales. Las cosas naturales se muestran a partir de nuestra definición de naturaleza y no a partir de ellas mismas. Razón por la cual, para la fenomenología, el manifestarse desde sí implica una espontaneidad, a la cual las cosas naturales cuando mucho representan, pero no agotan. El término intencionalidad intenta nominar esa espontaneidad, sin “autor” empírico, mas a partir de la cual pasamos a representar entidades empíricas, sean estas: hombres, mujeres, otros animales, plantas o cosas inanimadas. Hacer fenomenología, por consiguiente, es hacer ver el “primado” de esa intencionalidad primera e impersonal, que se muestra desde sí antes mismo de que nuestros instrumentos reflexivos de él se pudieran apoderar – lo que justifica que Husserl y Heidegger, cada cual a su modo, intentasen utilizar un lenguaje propio, diferenciado del lenguaje natural o científico. Incluso más, hacer fenomenología es hacer ver la irreductibilidad de ese primado, que nunca conseguimos dominar, tal cual el tiempo, que no para de escurrir. Además para todos los fenomenólogos, el tiempo es la forma íntima de la intencionalidad.

Sin embargo, esa espontaneidad que se revela a partir de sí misma tal como ella es vivida a cada instante y de manera impersonal, Perls, Hefferline e Goodman la denominan de awareness. Ya en la obra Ego, hambre y agresión (1942), Perls utilizaba el término awareness para designar la forma como Kurt Goldstein sintetizaba, traspasándola para el campo de las relaciones organísmicas, la noción fenomenológica de “intencionalidad”. Lo que significa decir que, a diferencia de Husserl y Heidegger, los fundadores de la Terapia Gestalt no creen que sea preciso abandonar el discurso natural para describir los procesos intencionales. Tal como el fenomenólogo Maurice Merleau-Ponty (1945), los fundadores de la Terapia Gestalt creen que la ciencia ella misma es capaz de apuntar el primado de esa espontaneidad que se revela por sí. Incluso así, Perls, Hefferline y Goodman se mantienen fieles a la mirada fenomenológica sobre la noción de intencionalidad, cuando admiten que la awareness es un acontecimiento eminentemente temporal. En este sentido, en la tercera parte del segundo volumen de la obra Terapia Gestalt, cuando describen el flujo de awareness en los términos de un sistema al cual denominaron de self, sus autores mencionan que la “clasificación exhaustiva, la descripción y el análisis de todas las estructuras posibles del self” constituye “el sujeto-objeto de la fenomenología” (1951, p. 195). Conforme ellos, se trata de entender el self como la ‘actualización del potencial”, lo que significa decir que:

[e]l presente es el pasaje del pasado hacia el futuro, y pasado, presente y futuro son las etapas de un acto del self cuando contacta la realidad. (Es probable que la experiencia metafísica del tiempo sea, en primer lugar, una lectura global del funcionamiento del self) (PERLS, HEFFERLINE e GOODMAN, 1951, p. 191)

La afirmación lacónica, pero crucial, que reconoce en la experiencia metafísica del tiempo el sentido profundo del funcionamiento del self, no deja dudas sobre la orientación fenomenológica de las descripciones que sus autores pretenden establecer. Al final, la experiencia metafísica del tiempo es justamente el tema del cual se ocupa Husserl en sus Lecciones sobre la fenomenología de la consciencia interna del tiempo (1983); tema ese que reaparece articulado con la noción de intencionalidad en la obra Ideas (1913), la cual, por su vez, sirvió de base para Goodman proponer la redacción definitiva de la teoría del self, según él mismo admitió en carta dirigida a Wolfang Köhler (conforme STOEHR, 1993, p. 80).

En el campo de la práctica clínica, la noción de fenomenología se presta para designar una postura de disponibilidad del terapeuta en relación a aquello que se muestra en la sesión como algo “obvio”, pero no necesariamente ligado a una causa o a un agente determinado. Se trata de los hábitos inhibitorios, de los estados de ansiedad y angustia, de las creaciones motoras y lenguajeras, entre otros acontecimientos espontáneos e inesperados compartidos en la sesión terapéutica. Al terapeuta importa puntuar el modo “como” esos acontecimientos se muestran desde sí en la actualidad de la sesión, retornen ellos del pasado, diríjanse ellos al futuro. La fenomenología es aquí menos una metodología de intervención que una actitud de concentración en aquello que se muestra desde sí.


AUTORES: MÜLLER, M.J.; GRANZOTTO, R.L.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HEIDEGGER, M. 1927. Ser e Tempo. Trad. Márcia Cavalcanti. Petrópolis: Vozes, 1989.
HUSSERL, E. 1893. Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. Trad. Pedro M. S. Alves. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, [s.d.].
______. 1913. Ideas relativas a una fenomenologia pura e una filosofia fenomenológica. Trad. José Gaos. 3 ed. México D. F.: Fondo de Cultura Económica, 1986.
MERLEAU-PONTY, M. 1945. Fenomenologia da percepção. Trad. C.A.Moura: SP, Perspectiva, 1994.
PERLS, Frederick; HEFFERLINE, Ralph; GOODMAN, Paul. 1951. Terapia Gestalt: Excitación y crecimiento de la personalidad humana. Trad. Carmen Vázquez Bandín. Ferrol: Sociedad de Cultura Valle-Inclán, 2006, 3 ed.
PERLS, F. 1942. Ego, Fome e Agressão. Trad. Georges Boris. São Paulo: Summus, 2002.
STOEHR, T. 1994. Aquí, ahora y lo que viene: Paul Goodman y la psicoterapia Gestalt en tiempos de crisis mundial. Trad. Renato Valenzuela. Santiago: CuatroVientos, 1997.

MÜLLER, M.J; GRANZOTTO, R.L.


RESUMO
Neste texto pretendemos abordar o entendimento de Perls, Hefferline e Goodman (1997) sobre o caráter “dinâmico” e “temporal” do ajustamento criativo e respectivas interrupções. Para tal, recorremos à base filosófica desde onde, como reconhece o próprio Perls, “toda classificação, descrição e análise exaustivas das estruturas possíveis do self” deve ser estabelecida, qual seja essa base, a fenomenologia (184). Precisamente, recorreremos à descrição fenomenológica da vivência do tempo, na qual encontramos a matriz desde onde pudemos pensar o vínculo entre a dinâmica figura/fundo e a teoria da neurose enquanto inibição variada do processo de contatar o presente.

PALAVRAS-CHAVE
Gestalt-terapia self fenomenologia temporalidade consciência intencionalidade neurose


Ao apresentar, na obra Gestalt-terapia (1997), essa proposta de psicologia formal, denominada “teoria do self”, síntese de conceitos que interliga as noções de contato, de awareness e de ajustamento criativo, e que tem na fenomenologia seu fundamento epistemológico, Perls, Hefferline e Goodman fazem questão de frisar que, por self, eles não estão entendendo alguma forma substancial ou entidade psicofísica, mas, sim, “a função de contatar o presente transiente concreto” (1997: 177). Trata-se, nesse sentido, de uma referência a um processo – e não a uma realidade empírica. Mas, quando falam em processo, o que exatamente têm em mente?
Contatar o presente transiente concreto é uma atividade elementar que envolve nossa existência global, precisamente, nossa inserção no meio, dizem Perls e Goodman. Trata-se, segundo eles, do modo como, a partir de minha fisiologia primária – a qual envolve não apenas os processos físicos e biológicos de meu corpo, mas o modo pessoal segundo o qual esses processos são vividos por mim - encontro (no meio ambiente) possibilidades com as quais me identifico ou às quais me alieno, de modo a promover o crescimento do meu organismo e a transformação do meio. De onde se segue a definição do self (1997: 179) não como conjunto de funções circunscritas aos meus tecidos celulares, mas, sim, como dinâmica de trocas energéticas entre tais tecidos e o meio, de modo a permitir, por um lado, a conservação de algumas formas de organização anteriores (junto às quais me experimento como aquilo que permanece) e, por outro lado, a destruição de formas antigas e assimilação de novas formas (o que permite que eu me experimente como alguém integrado ao meio ambiente). Trata-se, nesse sentido, da experiência de um continuum que, entretanto, modifica-se a cada instante – o que não é senão a definição fenomenológica da infraestrutura temporal do processo que Husserl denominou de ego transcendental (1931: §37). O que talvez explique por que razão Perls e Goodman tenham dito, na obra inaugural da Gestalt-terapia, que o self é um processo temporal (1997: 178). Mais do que isso, talvez esteja aqui a razão pela qual, para Perls e Goodman “é provável que a experiência metafísica do tempo seja primordialmente uma leitura do funcionamento do self” (180). No presente trabalho, pretende-se dilucidar em que sentido podemos entender o self como um processo, em que medida o tempo vivido é o sentido último desse processo e, por conta disso, de que maneira a teoria fenomenológica do tempo nos ajuda a entender as várias dinâmicas do self, muito especialmente a formação da neurose.


As funções do self

Para Perls e Goodman (1997:184), a descrição do self – ou, o que é a mesma coisa, a descrição dos processos que constituem essa reedição (temporal) criativa (inovadora) das trocas energéticas entre minha materialidade física e o meio – é um trabalho fenomenológico. Afinal, trata-se da descrição do que há de essencial na experiência de nós mesmos, junto e diante dos outros e das coisas mundanas. Por essa razão, Perls e Goodman propõem não uma teoria da personalidade, ou uma metapsicologia, mas uma psicologia formal, que não é senão uma descrição fenomenológica desse processo de apercepção da própria unidade no mundo – e a que denominaram de self. Trata-se, conforme eles, “da descrição e análise exaustivas de estruturas possíveis (essências)”, por cujo meio poderíamos nos representar uma certa regularidade no processo de crescimento (retomada criadora) do organismo (184). E eis por que, a partir da análise do modo como a troca energética (que pode ser física, química, biológica, emocional, econômica ou política) se polariza (nos meus tecidos, na minha ação, ou no próprio meio), Perls e Goodman (183-9) propuseram a discriminação entre três funções ou operações básicas do self e que, fenomenologicamente, poderíamos chamar de essências do self, a saber, a função id, a função ego e a função personalidade.
Essa confessa adesão ao modelo descritivo-formal da fenomenologia implicou, dentre outras conseqüências, que o self não designaria, ao menos em seu sentido principal (como dinâmica temporal das trocas energéticas), uma substância individual (um ente que subsistiria em si, como algo completamente separado do meio). Tratar-se-ia de um campo de generalidade, no interior do qual eu divisaria minha própria individualidade, bem como minha integração no todo. O que não quer dizer que, para Perls e Goodman, o self fosse algo impessoal. Ao contrário, não obstante se tratar de uma generalidade, tratar-se-ia da “minha generalidade”, ao mesmo tempo pessoal, mas experimentada muito além dos limites disso que a psicologia clássica entende por individualidade (a saber, corpo físico, alma, interioridade, dentre outros conceitos que não são senão o correlativo da tese metafísica da existência de um outro homem no interior desse homem mundano que efetivamente somos). Perls e Goodman (1997: 182, n.4), recorrem a uma distinção lingüística para caracterizar a pessoalidade dessa generalidade. Trata-se da distinção que, muito especialmente na língua grega, fazemos entre o emprego de verbos na voz ativa (que indica que a ação foi praticada por um sujeito), o emprego de verbos na voz passiva (que indica que o sujeito recebeu uma ação) e na voz média (em que o sujeito experimenta a si mesmo na ação). Enquanto os empregos de verbos nas vozes ativa e passiva implicam uma separação possível entre o sujeito da ação e a ação descrita pelos verbos (uma vez que tal ação poderia admitir um outro sujeito, sem, entretanto, transformar-se noutra ação), o emprego de verbos na voz média não permite essa separação. Afinal, esse emprego designa ações que são, ao mesmo tempo, a maneira específica segundo a qual um certo sujeito se constitui como tal. Não se trata de uma ação do sujeito sobre si mesmo, mas da gênese desse sujeito na ação. Ora, o self é o caráter médio de um certo conjunto de processos sensório-motores e linguageiros. Ele é essa vivência de coesão que se exprime junto a esses processos e a que denominamos de “minha pessoalidade”, muito embora essa pessoalidade possa ser vivenciada de diversas maneiras. Na respiração, eu sou eu mesmo, muito embora eu mal me distinga da atmosfera que inspiro e expiro. O que é diferente desse eu que decide, por alguns segundos, suspender a respiração. Ou, ainda, desse outro que, tendo experimentado a impossibilidade de existir independentemente do ar que respira, “representa-se” como um ser no mundo. E eis aqui, nessas três formas elementares de vivência da minha pessoalidade como funcionamento médio da experiência, a direção segundo a qual Perls e Goodman descrevem as operações básicas ou funções do self (1997: 178, nota 1).
Num primeiro momento, aquilo que opera no self é a função id, entendendo-se por isso a relação de homeostase ou distribuição eqüitativa de energia entre as partes envolvidas, a saber, o meio e os meus tecidos celulares. Aqui, na função id, o self não é diferente de minhas vivências proprioceptivas, interoceptivas e exteroceptivas. Todas as sensações que experimento, “ao mesmo tempo” que são minhas, são inseparáveis do meio em que ocorrem, de modo que minha vivência, de fato, está diluída ou absolutamente integrada ao meio circundante. Enquanto id, sou eu mesmo, mas um eu em situação, inseparável das coisas de que participo. Enquanto id, sou um corpo, um corpo próprio, que antes de ser conhecido (representado para mim mesmo), é vivido como volume, espessura, trânsito entre eu e o mundo. Perls e Goodman (1997: 186), definem id como um tipo de relação em que o self “surge como sendo passivo, disperso e irracional; seus conteúdos são alucinatórios e o corpo se agiganta enormemente”.
Já o “ego”, para aqueles autores (1997: 184-6), é a função de individuação do self enquanto tal. Trata-se do momento em que as trocas energéticas se polarizam em uma extremidade da relação, que são meus tecidos celulares, junto aos quais o self se faz “ação”, “decisão”, “deliberação” em favor de uma certa direção ou modo de troca energética. Eis aqui e tão somente aqui o momento em que minha existência se destaca do contexto de generalidade do qual participa, eis aqui e tão somente aqui o momento em que o self se contrai em uma certa região de minha existência de generalidade, que é a minha deliberação (seja ela motora ou da ordem da linguagem). Enquanto ego, sou um self que não simplesmente “sente”, mas que, a despeito ou em favor da minha sensibilidade, toma decisões, age segundo uma certa direção que não necessariamente preciso me representar. O ego é minha capacidade de transcendência no meio – e por cujo meio me identifico ou me alieno em relação às possibilidades que o próprio meio me oferece.
O terceiro aspecto ou função do self é a personalidade. Trata-se, para Perls e Goodman (1997: 187), de uma certa generalidade não perceptiva, na qual o self se sedimenta, tornando-se uma identidade histórica, representada, construída por meio de atos simbólicos. Nesse sentido, é importante não confundirmos tal generalidade com aquela que caracteriza a função id. Enquanto esta é da ordem da percepção, de nossa integração sensorial com o meio, a personalidade é uma generalidade virtual, formada a partir das ações, sobremodo lingüísticas, que o self estabelece por meio do ego. No modo personalidade o self identifica-se com o que o ego fez, criou a partir do meio. Nas palavras dos autores, “personalidade é o sistema de atitudes adotadas nas relações interpessoais; é a admissão do que somos, que serve de fundamento pelo qual poderíamos explicar nosso comportamento, se nos pedissem uma explicação” (187).

As dinâmicas do self

Perls e Goodman (1997: 206) também se ocuparam de mostrar que as funções do self podem ser descritas a partir de categorias emprestadas da Psicologia da Forma, exatamente, as categorias de figura e fundo. Ou seja, cada uma das funções do self caracteriza um modo específico de organização gestáltica entre os elementos envolvidos (sejam eles os meus tecidos celulares, os fenômenos mundanos, os valores culturais...). Por meio das categorias figura e fundo, Perls e Goodman almejam ressaltar o modo de funcionamento ou, simplesmente, a dinâmica própria do self.
Quando o self está polarizado como id, a figura não está propriamente definida. Quando muito, se pode dizer que a figura é essa vivência volumosa do corpo, que são nossas experiências interoceptivas (sinestésicas) e proprioceptivas (viscerais), as quais não só são inespecíficas para quem as sente, quanto raramente podem ser desvinculadas das condições do meio ambiente (altitude, quantidade de oxigênio disponível, pressão atmosférica, temperatura, velocidade do vento, dentre outros infinitos fatores que, entretanto, são experimentados de forma indeterminada). Trata-se do domínio próprio em que um dado indeterminado surge ou é acolhido como figura. Quando o self está polarizado na função ego, a figura é um ato intencional, uma ação deliberada a partir de um fundo de excitamentos, para o qual aquela ação quer ser uma resposta. Já na função personalidade, a figura não é da ordem do sensorial ou da deliberação, mas é uma certa abstração, um certo valor no qual nos alienamos sob um fundo de ações e sensibilidade.
Na função id, os autores identificam uma dinâmica que poderíamos chamar passiva, um estado de inércia, a partir do qual nosso ego pode acolher um dado como figura. Trata-se, especificamente, do momento de surgimento de uma excitação a partir de um fundo organísmico ( o que caracteriza a dinâmica do pré-contato).
Na função ego, os autores identificam, além da apreensão da figura, duas outras dinâmicas: o contato e o contato final. Pelo primeiro, devemos entender a deliberação na qual o self se polariza. Ela tanto pode ser um ato de identificação com uma possibilidade de satisfação dos excitamentos junto ao meio, como a alienação em favor de um arranjo físico-fisiológico ou sócio-econômico-cultural que se impõe a partir do meio. Trata-se, nesse sentido, do momento em que o self, na função ego, abre um horizonte de futuro, investe o mundo circundante de uma função nova. A partir desse momento, só resta ao self, na função de ego, agir. É o momento em que ele “faz” alguma coisa, polariza-se numa ação concreta (ou, conforme os autores, polariza-se na fronteira de contato, que é o limite virtual entre meus tecidos celulares e o meio). Temos aqui o contato final.
Depois disso, quando o excitamento foi aplacado pela ação do ego, o self pode “fruir”, o que significa que ele pode se polarizar numa representação (culturalmente estabelecida) daquilo que ele próprio fez. Isso significa que o self pode assumir ou se identificar com uma certa personalidade. Aqui se dá a dinâmica que Perls e Goodman denominam de pós-contato (1997: 225).
Enfim, como dizem os autores:

(n)o processo de ajustamento criativo traçamos a seguinte seqüência de fundos e figuras: 1) Pré-contato – no qual o corpo é o fundo, e o seu desejo ou algum estímulo ambiental é a figura, isto é, o ‘dado’ ou o id da experiência. 2) Processo de contato – aceito o dado e se alimentando de suas faculdades, o self em seguida se aproxima, avalia, manipula, etc. um conjunto de possibilidades objetivas: é ativo e deliberado com relação tanto ao corpo quanto ao ambiente; estas são as funções ego, 3) Contato final – um ponto eqüidistante das extremidades, espontâneo e desapaixonado de interesse com a figura realizada. 4) Pós-contato – o self diminui (1997: 232).

Ora, não obstante as categorias de figura e fundo se prestarem a mostrar que o self não é um mecanismo, uma cadeia de causas e efeitos ou de respostas complexamente reforçadas na contingência, mas, sim, a coesão espontânea do todo (que é minha existência de generalidade no meio) em proveito de diferentes funções (id, ego e personalidade) e na forma de diferentes dinâmicas (pré-contato, contato, contato final e pós-contato), a natureza específica dessa coesão espontânea não é suficientemente dilucidada por aquelas categorias. O que os próprios autores da teoria do self reconhecem, razão pela qual vão dizer que o sentido profundo das dinâmicas implícitas ao self pode ser melhor esclarecido por meio de um recurso à teoria que deu origem às categorias de figura e fundo, a saber, a teoria fenomenológica da experiência temporal. E eis por que razão, em última análise, Perls e Goodman dirão que “é provável que a experiência metafísica do tempo seja primordialmente uma leitura do funcionamento do self” (1997: 180).


Temporalidade do self

Ainda que Perls não citasse as lições proferidas por Husserl entre 1893 e 1917 – e cujo tema era a experiência que cada um de nós tem desse continuum em mutação, que é nossa vivência do tempo -, elas constituíam um tema familiar àqueles que, por meio de Goldstein ou, antes dele, por meio de Köhler, tiveram contato com a teoria fenomenológica da percepção como uma dinâmica de figura e fundo (a qual foi elaborada por Edgar Rubin justamente a partir daquelas lições de Husserl). É provável, nesse sentido, que Perls e Goodman compreendessem a importância da descrição fenomenológica da experiência da temporalidade. O que podemos facilmente verificar juntando duas passagens (já citadas) da terceira parte da obra Gestalt-terapia (1997), as quais falam, respectivamente, que a teoria do self é um tipo de “psicologia formal, que é o tema da fenomenologia” (184) e que “é provável que a experiência metafísica do tempo seja primordialmente uma leitura do funcionamento do self” (180). De onde se segue que, independentemente dos objetivos visados por Husserl e Perls (o primeiro queria estabelecer uma descrição formal da experiência do conhecer objetivo, enquanto Perls queria construir uma descrição da experiência organísmica de ajustamento no meio), é a teoria do self, mais do que qualquer “aplicação clínica de conceitos fenomenológicos”, o sentido precisamente fenomenológico da Gestalt-terapia.
O ego transcendental para Husserl, assim como o self para Perls, não é um objeto. Tal como Husserl o entende a partir de 1930, o ego transcendental é essa coesão, que se constitui por si mesma como unidade de uma história, que é a minha história (1931: §37). Ele é o domínio das minhas possibilidades que comparecem como horizonte de sentido para todas as vivências da atualidade. Em poucas palavras, o ego transcendental é o “eu posso” que vivenciamos antes mesmo de podermos dizer que “existimos” ou que “sabemos”. Trata-se de uma generalidade indeterminada, mas determinável (1931: §46), que se desdobra na forma de uma dinâmica de mútua implicação entre, pelo menos, três elementos: as intuições fenomênicas (que são nossas vivências de apreensão de um todo temporal e indeterminado, por exemplo, os sentimentos, os quais não devem ser entendidos como ocorrências exclusivamente individuais, mas, também, intercorporais), os atos de indicação (por cujo meio tentamos dar uma forma objetiva para nossas intuições fenomênicas) e as intuições categorias (que são as formas de coesão interna de nossos atos de indicação e que se deixam reconhecer, junto a esses atos, como nossos pensamentos, como nossa identidade não mais indeterminada, como no caso das intuições fenomênicas, mas determinada enquanto essência). O correlativo objetivo da integração desses três elementos é a “coisa mesma”, seja ela entendida como a idealização de nossos atos, seja ela entendida como a idealização de tudo aquilo de que os nossos atos se ocupam. Razão pela qual a fenomenologia é um “voltar às coisas mesmas”, não em proveito das coisas enquanto correlativos objetivos, mas das intuições que as preenchem e que são as nossas vivências fenomênicas e categoriais. Voltar às coisas mesmas, nesse sentido, é voltar à experiência de produção de uma unidade, que é a unidade de nossa existência, o que muito bem poderíamos chamar de “self”.
Ora, Husserl denomina de intencionalidade esse processo de determinação de nossas intuições fenomênicas enquanto essências (intuições categorias) “expressas” por nossos atos. Esse processo, entretanto, comporta dois momentos distintos. O primeiro é aquele que diz respeito à formação de nossas intuições fenomênicas, as quais devem ser entendidas como a “implicação temporal” de nossas muitas vivências em proveito de um todo indeterminado (ou gestalt). O segundo diz respeito à determinação ativa (exercida por atos) desse todo que, então, passa a ser experimentado como uma essência (ou intuição categorial). De toda sorte, é sempre a partir do primeiro processo que o segundo é possível, de onde se segue o primado ontológico (mas não epistemológico) da vivência do tempo (que é anterior aos atos) sobre nossas vivências mediadas por atos (essências ou intuições categorias). Husserl chama a vivência do tempo de intencionalidade operativa.
A intencionalidade operativa se dá de duas formas. A primeira, como retenção do vivido enquanto fluxo de modificações sucessivas. O que vivemos materialmente (uma sensação, por exemplo), tão logo é experimentada, decompõe-se em sua organização material. O que não quer dizer que ela deixe de existir. Sua permanência, entretanto, implica uma sorte de modificação. Ela continua retida, mas como matéria modificada e, a cada nova vivência, como modificação da modificação, de modo a estabelecerem, para as novas vivências um tipo de horizonte. A segunda forma da intencionalidade operativa diz respeito à organização espontânea desses vividos retidos enquanto fundo, horizonte de retrospecção e prospecção para os novos vividos materiais. Nesse segundo formato, a intencionalidade operativa implica um tipo de síntese passiva (porque não é estabelecida por meio de atos deliberados), entre o que eu vivi (e que comparece como horizonte de passado e futuro) e às minhas vivências atuais.
No gráfico a seguir – construído a partir de um modelo apresentado por Husserl em suas Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo (1994: 177), e segundo a complementação sugerida por Merleau-Ponty em seu estudo sobre o gráfico husserliano (1945: 477) - podemos visualizar a forma dinâmica segundo a qual seu autor compreendia nossa vivência do tempo.

Diferentemente da representação física do tempo, em que temos uma sucessão linear ou cíclica de “agora(s)”, Husserl concebe o tempo vivido como uma rede que se arma, a cada vez e em torno do novo agora que surge. Os muitos “agora(s)” não têm ligação entre si – como no caso dos gráficos lineares ou cíclicos, onde importa mostrar que o que vêm depois é uma conseqüência ou o retorno de algo do passado. Cada um dos “agora(s)” é absolutamente diferente (e, nesse sentido, separado) dos demais, sob pena de não podermos estabelecer distinções espaciais. Eis por que Husserl fala de uma série de “agora(s)” independentes (A, B, C, D...). Mas, do fato de os muitos “agora(s)” não terem uma ligação material entre si, não se segue que não tenham relação alguma. Há, sim, uma relação, mas ela não é estabelecida desde o exterior – como faz o físico, para reconhecer, entre os vários “agora(s)”, uma sucessão causal. Tampouco é estabelecida à moda de um deus panteísta, que está em todos os “agora(s)” simultaneamente. Para Husserl, a relação entre os meus vividos, eu só posso estabelecer do ponto de vista de cada vivido. O que significa que, aquilo que posso saber dos demais, é sempre uma modificação, uma alteração deles desde a posição em que me encontro agora. Ainda assim, se no “agora” atual posso considerar os outros “agora(s)”, devo admitir um tipo de vínculo. E é exatamente aqui que Husserl introduz o duplo sentido da intencionalidade operativa. Em primeiro lugar, acredita Husserl, não obstante nossas vivências materiais serem finitas, elas não desaparecem completamente de nossa existência. Elas permanecem “retidas” como modificações da matéria vivida que, assim, deixa de ser vivência, para se tornar horizonte (o que Edgar Rubin chamou de “fundo”), memória involuntária daquilo que não precisa ser evocado (por um ato de lembrança, por exemplo) para que seja reconhecido como nosso. A cada novo “agora”, nossas vivências retidas se modificam, assim como quando da emergência de B no gráfico, A se transforma em A’ e em A” quando da emergência de C. Mas, em segundo lugar, mesmo se modificando constantemente, o horizonte é aquilo que eu sempre posso reivindicar como orientação para minha vivência atual. Nesse sentido, no “agora” C, posso retomar A” e B’ como horizonte de passado, bem como projetá-los à frente, junto àquilo que se abre em C, como horizonte de futuro (d’). O que implica que este C é mais do que um “agora”, ele é um “campo de presença” do passado e do futuro no presente. Ele é um “aqui e agora” em que minha vida inteira, meu passado e minhas expectativas, estão incluídas como horizonte (ou como fundo).
Ora, se interpretamos o self como uma rede temporal, e cada fronteira de contato (ou presente deveríamos procurar em outro lugar, senão naquilo que o paciente atualmente trouxesse para o terapeuta, o sentido de sua queixa. Ainda que Perls e Goodman, na obra Gestalt-terapia (1997) não se referissem explicitamente a Husserl, Goodman (GOODMAN apud STOEHR, 1993), em carta a Köhler, afirma que a forma de expressar as idéias desenvolvidas nesta obra, emana de Ideen de Husserl (1913), portanto quando se refere a uma metafísica profunda do tempo como fundamento da teoria do self – nos autoriza a interpretá-la a partir de Husserl. E isso significa dizer tão somente que, se tudo está no aqui-agora, é por que o aqui-agora é um campo de presença, em que co-dados manifestam-se como fundo de um dado, que então é figura.
Este processo é o próprio ajustamento no campo, no campo de presença (de nossas vivências passadas e de nossas expectativas junto à materialidade de cada agora). E, conforme nosso entendimento, é somente tendo como base essa compreensão de campo que se pode entender em que sentido, para Perls e Goodman (1997: 180), o fundo é um “potencial” e, por conseqüência, o self é a “realização de um potencial”. Mais do que isso, é somente tendo como base essa compreensão de campo que se pode entender i) em que sentido o self é uma relação com o meio, ii) mas, ao mesmo tempo, ele é minha pessoalidade. Essa última é assegurada pelo fundo, que ora aparece como base regular desde onde os dados na fronteira de contato (com o meio) podem ser aceitos como figuras (como aquilo que nos diz respeito, que gera em nós tensão ou necessidade); ora aparece como domínio de “possibilidades” para destruição das figuras (satisfação). De onde se segue o emprego da palavra awareness como designativo da experiência de mim mesmo junto aos dados na fronteira de contato (awareness sensorial) e da experiência de mim mesmo na deliberação e ação motora (awareness deliberada). Awareness é a experiência de minha pessoalidade como fundo de tudo o que ocorre na fronteira. É a própria coesão do self, assim como a intencionalidade operativa é a própria coesão temporal da consciência, conforme a fenomenologia.
Perls e Goodman deixam claro sua visão temporal do self na seguinte passagem, que citamos na íntegra, dada a sua perfeita sincronia com a dinâmica descrita pelo gráfico de Husserl:

O que é importante observar é que a realidade com a qual se entra em contato não é uma condição objetiva imutável que é apropriada, mas uma potencialidade que no contato se torna concreta. O passado é o que não muda e é essencialmente imutável. Desse modo, as abstrações e a realidade abstrata imutável são construções da experiência passada fixada. Condições reais essencialmente externas são experienciadas não como sendo imutáveis, mas como sendo continuamente renovadas da mesma maneira. Ao concentrar-se a awareness na situação concreta, essa preteridade da situação se dá como sendo o estado do organismo e do ambiente; mas de imediato, no instante mesmo da concentração, o conhecido imutável está se dissolvendo em muitas possibilidades e é visto como uma potencialidade. À medida que a concentração prossegue, essas possibilidades são retransformadas em uma nova figura que emerge do fundo da potencialidade: o self se percebe identificando-se com alguma das possibilidades e alienando outras. O futuro, o porvir, é o caráter direcionado desse processo a partir das muitas possibilidades em direção a uma nova figura única (1997: 180-181).


Releitura das dinâmicas do self à luz da teoria fenomenológica do tempo

O campo de presença - futuro que se faz presente a partir do passado - é o acontecimento que chamamos na Gestalt-terapia de contato. Tal acontece quando “algo” (que tanto pode ser um dado proprioceptivo, exteroceptivo ou interoceptivo) adquire valor de figura em nossa existência - o que implica que emprestemos, a esse algo, um fundo de co-dados, os quais não são senão a nossa existência já vivida e, nesse sentido, modificada, que retomamos numa dupla orientação: futuro e passado. Ora, sendo o self o sistema de contatos no presente transiente – o que poderíamos perfeitamente bem enunciar como um sistema de implicação temporal no campo de presença – e estando ele constituído de uma série de dinâmicas, caberia então uma releitura dessas mesmas dinâmicas sob a ótica das vivências temporais operadas em cada uma delas.
É de fundamental importância observar, entretanto, que a apresentação temporal das dinâmicas do self não implica considerá-las como uma sorte de ciclo ou linearidade causal. Temporalidade quer tão somente dizer a experiência de coesão espontânea (não mediada por atos), na forma da qual eu experimento, frente aos outros e ao mundo circundante, a unidade de uma existência mista, de generalidade: self. Por isso, não obstante as dinâmicas sinalizarem o modo como o já vivido comparece junto ao dado, não há nada que se repita. Há tão somente retomada, o que nunca é uma repetição, mas a criação do novo (campo) a partir do que, desde o passado e do dado que se apresenta, se anuncia no futuro.
Ainda assim, Perls e Goodman prestaram uma inestimável contribuição para a psicologia formal e para as práticas psicoterapêuticas quando descreveram, não uma seqüência objetiva, mas a essência (ou forma geral) das orientações que se abrem toda vez que nos ocupamos de um dado a partir de nosso fundo (horizonte de passado e futuro). Estamos aqui falando das já aludidas dinâmicas do self, que são o pré-contato, contato, contato final e pós-contato. Tais dinâmicas não são, voltamos a frisar, uma cadeia de ocorrências, etapas sucessivas de eventos de uma seqüência determinada, tal qual num ciclo, mas a abertura do novo a partir do antigo. Ainda assim, elas descrevem a orientação ou direção na forma da qual vivenciamos, no campo de presença (ou, se se preferir, na fronteira de contato ou no “aqui e agora”), a retomada do já vivido (do fundo) em proveito do dado material eminente.
Ora, se o self – enquanto sistema de contatos no presente transiente - é um processo temporal, e se tal temporalidade é aquela descrita nos termos da fenomenologia de nossa vivência do tempo, então o gráfico de Husserl pode nos ajudar a compreender a infraestrutura temporal inerente às dinâmicas do contato. Conforme acreditamos, a utilização do gráfico husserliano tem a vantagem de nos permitir visualizar i) o modo como nossa história vivida (e representada) participa de nosso “aqui-agora”, ii) o sentido de “campo” que caracteriza nosso “aqui-agora”, iii) o caráter sempre “inédito” (e, nesse sentido, criativo) dos ajustamentos que estabelecemos, a partir de nosso fundo temporal e frente ao mundo e ao outro, no campo, iv) a razão pela qual o “aqui-agora” é não somente um encontro com o mundo e com o outro, mas a experimentação de nossa unidade (awareness) frente ao mundo e ao outro, experimentação essa que é o que justifica a escolha que Perls e Goodman fizeram pelo nome self.
A aplicação do gráfico husserliano às dinâmicas do contato foi algo extremamente simples de se fazer, depois que se compreendeu a relação que havia entre a seguinte passagem e as Lições sobre a consciência interna do tempo de Husserl (1994):

(a) partir do princípio e durante todo o processo, ao ser excitado por uma novidade, o self dissolve o que está dado (tanto no ambiente quanto no corpo e em seus hábitos), transformando-o em possibilidades e, a partir destes, cria uma realidade. A realidade é uma passagem do passado para o futuro: isto é o que existe, e é disso que o self tem consciência, é isso que descobre e inventa (1997: 209).

Ora, em algum sentido, Perls e Goodman estão descrevendo aquilo que se passa num “presente transiente”, que é o lugar do contato, e que não é senão o campo de presença do qual falava Husserl. Do passado vem algo, que não é o próprio dado, mas o fundo desde onde o dado assume, na fronteira material de meu organismo e do meio, o valor de figura. De fato, só o que podemos perceber como realidade material é o dado. Mas este não significaria nada se não houvesse, por um lado, um fundo de passado que lhe desse sentido próprio (pré-contato) e um fundo de possibilidades motoras (contato projetado) que me permitisse encontrar, doravante – e isso quer dizer, noutro dado, noutra configuração material – um modo de resolução (contato final) do dado antigo, que então já se teria tornado passado (pós-contato).


O pré-contato é uma organização espontânea do dado e dos co-dados na fronteira de contato. A partir dos co-dados (que comparecem como fundo), o dado (seja ele próprio, intero ou exteroceptivo) “figura” como necessidade. A rigor, o dado não vem do nosso fundo temporal, muito embora nossas experiências temporais possam estar representadas em um dado presente, como um ato de recordação, uma fotografia, etc. O dado se impõe em nosso campo de presença como uma ocorrência material, como um evento de fronteira. Mas, de nada adiantaria ele se impor se nós não o apanhássemos, se nós não nos ocupássemos dele (“introjeção” saudável). O que é bastante óbvio em nossa experiência cotidiana, afinal, nem tudo o que “ataca” nossa retina se configura, para nós, como objeto visual. Ou, de outra forma, nem tudo o que enxergamos chama nossa atenção. Para que isso aconteça é preciso que haja uma “forma especial de contato” entre os dados materiais visados e o fundo de nossas vivências. O que é algo que não depende de nossa deliberação. Trata-se de um acontecimento espontâneo, como uma “síntese passiva”, diria Husserl. Trata-se, enfim, do pré-contato. De forma passiva (razão pela qual falamos de um “pré” contato), o ego recolhe do id um fundo que, de modo não deliberado, é agregado ao dado. Eis aqui a sensorialidade, eis aqui a emergência da figura na fronteira de contato, que é essa gestalt entre nosso fundo de vividos (nosso corpo agigantado como id) e o dado propriamente dito (fenômeno físico).
No contato, o horizonte de futuro aparece pleno de possibilidades, o ego arrasta o meio para uma virtualidade, que é a virtualidade da deliberação, da decisão. Uma deliberação nunca é, de fato, um evento que se resume à matéria dos dados envolvidos, mas é uma abertura para uma nova configuração. Trata-se, em verdade, de um salto para além da materialidade do que está dado. Trata-se de uma abstração, na forma da qual o ego se lança ou, então, se esconde (respectivamente, “projeção” e “retroflexão” saudáveis).
E, uma vez tomada a decisão, só resta ao ego o movimento radical de transcendência, o lançar-se para o outro ou na direção do mundo. É aqui que se estabelece o contato final; o qual não é senão o encontro com um novo dado, junto ao qual o dado passado não pode ser mais que um fundo, como a sede torna-se fundo ante o gole de água fresca. Em verdade, estamos aqui já diante de um novo campo de presença, junto ao qual o dado passado não pode aparecer senão como co-dado. Ainda assim, o ego pode retornar a esse co-dado, não apenas como modificação de uma necessidade antiga, mas como o representante de uma experiência “bem” ou “mal” sucedida, o que necessariamente implica um modo de valoração, o qual não é senão a forma como eu mesmo me identifico naquilo que eu vivi (confluência saudável). Temos então a assimilação do passado como representação de nós mesmos. O que Perls e Goodman vão chamar de pós-contato. É exatamente nesse ponto que se dá a formação da “personalidade”, que é essa outra função do self, nos termos da qual recolhemos o passado como aquilo com que nós nos identificamos, adquirimos subsistência para além do campo de presença (ou “aqui-agora”) em que efetivamente estamos.


Neurose e temporalidade

Para Perls e Goodman (1997), o comportamento neurótico também é um modo de ajustamento do self. Trata-se, assim como os demais comportamentos, de uma dinâmica de troca de energia na fronteira de contato, que podemos entender sob a ótica das relações de figura e fundo e, por conseguinte, como um evento temporal. Mas, esse ajustamento tem uma peculiaridade. A saber, a função ego não consegue criar, para o dado, nada de novo. Por vezes, ele sequer consegue admitir a existência de um dado. Ora, o que se passa aqui? Como o ego vive essa privação? O que há de essencial nisso?
Segundo Perls e Goodman, quando o ego vai para o contato, ele pode sofrer uma ação contrária ou se deparar com uma ocorrência que lhe impede de realizar o almejado. Nesse momento, o ego não tem muitas alternativas, senão deliberar em favor da inibição de sua ação. O que não seria problemático, não fosse o fato de que, em certas ocasiões, mesmo tendo sido esquecida, tal deliberação continua atuante, como inibição disfuncional. Tal implica que, mesmo não havendo, na fronteira de contato, um dado que exigisse tal inibição, ela continuaria atuando como interrupção da livre emergência de co-dados, como impedimento da configuração espontânea do fundo (de orientação e de possibilidades), desde onde aquele dado pudesse adquirir status de figura. Eis então a neurose, que é

a evitação do excitamento espontâneo e a limitação das excitações. É a persistência das atitudes sensoriais e motoras, quando a situação não as justifica ou de fato quando não existe em absoluto nenhuma situação-contato, por exemplo, uma postura incorreta que é mantida durante o sono. Esses hábitos intervêm na auto-regulação fisiológica e causam dor, exaustão, suscetibilidade e doença. Nenhuma descarga total, nenhuma satisfação final: perturbado por necessidades insatisfeitas e mantendo de forma inconsciente um domínio inflexível de si próprio, o neurótico não pode se tornar absorto em seus interesses expansivos, nem levá-los a cabo com êxito, mas sua própria personalidade se agiganta na awareness: desconcertado, alternadamente ressentido e culpado, fútil e inferior, impudente e acanhado, etc (1997: 235-6).

Ora, alguém poderia perguntar pelos motivos da inibição deliberada, ou, então, pelas razões do esquecimento dessa inibição. Poderia alguém ainda perguntar por que essa resposta do passado retorna de modo anônimo. Mas, cabe aqui a ressalva de que, por mais legítimas que sejam essas questões, elas só podem ser respondidas desde um ponto de vista genético, explicativo, o qual, definitivamente, não é o ponto de vista da Gestalt-terapia. Afinal, o ponto de vista genético sempre pressupõe haver, aquém de nossas ações, motivos que as pudessem explicar. Contra o que vão argumentar Perls e Goodman, no sentido de mostrar que todo motivo sempre implica um ato que o realize. De onde se segue a postura dos gestalt-terapeutas no sentido de suspender as explicações em proveito da descrição das ações que aparecem na fronteira de contato. Nas palavras de Perls e Goodman interessa aos gestalt-terapeutas “analisar a estrutura interna da experiência concreta, qualquer que seja o grau de contato; não tanto o que está sendo experienciado, relembrado, feito, dito, etc., mas a maneira como o que está sendo relembrado é relembrado, ou como o que é dito é dito ... “ (1997: 46. Grifo dos autores). E, de fato, em vez de construir uma gênese teórica das neuroses, Perls e Goodman vão se limitar a descrever a forma ou orientação específica da relação entre meus horizontes temporais (fundo) e os dados na fronteira de contato. De onde se segue a definição de neurose não como a conseqüência de uma causa remota, mas como um modo especial de ajustamento em que, por ação de uma inibição, o fundo se furta ao dado, impedindo a formação das figuras, por meio das quais o self poderia experimentar sua própria unidade: gestalt aberta.
Mas qual é, então, essa forma ou estrutura interna da experiência concreta de contato que opera na neurose? Ora, no livro Gestalt-terapia (1997), Perls e Goodman afirmam que, na neurose, o self está inibido, isto quer dizer, é incapaz “de conceber a situação como estando em mutação ou sofrendo outro processo; a neurose é uma fixação no passado que não muda” (1997: 181). Há novamente aqui o explícito reconhecimento da natureza temporal do self, mesmo quando o self opera um ajustamento neurótico. E a questão, então, é descrever essa temporalidade da neurose. O que não é senão discriminar as diversas formas como esse “passado” intervém impedindo as diversas dinâmicas temporais de contato (pré-contato, contato, contato final e pós-contato).
Nós podemos encontrar essa descrição no capítulo XV da terceira parte daquele mesmo livro. Lá Perls e Goodman referem-se à neurose como um processo único, o qual se caracteriza por formas singulares de interrupção total ou parcial do excitamento espontâneo quando uma inibição reprimida atua sobre ele. Precisamente, quando a inibição reprimida priva o ego de um horizonte de passado, não há formação de figura na fronteira de contato. O dado não significa nada e, conseqüentemente, o self não pode experimentar, nesse dado, a awareness de sua própria unidade. Só resta a ele confluir no vazio. Eis aqui o ajustamento criativo que Perls e Goodman chamam de confluência. Quando a inibição mascara nossa própria história (inverte nosso afeto, deturpa a awareness de nós mesmos), o dado na fronteira não pode surgir senão como uma figura estranha que, assim, é admitida de modo coercitivo, conflitivo: eis aqui a introjeção neurótica. Já quando a inibição age de modo a obnubilar o horizonte de possibilidades de nosso self, desvinculando-o de nós mesmos, esse será experimentado como algo “no ar”, ou que pertence a outrem. Conseqüentemente, não cabe mais a mim, mas sim a este outrem tomar conta ou fazer algo com o dado que aparece na fronteira de contato. O dado não me diz respeito, mas diz respeito a outrem. Eis aqui o ajustamento criativo que Perls e Goodman chamam de projeção neurótica. Se, entretanto, em vez de obnubilar meu horizonte de possibilidades, a inibição agir de modo a subordina-la às possibilidades de outrem, minha ação na fronteira de contato não pode mais ser espontânea. Eu não posso confrontar a expectativa do outro. Por isso, o conflito deve ser evitado, o que significa, concretamente, que não posso operar com o dado. De onde se segue que, em vez disso, me ocupo de destruir minhas próprias possibilidades (futuro), bem como a história desde onde elas surgiram (passado). Eis aqui o ajustamento criativo denominado de retroflexão neurótica. Por fim, se a inibição reprimida atuar sobre meu horizonte de possibilidades, de modo a converte-lo em algo que valesse por si, independentemente dos dados reais na fronteira de contato, meu self entrava, perde a espontaneidade. Dessa forma, não posso mais transcender meu campo de presença. Não posso mais passar de uma figura a outra. Não posso mais lograr o contato final. Tal interrupção é denominada por Perls e Goodman de egotismo.
No gráfico a seguir, que é a uma continuação do gráfico anterior, acrescido da representação dos ajustamentos neuróticos, procuramos descrever, na série dos eventos de fronteira, as diversas figuras (que alguns preferem chamar de sintomas) observáveis. São elas, enfim, que exprimem, de modo material (no organismo “O” e no meio “M”), a incapacidade (mas que, ainda assim, implica uma satisfação possível “S”) do ego para viabilizar a awareness de minha própria unidade como self frente às figuras (“ausentes” no caso da confluência, “estranhas” no caso da introjeção, “do outro” no caso da projeção, “impossíveis” no caso da retroflexão e “irrelevantes” no caso do egotismo) que se formam na fronteira de contato.


Na confluência temos como evento de fronteira o apego ao conhecido, ao passado imutável, à situação aberta e a conseqüente paralisia e dessensibilização a qualquer fonte de excitamento ou surgimento do novo. O horizonte de passado é a inibição reprimida impossibilitando que os co-dados (vividos passados) sejam retomados em uma nova figura, portanto não há qualquer surgimento de figura. Não há nenhum horizonte de futuro, pois não se estabelecem possibilidades para uma figura que não existe, o que faz com que o “fluir com” o outro seja a única saída constituindo-se em uma satisfação possível histérica, uma espontaneidade aleatória, sem controle do ego.
A interrupção do processo de contatar em seus primórdios (pré-contato) caracteriza um processo introjetivo. Só identificamos esse processo quando, na fronteira, aparece uma inversão dos afetos (por exemplo, não gostar de algo ou alguém em vez de gostar e vice-versa) e um comportamento resignado frente às leis do outro. A única deliberação possível do ego é uma deliberação adaptada, ou seja, seguir o que o outro quer (possibilidades adaptadas no horizonte de futuro). Resta daí uma satisfação possível masoquista de estar sob o jugo da lei do outro, de se identificar como alguém bom e obediente, etc.
Na interrupção projetiva, o que aparece na fronteira de contato é o repúdio à emoção e uma provocação passiva. Essa última tem em vista provocar aquele somente a quem se reconhece possibilidades de ação: o outro. É neste outro que se depositará o que não pode ser assumido como próprio, ou seja, a emoção gerada pelo confronto de uma necessidade e sua expressão no meio. A satisfação possível se dá no mundo mágico da fantasia, ali os desejos se realizam, enquanto que, na realidade, não há contato final.
Quando o que observamos na fronteira é uma tentativa obsessiva de desmantelar o passado, como se houvesse uma forma de refazê-lo sem os erros cometidos e, junto com isso, um comportamento auto-destrutivo, podemos intuir que uma retroflexão se estabeleceu como interrupção do processo de contato. Aqui o horizonte de futuro é apenas o si mesmo, a única possibilidade do excitamento chegar a algum termo. A satisfação possível é o sadismo, pois, ao infligir sofrimento a si próprio, a pessoa compromete o outro, seja pela pena, pelo cuidado ou pela culpa, conseguindo com isso concluir seu intento, mesmo que indiretamente.
Uma última interrupção descrita por Perls e Goodman (1997) é o egotismo. Não raro enfrentamos essa situação de fronteira na clínica quando observamos nosso cliente se perder em abstrações infindáveis, explicações para tudo, argumentos bem construídos e um perfeito controle deliberado. A inibição reprimida (horizonte de passado), aqui, atua impedindo o contato final, e como horizonte de futuro só encontramos mais e mais deliberações abstratas. Para um contato que não finaliza a satisfação possível é a vaidade, fixação num “falar sobre”, numa “construção inteligente” de uma ficção que substitui o contato verdadeiro.


Considerações finais

Cabe ressaltar aqui que essa descrição das interrupções do processo de contatar não se presta à classificação de pessoas neuróticas, como poderia sugerir uma concepção substancialista. Da mesma forma, ela não se pretende um tratado de psicopatologia, no qual o cliente encontraria a explicação da causa de suas próprias patologias. Não obstante admitir que não seja impossível que a delimitação de um motivo, seja ele a força de atração exercida pela satisfação possível adquirida num ajustamento passado, seja ele o medo de se reencontrar a vivência de frustração de outrora, possa ajudar o cliente a restabelecer a awareness de seu próprio funcionamento, a Gestalt-terapia não acredita que tais delimitações analíticas sejam condição suficiente, menos ainda condição necessária para que uma pessoa venha a transcender a forma de ajustamento em que está aprisionada. Por mais úteis que possam ser essas informações no trabalho psicoterapêutico, elas só são efetivas quando “reconhecidas” como aquilo que continua vivo em meu campo atual, em meu aqui-agora. Razão pela qual, a ênfase da Gestalt-terapia repousa sobre aquilo que se vive na fronteira de contato.
Nesse sentido, a descrição da estrutura interna do comportamento neurótico não propõe nenhum princípio universal, nenhuma mitologia ilustrativa da origem de nossos desajustes. O que em verdade se está a descrever é a possibilidade (e seu comprometimento) da experiência de unificação da existência em torno daquilo que se impõe como matéria, bem como o caráter finito e sempre passível de retomada dessa experiência. De onde se segue que, o sentido dessa descrição estrutural não é epistemológico ou normativo, mas “operativo” (no sentido fenomenológico desse termo). Afinal, por meio dela, a Gestalt-terapia não quer dizer o que é a vida, ou a patologia dela, mas “como” ela se dá a conhecer na fronteira de contato, a saber, como retomada (saudável) ou interdição (neurótica) de nossa história vivida.
De fato, a grande virtude da descrição temporal da constituição da fronteira de contato, bem como de sua interrupção, é a visualização da maneira como a história de cada cliente comparece ou como fundo, ou como obstrução da constituição de novas figuras. Nesse sentido, a metodologia de descrição da neurose prima por discriminar os diversos lugares, na fronteira de contato, em que o tempo intervém (de maneira espontânea, como fundo, ou de maneira neurótica, como inibição habitual). E esses lugares são o pré-contato, o contato, o contato final e o pós-contato. Tendo em vista esses lugares, Perls e Goodman puderam descrever a seqüência, segundo a qual, a temporalidade de cada qual intervêm na fronteira. E eis em que sentido, no livro Gestalt-terapia (1997), Perls e Goodman puderam falar de uma orientação progressiva do comprometimento do contato e, correlativamente, da possibilidade de uma intervenção terapêutica capaz de desencadear, no cliente, uma orientação contrária. Mas isso já é tema para outro trabalho.

Referências

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STOEHR, Taylor (1994). Aquí, Ahora y lo que Viene: Paul Goodman y la Psicoterapia Gestalt en Tiempos de Crisis Mundial. Trad. Renato Valenzuela. Santiago: Cuatro Vientos, 1998.


MÜLLER, M.J.; GRANZOTTO, R.L.


Tal como se pode ler na terceira parte do segundo volume do Gestalt-terapia (1951), ao conceberem a experiência clínica como um sistema-self, Perls, Hefferline e Goodman (doravante PHG) concebem ao menos três lugares diferentes que podem ser ocupados por um clínico. Eles são pensados a partir da presença ou ausência, em um campo que envolve o clínico, o consulente, ou vários consulentes, das funções atribuídas a um sistema self. Trata-se da psicose (comprometimento da função id, lugar ético de manifestação dos afetos), da neurose (comprometimento da função de ego ou de ato, lugar político da manifestação dos desejos) e da aflição (comprometimento do self espontâneo, a saber, das representações sociais compartilhadas que constituem a dimensão antropológica de nossa existência ou, simplesmente, função personalidade). Segundo os autores em tela: “(c)omo distúrbio da função de self, a neurose encontra-se a meio caminho entre o distúrbio do self espontâneo, que é a aflição, e o distúrbio das funções de id, que é a psicose” (1951, p. 235). O que significa dizer que, o distúrbio (ou vulnerabilidade) de uma função ou de outra reserva ao clínico um lugar especial:
- se não houver fundo afetivo para as demandas, o clínico será convidado a ser testemunha da atividade de produção de suplências aos afetos, suplências estas às quais denominamos de ajustamentos psicóticos;
- se a função de ato (ego) no consulente se apresentar dividida por conta de um fundo inibitório, o clínico será demandado a agir pelo consulente, o que caracteriza um ajustamento neurótico;
- mas se não houver, para o clínico e seus consulentes, representações às quais possam se identificar, seja por conta de uma privação antropológica (como nos desastres), política (como na exclusão psicossocial e político-econômica) ou ética (como nos regimes totalitários de encarceramento), o clínico será conclamado a prestar uma ajuda solidária, será requisitado a participar de um ajustamento de inclusão.
Em rigor, apenas a clínica da neurose foi desenvolvida por PHG. As outras duas, apesar de anunciadas, permaneceram incoativas; e tem sido objeto de nosso esforço desenvolver, a partir da teoria do self, a clínica da psicose e do sofrimento ético-político e antropológico (Müller-Granzotto & Müller-Granzotto, 2007, 2008; Müller-Granzotto, M. J. 2009, 2010; Müller-Granzotto, R.L., 2010.)
Acontece, entretanto, que nenhuma destas três modalidades logra pensar certos fenômenos clínicos típicos de nosso tempo, embora não duvidemos que eles estivessem presentes em outras épocas. Referimo-nos àquelas experiências de consultório, mas não exclusivamente, em que não nos sentimos manipulados (como nos ajustamentos neuróticos, em que somos manipulados a desejar pelos consulentes), ou rejeitados (como nos de busca, em que as buscas na realidade tomam o lugar dos afetos ou excitamentos), ou ainda convocados a uma ação solidária (como nos ajustamentos de inclusão em decorrência do sofrimento ético-político). Referimo-nos àquelas experiências em que nos sentimos antes ameaçados, seja pela inconseqüência dos ajustamentos que nossos consulentes produzem, seja pela finalidade mesma desses ajustamentos, que às vezes faz de nós alvos a serem aniquilados.
Em comum, estas experiências põem em tela um flagrante conflito entre as possibilidades políticas (ou desejos) dos sujeitos (de atos) que nos procuram e nossa posição política e antropológica, a qual, por vezes, encarna os desejos, os valores e pensamentos do Outro Social (conjunto de introjetos compartilhados intersubjetivamente como dispositivos de saber e de poder). Aparentemente, tudo se passa como se aqueles sujeitos não encontrassem lugar para desempenhar, face aos nossos desejos e ao nosso sistema de pensamentos e valores, os desejos que lhes valessem a ocasião de operarem com os excitamentos que nosso encontro houvesse desencadeado. Ou, ainda, tudo se passa como se nossa posição (política e antropológica) significasse para estes sujeitos a impossibilidade de operarem com os próprios desejos. Razão pela qual estes sujeitos ver-se-iam obrigados a substituir seus desejos por semblantes de desejo, como se assim pudessem escapar ao conflito. Ou, então, ver-se-iam obrigados a assumir uma postura quase hostil, eminentemente estratégica, a qual faria de nós alvos a serem aniquilados. Nos dois casos, reconhecemos dois ajustamentos criadores, duas formas originais para lidar com o conflito político e antropológico constitutivo da vida social dos sujeitos de ato: provisoriamente denominamos a estes ajustamentos de “banais” e “anti-sociais”. Entrementes, porquanto nestes modos de ajustamento o conflito não implica a multiplicação das possibilidades de criação social, porquanto, nestes modos de ajustamento, o sujeito de atos ou se aniquila ou aniquila o interlocutor (no caso, o terapeuta), julgamos possível e recomendável o estímulo a novas formas de vivência do conflito, às quais não necessariamente impliquem a aniquilação da interlocução.

Ajustamentos banais

É uma realidade de quase todas as famílias a existência de parentes improdutivos, ou estagnados em algum tipo de atividade repetitiva, incapaz de produzir interesse ou respeito. Ou, então, é comum para todos nós termos de conviver com pessoas destituídas de ambições, projetos e desejos, como se a única coisa que lhes restasse fosse reproduzir alguns poucos papéis na periferia das ideologias de massa. Aparentemente, não se interessam em ser reconhecidos (como cidadãos, como empreendedores, como consumidores), preferem desfrutar no anonimato as imagens produzidas em sites de pornografia e em redes de relacionamento (twitter, facebook, Orkut, reality show...), ou entregar-se ao entorpecimento produzido por substâncias marginalizadas (como a cocaína, o álcool, LSD, o ecstasy, para citar algumas). Em vez de se posicionarem nos conflitos e nas disputas de natureza política e econômica, deixam-se governar pelos jogos de azar, pelas previsões místicas e pelos rituais secretos de natureza disruptiva (como nos distúrbios alimentares). São pessoas moldadas às poucas e fugazes possibilidades fornecidas àqueles que desistiram de ocupar um lugar social ou operar com os próprios desejos; o que, por vezes, significa fazer do corpo (tátil, imagético e discursivo) mercadoria sem valor subjetivo, qual gadget (para usar a gíria da eletrônica). O que não significa haver entre estas pessoas e os gadgets uma relação de identificação passiva, como aquela que caracteriza a função personalidade. Ao contrário, os gadgets não desencadeiam nenhum tipo de implicação subjetiva. São apenas geringonças, destituídas de importância e afetividade, destinadas apenas ao consumo sem meta. Quando fazem do corpo-próprio um gadget os sujeitos abdicam da própria capacidade de agir e, por conseguinte, nivelam-se a condição de mercadorias supérfluas.
A vinda ao consultório destes sujeitos-mercadoria é para o clínico algo sempre muito decepcionante. Não se vê, nesses consulentes, nenhuma sorte de reflexão, menos ainda contato com o que possam estar repetindo (função id), ou desejando (função de ato). Os sujeitos-mercadoria não tentam responder (como nas psicoses), menos ainda manipular (como nas neuroses), ou pedir ajuda (como no sofrimento ético-político). Eles simplesmente “substituem” a awareness pelo consumo supérfluo e inconseqüente, como se neste tipo de consumo estivessem desincumbidos de sentir (awareness sensorial), desejar (awareness deliberada) e assumir identidades sociais (awareness reflexiva). Parecem antes desertores da própria condição de sujeitos (de ato). Não querem sentir nada: tomam analgésicos para a dor, antidepressivos para a tristeza, reguladores de humor para a alegria, cafeína para o sono, indutores de sono para a vigília. Também não querem fazer nada: alienam-se na sorte e no azar em vez de trabalhar, consomem em vez de se divertir, usam jargões em vez de se comunicar, vestem-se com tecnologia – fones de ouvidos, telefones, games – para se conectarem a nada. Tampouco querem se refletir em representações sociais que lhes valessem identidades das quais se orgulhassem: mostram-se em restos de semblante – piercing, silicone, músculos “bombados”, tatuagens, tênis de marca (...) – para não serem vistos; fixam-se em imagens pelas quais não precisam responder – pois as comunidades virtuais não exigem “opinião”, “debate”, “reflexão” aos seus seguidores -; acompanham a vida alheia sem o risco de serem interpelados - pois, a vida do outro retratado em álbuns e filmes postados na internet não toma conhecimento de mim -; desprezam a família, a comunidade e a sociedade sem precisar se posicionar – como na anorexia -; posicionam-se de modo a que ninguém possa saber – como na bulimia. Nos restos da cultura ¬– sejam tais restos drogas, semblantes fragmentados, gadgets, jogos de azar ou identidades disruptivas (como no caso dos distúrbios alimentares) - resume-se toda a vida do consulente, que assim se dispensa de ter desejos ou identidades sociais pelas quais pudesse se responsabilizar. Ao contrário, a substituição dos desejos e papéis sociais por restos de cultura parece ser uma estratégia de banalização das demandas.
Eis por que, inspirados nos relatos da filósofa Hannah Arendt (1963) a respeito do julgamento do nazista Adolf Eichman, resolvemos denominar de banais a estes ajustamentos. Trata-se de sujeitos que, diante deste Outro muito poderoso, que é o Outro capitalista, abrem mão dos seus excitamentos e de suas autonomias criativas, mas nem por isso se submetem a ele, elegendo a banalização das demandas como forma de resistência. De onde não se segue nossa adesão à leitura de Hannah Arendt. Se, por um lado, concordamos com Hanah Arendt em que os sujeitos devem poder ser responsabilizados pelas conseqüências de seus atos banais, por outro, eles devem poder ser ajudados. Afinal, ainda que se trate de atos injustificáveis, os atos banais podem ser reações face às injunções totalitárias do Outro social. Por outras palavras, os atos banais – ainda que inconsistentes do ponto de vista do ideal que reconhece a autonomia e responsabilidade de cada ser humano – podem ser compreendidos como uma forma de resistência – ineficiente, sem sombra de dúvida – diante da exigência capitalista de que nos tornemos sujeitos consumidores a despeito de nossos excitamentos e de nossas identidades sociais. E nossa proposta gestáltica diante da banalidade consiste, por um lado, na responsabilização dos sujeitos envolvidos; mas, também, no encorajamento da capacidade de cada qual para enfrentar o Outro capitalista.
O tratamento ao sujeito banal é uma demanda do próprio Outro capitalista. Afinal, porquanto se transformaram em sujeitos-mercadoria, os sujeitos (agora banalizados) deixaram de desejar, o que significa dizer, deixaram de consumir novas mercadorias e, assim, movimentar o mercado capitalista. Reabilitar o desejo por novas mercadorias: eis a expectativa do Outro Social capitalista em relação aos sujeitos banais. E, na contramão da expectativa capitalista, acreditamos que não devemos tirar de todo o objeto da alienação banal (a droga, a imagem, o vício...). Afinal, não podemos esquecer que este objeto seja, talvez, uma forma de resistência face ao Outro Social. De onde nossa simpatia pela política de “redução de danos”: ela é um acompanhamento que, ao mesmo tempo em que preserva as poucas formas de defesa construídas pelo sujeito banal, mobilizam nele alternativas de enfrentamento, porquanto, na redução de danos, não se trata de reabilitar um consumidor, mas de reabilitar um sujeito crítico em relação às causas de sua banalização.
Nas formas de banalização relacionadas ao escamoteamento do conflito, como é o caso das formações disruptivas, tais como a anorexia (em que o sujeito despreza a família, a comunidade e a sociedade sem precisar se posicionar) e a bulimia (em que o sujeito posiciona-se de modo a que ninguém possa saber), a estratégia de intervenção também consiste no encorajamento dos sujeitos. Eles devem poder ser mobilizados a assumir e a executar o desejo de enfrentamento ao Outro Social, geralmente representado por algum familiar, parente ou figura de poder, contra o qual não conseguem fazer valer os próprios desejos.
De um modo geral, acreditamos que o trabalho de “restituição do lugar de protagonistas aos sujeitos que desistiram de sua capacidade ativa em favor de restos da cultura de massa” é a estratégia mais eficiente tanto para a redução dos danos advindos da alienação irresponsável, sem reflexão (como diria Hannah Arendt), quanto para o enfrentamento da verdadeira causa do esvaziamento da capacidade crítica destes sujeitos, precisamente, o totalitarismo do Outro capitalista, constitua-se ele na forma de uma demanda de consumo ou de uma demanda por adesão cega a uma ideologia. Resgatar, nos sujeitos banais, a revolta, indignação e capacidade reativa é o mesmo que fortalecer, em cada qual, a função de ato por cujo meio eles haverão de mobilizar desejos (políticos) a partir dos excitamentos disponíveis e identidades sociais críticas (face às demandas totalitárias).

Ajustamentos anti-sociais

Assim como o sujeito banal, o anti-social não está alienado na cultura, no Outro social (capitalista). Também tenta destruí-lo. Mas, à diferença do banal, lança mão de seus excitamentos e produz desejos (políticos) de confrontação, cuja meta, em última instância, é repetir a satisfação advinda da supressão da presença do Outro Social. O que significa dizer que, diferentemente dos ajustamentos banais, nos ajustamentos anti-sociais, os sujeitos enfrentam abertamente o Outro autoritário. Não se trata de um expediente paranóico, como se o sujeito induzisse o Outro Social a ocupar uma posição que justificasse o enfrentamento. Ao contrário, o sujeito agora parece não precisar de motivos para enfrentar o Outro Social. E o faz de um modo que sequer o Outro Social percebe que está sendo aniquilado.
Seja na Atenção Básica, no trabalho junto ao território em que vivem as famílias, ou nos consultórios particulares, é relativamente freqüente entre os profissionais de saúde o sentimento de desconforto, fortemente relacionado ao medo proveniente de uma ameaça que se anuncia na postura assumida por determinados usuários ou consulentes, os quais, não obstante a forma sedutora com a qual nos investem no lugar de cuidadores ou defensores, paulatinamente impõe-nos condições constrangedoras, que inviabilizam nosso trabalho. Não se trata da presença de ações manipulativas, como nos ajustamentos de evitação, em que somos requisitados a nos responsabilizar pela ansiedade dos sujeitos demandantes, como se pudéssemos ou devêssemos fazer algo que eles próprios não querem fazer. Ao contrário, tudo se passa como se, sob o pretexto de uma solidariedade ético-política, ou de uma encantadora manipulação neurótica, fôssemos enredados em uma trama, cujo desfecho fosse nossa aniquilação ou, pelo menos, a aniquilação de nossos valores e instituições (PHG, 1951, p. 148). Tornamo-nos confidentes de crimes, contravenções e vulgaridades, cujo relato – por parte do consulente – gera em nós constrangimento; constrangimento que ao consulente parece divertir. Ou, então, somos enredados em jogos relacionais, como aquele em que determinada pessoa começa a fazer terapia para destruir a relação terapêutica que havíamos estabelecido com o amigo dela – e por quem, ademais, fomos recomendados. Sentimo-nos obrigados a sair da condição de clínicos para defender nossa própria moralidade ou condição profissional, uma vez que sentimo-nos ameaçados por inverdades e estratégias belicosas estabelecidas pelos consulentes. A estes consulentes, muito mais do que qualquer ajuda profissional, interessa-lhes nosso mal-estar por havermos sido denunciados em nosso constrangimento ou parcialidade. Interessa o poder destrutivo que possam exercer sobre nós, o medo que possam gerar e com o qual parecem satisfazer-se.
Na segunda parte do segundo volume do Gestalt-terapia, PHG (1951, p. 141) apresentam um pequeno estudo sobre o que podemos entender por anti-social. Segundo eles:
(e)sforçamo-nos para mostrar que no organismo, antes que se possa denominá-lo de algum modo uma personalidade, e na formação da personalidade, os fatores sociais são essenciais. (...) É nesse sentido que podemos falar de um conflito entre o indivíduo e a sociedade e denominar determinado comportamento de “anti-social”. Nesse sentido também devemos certamente denominar certos costumes e instituições da sociedade de “anti-pessoais”.

Ou seja, antes de considerarmos o anti-social como um delinqüente, é preciso perceber que se trata de alguém que procura “aniquilar” (e não destruir) aquilo que ameaça sua capacidade de sobrevivência social (PHG, 1951, p.148). Desse ponto de vista, o anti-social é um comportamento criativo, um ajuste diante da ameaça que vem do mundo social. Conforme tentamos mostrar no IX Congresso Nacional de Gestalt-terapia em Vitória (Müller-Granzotto, 2009), acreditamos que a gênese das condutas anti-sociais possa estar relacionada às vivências de desistência estabelecidas pelas crianças em relação às identificações ao Outro Social, quando este Outro Social apresenta-se de maneira muito autoritária. Porquanto as identidades imaginárias fornecidas pelo Outro Social exigem ou provocam a interdição das ações desejantes desempenhadas pelas crianças, estas desistem das imagens às quais se associaram (ou foram obrigadas a se associar). Em vez da entrega passiva aos rituais e valores impostos, as crianças operam pequenos atos supressivos, os quais, não obstante declinarem do prazer (ou desprazer) advindo da identificação ao Outro Social, geram para elas certa satisfação. E eis a base daquilo que, mais tarde, pode retornar não apenas como uma decisão política face ao Outro Social, mas como uma fantasia supressiva, a que chamamos fetiche.
Não é impossível que as experiências infantis de enfrentamento ao Outro Social sejam assimiladas como hábitos; o que significa dizer que, uma vez dissolvidas em sua materialidade, restem como formas motoras e linguageiras disponíveis às demandas por excitamento que possam vir a receber nas configurações sociais futuras. É o certo que estes hábitos assimilados não pertencerão às crianças ou aos adultos nos quais vierem a se transformar, mas às situações sociais em que estiverem inseridas e nas quais uma demanda por hábitos estiver vigendo. Razão pela qual, pode ocorrer de uma demanda social exigir do sujeito de atos de então, mais do que a contrariedade ou a submissão (que corresponderiam a representações sociais específicas), certo envolvimento afetivo mais além da inteligência social requerida. E o afeto que pudesse emergir na realidade poderia ser carreado justamente por um hábito relacionado a alguma supressão que, do fundo de excitamentos disponíveis (o qual, como sabemos, não diz respeito à biografia de um sujeito, mas a sua participação na história impessoal ou função id), retornasse como orientação intencional. O sujeito de atos, então, mais além da resposta submissa ou combativa (que, como dissemos, são papéis sociais), articularia uma fantasia anti-social, como se a submissão ou o combate pudessem simultaneamente desencadear a supressão do demandante ou de qualquer agente representativo do Outro Social.
E eis então os ajustamentos anti-sociais, os quais consistiriam na produção de fantasias específicas voltadas para a supressão do Outro Social. Correlativamente às respostas da ordem da função personalidade, os sujeitos de ato articulariam no campo intersubjetivo uma fantasia cuja meta, ainda que indeterminada (como sucede a toda fantasia), dirigir-se-ia à supressão daquele que representasse o Outro Social . O nome que damos a esta fantasia supressiva é “fetiche”. À diferença da situação inacabada característica dos ajustamentos de evitação, o fetiche não é uma fantasia que ficou retida no passado por conta da ação de uma inibição. Ele é uma fantasia produzida no presente, razão pela qual, ademais, não está acompanhada de ansiedade (como no caso das fantasias manipulativas produzidas nos ajustamentos de evitação).
Intervir clinicamente nestes casos é, sobretudo, introduzir para o consulente um motivo com o qual possa se identificar e por meio do qual possa preferir o prazer da identificação a determinados papéis sociais em vez da satisfação da aniquilação. O primeiro passo da intervenção clínica, portanto, é distinguir até que ponto o ataque que estejamos a sentir é uma reação a uma postura arbitrária que estejamos a ostentar, ou é uma fantasia em que nos sentimos convidados a repetir um ritual de supressão que possa nos aniquilar. Caso a configuração de campo aponte para a segunda hipótese, é tarefa do clínico desviar o consulente para aquilo que pudesse ser surpreendente na articulação da fantasia supressiva, precisamente, que houvesse da parte do Outro Social (seja ele ou não representado por nós) tolerância suficiente para reconhecer, nas fantasias do consulente, uma demanda por inclusão social respeitosa. Ademais, a valorização da capacidade de confrontação que pudesse haver no consulente o deslocaria para um lugar não apenas desejável, mas também louvável, junto ao qual poderia desfrutar de certo prazer. De todo modo, a prudência deve ser a regra de ouro do clínico, afinal, a busca por satisfação (com a supressão alheia) não é uma deliberação da qual o consulente tenha “consciência” e a ingenuidade pode ser desastrosa para ambos.

Referências
ARENDT, Hannah. 1963. Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
GRANZOTTO, M.J.M.; GRANZOTTO R.L. 2009. Gênese das funções e dos modos de ajustamento no universo infantil à luz da teoria do self. In: XII Encontro da Abordagem Gestáltica e IX Congresso Nacional de Gestalt Terapia, Vitória – ES. 2009
_____. 2010. Clínica de los ajustes psicóticos. Una propuesta a partir de la Terapia Gestáltica. Revista de Terapia Gestalt de la Associación Española de Terapia Gestalt. Nº 30, enero de 2010, p. 92-97.
GRANZOTTO, M.J.M.; GRANZOTTO, R.L. 2010. La clínica gestáltica de la aflicción y los ajustes ético-políticos. Revista de Terapia Gestalt de la Associación Española de Terapia Gestalt. Nº 30, enero de 2010, p. 98-105.
_____. Fenomenologia e Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 2007.
_____. 2008. Clínica dos ajustamentos psicóticos: uma proposta a partir da Gestalt-terapia. IGT NA REDE, v. 5, p. 8-34
[PHG] PERLS, F.; HEFFERLINE, R.; GOODMAN, P. 1951. Gestalt
Terapia.Trad. Fernando Rosa Ribeiro. São Paulo: Summus, 1997.

FENOMENOLOGIA

MÜLLER, M.J.; GRANZOTTO, R.L.


I

Em um curso intitulado “O conceito de natureza”, ministrado entre 1956-7 no Collège de France, Merleau-Ponty refere-se à filosofia de Husserl, identificando nela duas tendências complementares. Por um lado, Husserl tem em vista superar o naturalismo da atitude natural, por cujo meio somos levados a admitir, como a verdade última acerca de nossa fé perceptiva em nós mesmos e no mundo, a vigência de uma natureza determinada “pura coisa” ou “coisa em si”, independentemente da experiência que dela possamos ter. Contra essa atitude, Husserl quer resgatar o primado de nossa experiência intencional, sem a qual nada poderia adquirir o status de uma coisa determinada, objetiva. Mas, em segundo lugar, Husserl quer salvaguardar aquilo que há de legítimo na atitude natural, precisamente, a fé perceptiva em que há um mundo e que nós somos alguém nesse mundo. Ora, se o primeiro objetivo nos leva ao idealismo husserliano – e que consiste na afirmação de que toda a existência dotada de valor objetivo é uma construção intencional de nossos atos conscientes -, o segundo objetivo nos leva a crítica desse idealismo em proveito daquilo que o torna possível, a saber, a corporeidade das subjetividades intencionais. Ainda que, para a Gestalt Terapia importe mais o tema da corporeidade, não podemos falar dela sem antes esclarecer o idealismo husserliano. O que passo a fazer nesse momento.
De um modo geral, as pessoas confundem o que é o idealismo husserliano. Acontece que Husserl emprega esse termo num sentido estritamente metodológico, sem qualquer pretensão ontológica. Idealidade não tem a ver com a existência – não importa se concreta ou abstrata - das coisas, mas com o modo como essas coisas podem ser representadas. Eis por que a fenomenologia devia ser, depois de 1913, um idealismo transcendental, pois transcendental é a palavra que designa exatamente esse método de investigação que não se interessa pelas coisas, mas pelo modo como as podemos conhecer.
Mas por que Husserl se propõe uma investigação transcendental de nossa atitude natural frente ao mundo e a nós mesmos? Justamente porque, nos termos dessa atitude, ocupamo-nos de definir o mundo e a nós mesmos, sem entretanto compreender como nós o fazemos. Ao contrário, criamos definições e acreditamos nelas, como se elas valessem por si. Aliás, “valer por si” ou “ser em si” é nossa definição predileta. Acreditamos que o mundo é um aglomerado de coisas que valem por si desde que nascem, assim como nós já nascemos corpos individuais, ocorrências materiais que trazem em si mesmas aquilo que as define, por exemplo, um código genético, um temperamento, etc... Todavia, não nos ocupamos de questionar o que nos permite acreditar nessas definições. Afinal, as tais coisas que julgamos definidas em si não aparecem, em nosso primeiro contato com elas, assim tão definidas. Nem nós mesmos nos experimentamos como seres tão definidos.
Mas o fato é que dispomos de definições já formuladas por nossos antepassados, e a utilização dessas definições nos faculta uma relação freqüentemente bem sucedida com o que surge em nossa experiência. Husserl não é contra a produção e utilização de definições. Muito pelo contrário, ele quer apenas mostrar como isso é possível. Para tal, precisamos pôr em suspenso não o mundo e nós mesmos, mas as definições que atribuímos a eles, para podermos, então, investigar ou, como prefere Husserl, descrever a origem e o funcionamento dessas definições. Dessa forma, podemos esclarecer, por exemplo, a relação existente entre a definição do corpo como sistema neurofisiológico geneticamente determinado e a experiência que nós temos desse corpo. Eis aqui o início da fenomenologia: ela começa com a suspensão das nossas teses em proveito da investigação do modo como elas funcionam. Tecnicamente falando, tal suspensão corresponde à primeira etapa da redução fenomenológica.
Ora, vocês vão nos perguntar, o que a investigação fenomenológico-transcendental vem esclarecer relativamente ao modo como representamos a nós mesmos e ao mundo? Se nos ocuparmos de descrever as definições tais como elas nos ocorrem, sem dificuldade haveremos de perceber que, em situações inéditas, vividas pela primeira vez (como a paixão, que sempre é vivida pela primeira vez), não são suficientes as palavras já empregadas por outrem. Ainda que não tenhamos alternativa senão servirmo-nos delas, elas não significam o que de inédito estejamos vivendo, a menos que introduzamos pequenas modificações, que as personalizem. Mas, de onde vêm essas modificações, essas personalizações? O que são elas em relação às falas já faladas, aos pensamentos já formulados, às definições de que dispomos? Fiel a seu professor Franz Brentano, Husserl vai dizer que essas modificações por nós introduzidas não são senão vivências intuitivas – a que Brentano justamente denominava de vivências intencionais -, na forma das quais experimentamos uma unidade pré-significativa, uma vivência de totalidade, cujas partes são por nós ignoradas. Trata-se de intuições fenomênicas, por cujo meio compreendemos, em um certo instante de nossa vida, algo que ultrapassa esse instante e vai se ligar a outras partes, a outros momentos, muito embora não possamos dizer quais são. Esse é o caso de nossos sentimentos – melhor exemplo para esclarecer o que são nossas intuições fenomênicas. Os sentimentos são vividos em um instante específico, mas nos remontam a outros momentos que, junto àquele, ganham nova vida. E é a partir dessas intuições, enfim, que as palavras que aprendemos de alguém surgem em nossa boca como aquilo que nós mesmos ignorávamos antes de fala-las. É a partir dessas intuições, enfim, que acrescentamos algo ao mundo da cultura, mas também ao repertório de nossas ações concretas junto à natureza. Percebamos aqui que, em sua descrição transcendental do modo como conhecemos a nós mesmos e ao mundo, Husserl começa admitindo a existência de um saber que se ignora, mas sem o qual todos os nossos atos se resumiriam a uma repetição.
Aliás, os atos de que fala Husserl não dizem respeito apenas a nossa capacidade para indicar, por meio de um gesto, algo que esse gesto não é, o que justamente caracteriza esse processo que denominamos de linguagem. Os atos dizem respeito a toda e qualquer transformação que possamos operar em nós mesmos e no meio; muito embora somente os atos indicativos (ou de linguagem) possam estabelecer modificações permanentes e evidentes em si mesmas, que são as nossas definições ou pensamentos. Por essa razão, acredita Husserl, é somente quando nossas intuições fenomênicas ganham, por meio de atos indicativos, a forma de pensamentos, que elas deixam de ser “compreensões indeterminadas sobre a unidade de nossa vida a cada nova experiência”, para se transformar em verdadeiras “coisas”, verdadeiros “ob-jetos”. Esclarece-se aqui, enfim, o modo ou processo pelo qual as coisas determinadas, objetivas, surgem em nossas vidas. A determinação não é um atributo das coisas em si – como supunha o homem natural-, mas do modo como nós as produzimos por nossos atos a partir de nossas compreensões intuitivas. O que nos permite entender, ademais, em que sentido a fenomenologia é, simultaneamente, uma crítica à noção de coisa em si e uma proposta de retorno às próprias coisas (zu den sachen selbst, no dizer de Husserl). Afinal, as coisas a que a fenomenologia quer voltar não são as coisas aquém de nossa experiência, mas, sim, as coisas intencionadas que nós produzimos a partir da experiência, a partir de nossas intuições.
Ora, para Husserl, junto a essas coisas intencionadas, deveríamos poder reconhecer algo que nos é próprio, algo que tem a ver com nossas intuições e nossos atos. Husserl chama esse reconhecimento de intuição essencial. Reconhecer, nas coisas intencionadas, algo que nos é próprio é reconhecer uma essência. Nesse sentido, alcançar a essência de uma variedade de flores chamadas ‘rosas’ é compreender aquilo que de invariável permanece na “minha experiência” dessas flores. Da mesma forma, atingir a essência de mim mesmo é compreender o que de invariável há na “experiência que tenho” disso que representei como eu mesmo, a saber, minha personalidade psicofísica.
Mas, eis que surge a questão: como posso reconhecer, nas coisas intencionadas, produzidas por meus atos, algo próprio? O que há de comum entre minhas intuições, meus atos e as coisas que ambos constituem? O que é essa essencialidade que reconheço como o que me é próprio nas coisas?
Ora, nesse ponto Husserl sente a necessidade de operar uma segunda redução fenomenológica – que ele chamou de redução transcendental. Afinal, não obstante a primeira redução (chamada redução eidética ou redução às essências) esclarecer que as coisas têm a ver com algo que nos é próprio, tal não elucidou o que é essa pertença. A segunda redução, por sua vez, esclareceria a vivência da pertença. E, fazendo isso, a fenomenologia resgataria aquilo que há de verdadeiro na atitude natural, precisamente, a prévia admissão do mundo e de si mesmo, o reconhecimento tácito de que o mundo, seja lá o que ele for, é acessível, é próprio a nossa experiência.


II

Mas o que é, então, essa pertença, que o homem natural já vivia – muito embora a velasse com suas definições -, e à qual a primeira etapa da redução nos reconduziu? Para responder essa questão, Husserl radicalizou o procedimento de redução das definições com as quais nós nos representamos a experiência. Tal radicalização implicou que não somente as definições herdadas, mas também as definições produzidas pelo discurso fenomenológico deveriam ser suspensas. Essa é a condição sem a qual a experiência da pertença continuaria dependente de uma prévia definição. E foi ao fazer isso que Husserl deu-se por conta de um irredutível, do qual não podia declinar. Trata-se do uso do pronome possessivo. Para se descrever a experiência de reconhecimento do que nos é próprio, Husserl precisava continuar usando o “meu”, o “nosso”. O que não implicava que devesse admitir a tese de que existamos aquém ou além da experiência . No contexto de reconhecimento do que nos é próprio, não empregamos o possessivo para caracterizar a ação de um sujeito (voz ativa), ou a ação por ele sofrida (voz passiva). Se tal possessivo, em algum sentido, implica um certo sujeito, trata-se daquele sujeito que se constrói simultaneamente com sua ação (tal como acontece nas orações em voz média). Assim compreendido, enfim, o possessivo não tem a ver com o sujeito que existe, nem com o que permanece. Apenas com aquilo que possivelmente venha a existir. Trata-se, nesse sentido, da caracterização daquilo que “posso” sentir, fazer, dizer... De onde Husserl concluiu que não é no campo da existência, mas no campo das possibilidades que eu encontro a forma mais elementar da pertença, da vivência daquilo que é próprio.
Todavia, o que é esse campo, como eu o vivo? Para descrever o domínio do possível, Husserl lança mão de uma formulação que o aproximaria de Heidegger, precisamente, a noção de “saber” mundano, de logos estético, tal como aquele que me permite saber – sem necessidade de cálculo - quanto devo me abaixar para meu cabelo não enroscar na copa da árvore a minha frente, ou quando preciso começar a pisar no freio para que meu carro não ultrapasse o semáforo fechado. Esse logos estético não é diferente daquilo que, muito antes de Heidegger, Husserl já havia reconhecido para nossas intuições fenomênicas, a saber, que elas são uma sorte de temporalidade primitiva, em que não só minhas vivências se conservariam modificadas como pano de fundo para novas vivências, como também viabilizariam a expressão de uma unidade de transcendência, de movimento, que não se realiza num interior, mas na passagem, na fronteira dinâmica daquilo que surge como matéria atual e o que retorna como horizonte de passado e futuro. Mas, agora, depois das reduções, Husserl sabe que essa temporalidade não é um atributo de alguém ou de uma coisa, não é a intuição fenomênica de uma certa pessoa, mas a construção estética, sensível de minha pessoa enquanto unidade de possibilidades que se abrem em torno de uma certa matéria. O logos estético é essa construção, é a experimentação ou awareness de mim como unidade que se constrói historicamente.
Pois bem, Husserl vai justamente chamar de corpo carnal esse campo de possibilidades que se arma em minha experiência de reconhecimento do próprio nas coisas. Corpo carnal não é, nesse sentido, uma determinada coisa, como por exemplo, um microfone ou a imagem que eu tenho de mim mesmo enquanto uma personalidade psicofísica; mas sim as possibilidades que se abrem diante dessas coisas e que me permitem ultrapassa-las em direção ao inédito. Corpo carnal tem a ver com a capacidade que tenho para reunir, num só ato, uma matéria atual e outra inatual, por exemplo, a sede que agora sinto e a esperança de encontrar água fresca. Mais do que isso, o corpo carnal é principalmente a vivência da unidade espontânea entre o que faço e sinto e aquilo desde onde e para onde minha sensibilidade e minha ação me encaminham. Essa unidade não é algo que demande uma deliberação de minhas funções corticais superiores, uma consciência representacional ou lingüística. Ela é a co-presença espontânea daquilo de que me apropriei – a saber, o mundo e os outros, os quais agora restam para mim como memória, matéria modificada ou retida – em proveito do que se apresenta em minha atualidade material. Trata-se de uma sorte de generalidade carnal, que não é diferente daquela emoção, que antes chamei de paixão, e que não obstante ser sentida num pedaço de carne que é a minha matéria atual, denuncia a presença de quem não é essa matéria, mas ainda assim está co-presente nela, a saber, o meu amado, o meu amante. E eis em que sentido, conforme a formulação de Husserl, enquanto corpos carnais somos uma subjetividade intersubjetiva, assim como o tempo é um presente entrecortado de passado e futuro.


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MERLEAU-PONTY, Maurice

1945 Fenomenologia da Percepção. Carlos A.R. de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999.



Fenomenologia da awareness em Perls e Goodman

Müller, M. J.; Granzotto R. L.

Sinopse: Trata este artigo do modo como, por meio de uma releitura fenomenológica da noção de awareness, Paul Goodman ajudou Frederick Perls na superação dos impasses teóricos implícitos à obra Ego, Fome e Agressão, e que, fundamentalmente, consistiam na dificuldade para se articular, num só discurso, a tese goldsteiniana sobre a existência de uma espontaneidade vivida sob a forma de uma intencionalidade organísmica e a tese psicanalítica sobre o caráter eminentemente histórico dos ajustamentos comportamentais estabelecidos no meio.
Palavras-chave: awareness intencionalidade consciência temporalidade

1 Impasses teóricos de Perls e a virada fenomenológica de Goodman

Conforme Stoehr (1994), biógrafo de Goodman, Perls e Goodman se conheceram em função de um artigo escrito por esse último a respeito de Reich, no qual seu autor concluía sobre a necessidade de uma profunda revisão na metapsicologia freudiana. Perls – que havia feito análise com Reich – interessou-se pelas idéias de Goodman, a quem confiou não apenas uma cópia da obra “Ego, fome e agressão” (1942), como também anotações que havia feito um pouco antes de partir da África do Sul. Em tais anotações, Perls se ocupava de refletir sobre sua prática psicoterapêutica à luz das noções que havia elaborado a partir de Goldstein, Smuts e Friedlaender . O principal desafio de Perls era caracterizar a experiência clínica como um evento de campo em que, paradoxalmente, se manifestasse uma espontaneidade egológica. Mas, ainda que as terminologias de Smuts e Friedlaender tivessem contribuído para tal caracterização, elas não conseguiam dirimir o descompasso entre a visada eminentemente material de Goldstein e a visada principalmente histórica que, por meio da noção de “ego insubstancial”, Perls procurava reabilitar da psicanálise. Ou seja, ainda que a noção goldsteiniana de auto-regulação ou de intencionalidade organísmica permitisse a caracterização do organismo como uma forma de subjetividade, essa subjetividade não incluía elementos temporais, os quais - Perls bem o sabia - eram recorrentes na experiência clínica. Goodman teria então sugerido a Perls a utilização de uma terminologia fenomenológica. Afinal, esta não apenas resguardava a matriz teórica da noção de campo empregada pelos psicólogos da gestalt – a qual Goldstein importou – bem como a fundamentava em uma egologia transcendental, cuja nota característica era justamente a temporalidade . Eis que nascia uma parceria dedicada não apenas a repensar a psicoterapia – da qual se teria desprendido a Gestalt-terapia -, mas também dedicada a descrever essa psicoterapia a partir de um referencial coerente com o caráter temporal dos eventos de campo que a caracterizassem.
Goodman sabia que Goldstein estava certo ao conceber o organismo como uma forma específica de regulação da matéria físico-química junto a um campo amplo de fatores, que denominava de meio. Mas, a psicanálise também estava certa ao dizer que o campo tem relação com uma subjetividade anônima, genérica, que se exprime de um modo particular em cada objeto. Ora, segundo Goodman (apud STOEHR, 1994), a noção fenomenológica de consciência transcendental responderia a essas duas verdades. Por um lado, ela é a dinâmica intencional de constituição de objetos em que ela mesma experimenta sua unidade, sua regulação. Por outro, ela é isso que sobeja em todo objeto, isso que ultrapassa todas as formas objetivas em proveito de sua própria generalidade temporal. Eis porque o próprio Perls (1969) irá dizer que “(e)u fiz da awareness o ponto central da minha abordagem, reconhecendo que a fenomenologia é o passo básico e indispensável no sentido de sabermos tudo que é possível saber. Sem consciência nada há. Sem consciência há vazio” (p. 88). Mas, em que sentido se relacionam as expressões awareness e consciência? Em que sentido o termo awareness designa os processos intencionais, especificamente temporais, que caracterizam a consciência transcendental?

2 Awareness e intencionalidade fenomenológica

É especialmente no segundo tomo da obra “Gestalt Terapia” que Perls, Hefferline e Goodman (1951) se ocupam de esclarecer os conceitos que nomeiam essa forma peculiar de ler e de articular, nos termos de uma nova abordagem psicoterapêutica, chamada de Gestalt-terapia, a intencionalidade organísmica e a historicidade da nossa existência.
O primeiro dos conceitos esclarecidos é justamente o conceito de awareness. Todavia, diferentemente do que acontecia na obra “Ego, Fome e Agressão” (1942), Perls - agora conforme a redação de Goodman - não vai discutir a awareness a partir de Smuts e Friedlaender . Para se compreender em que sentido a awareness designa nossa intencionalidade organísmica, bem como “nossos problemas” na vivência dessa intencionalidade, Perls e Goodman (1951) postulam uma “fenomenologia”, à qual caberia descrever os “fatores” que caracterizassem a awareness não como uma faculdade, mas como um “estado” (p. 33). A fenomenologia, desde então, passa a inspirar o modo de intervenção teórica a ser implementado na fundamentação dessa nova abordagem psicoterapêutica, que é a Gestalt-terapia. Tal abordagem exigiu dos seus criadores uma adequação dos termos utilizados por Perls (1942) em “Ego, Fome e Agressão” ao formato transcendental e, nesse sentido, eminentemente processual, da linguagem fenomenológica. As transformações da noção de awareness são exemplares nesse sentido.
No livro “Gestalt Terapia”, a noção de awareness é, de longe, a mais empregada. Não apenas isso, ela está integrada a quase todas as outras noções-chave do texto, como se pode observar na definição apresentada na introdução do segundo volume do livro. Conforme Perls e Goodman (1951), a awareness “caracteriza-se pelo contato, pelo sentir (sensação/percepção), pelo excitamento e pela formação de gestalten. O seu funcionamento adequado é o reino da psicologia normal; qualquer perturbação cai na categoria de psicopatologia” (p. 33) [grifo dos autores]. A segunda parte dessa definição trata daquilo que Perls (1942) já havia compreendido em “Ego, Fome e Agressão”, a saber, que a saúde organísmica está diretamente relacionada com o fluxo de awareness, ao passo que as formas de ajustamento disfuncional têm relação com a interrupção deste fluxo. A primeira parte, por sua vez, ocupa-se de sintetizar os aspectos principais da awareness entendida não como faculdade, mas como processo ou como “sistema-awareness” (PERLS, HEFFERLINE e GOODMAN, 1951, p. 192). Nesse sentido, a awareness é apresentada como aquilo que se dá no contato, a partir de um sentir, em forma de excitamento e em proveito da formação de “gestalt”. Ora, mas o que significam os termos contato, sentir, excitamento e formação de “gestalt”? Em que sentido designam um processo?
Perls e Goodman descrevem cada um dos termos da definição. Em primeiro lugar, tratam do contato. Ainda que, mais adiante, discutam especificamente esta noção – a qual designa a totalidade de uma determinada vivência que, por meio da awareness, operamos no interior do campo organismo/meio – no que diz respeito à definição de awareness, o contato vem remarcar as transformações que, junto à materialidade, operamos relativamente à nossa própria historicidade. Contatar é ligar-se a algo diferente e, por conseguinte, transformar aquilo que até então vigia como nossa identidade. Isso não significa que toda ligação material ocorrida no organismo ou no meio implique em awareness: a quebra de uma molécula na atmosfera ou a replicação de uma fita cromossômica, por exemplo, não exigem awareness. As ligações materiais que implicam awareness são aquelas que mobilizam meu passado, abrindo para ele um horizonte de futuro.
Para que um passado seja mobilizado em direção ao futuro é preciso, evidentemente, que esse passado esteja disponível, que ele acompanhe cada vivência material de contato. Eis então que Perls e Goodman falam do sentir. Ele é o responsável por essa disponibilidade da história de cada qual. Aliás, ele é a própria disponibilidade da história. Sentir não é, portanto, uma faculdade “receptiva” imanente à nossa constituição orgânica. Tal como os fenomenólogos, Perls e Goodman invertem a relação clássica entre estímulo e reposta, para dizer que não é o estímulo que gera um efeito (denominado recepção sensível), mas, ao contrário, é a nossa história que se transcende em direção à novidade material, determinando assim a natureza específica dessa novidade. Por isso, “(o) sentir determina a natureza da awareness, quer ela seja distante (p.ex., acústica), próxima (p.ex., tátil) ou dentro da pele (proprioceptiva)” (PERLS, HEFFERLINE e GOODMAN, 1951, p. 33). Afinal, o sentir é a prévia presença do passado como aquilo a partir do que cada dado material pode assumir um sentido, um valor.
Isso não significa, porquanto sejamos dotados de sensibilidade, que todo e qualquer dado material possa se transformar em um valor para nossa existência. Para advir como valor ou sentido em nossa vida, o dado precisa “mobilizar” nosso fundo histórico, o que significa dizer que ele deve perfilar um horizonte de possibilidades futuras para nosso passado. Ou, então, o dado precisa despertar para nossa história uma perspectiva de futuro, a chance de uma retomada. Perls e Goodman denominam de excitamento esse processo de mobilização da história em torno do dado material. Excitamento, portanto, não se restringe ao que está materialmente dado (no contato) ou co-presente como dimensão temporal (sentir). Excitamento é um processo eminentemente temporal, por cujo meio, na materialidade do dado, experimentamos a possibilidade de retomada presuntiva de nós mesmos.
Eis porque, enfim, se é verdade que a awareness é a passagem da nossa história pela série dos eventos materiais, porquanto, em cada uma dessas passagens, todas as outras são recuperadas como dimensões, o sistema-awareness é muito mais do que a sucessão de episódios isolados. Ele é um fluxo figura/fundo: enquanto uma determinada configuração material se apresenta como figura, as demais comparecem como fundo, e assim sucessivamente. Perls e Goodman, assim, vêm a dizer que o sistema-awareness corresponde à formação e destruição de “gestalten” – entendendo-se por “gestalt” um campo organizado segundo a dinâmica figura/fundo.
Essa definição de awareness - como aquilo que se dá no contato, a partir de um sentir (retido), na forma de um excitamento (ou unificação histórica), em proveito de um fluxo de unidades de sentido - repete, ainda que por meio de uma terminologia mais afinada com a teoria organísmica de Goldstein, a definição husserliana de intencionalidade. Também essa se caracteriza pelo processo de vivência de um fluxo de dados materiais que, a cada novo dado, caem como fundo de co-dados para o próximo, de modo a fornecer, para esse novo dado, um sistema de orientações em proveito de uma só totalidade de sentido. Não apenas isso, a definição de awareness de Perls e Goodman distingue, tal como o fez Husserl relativamente à noção de intencionalidade, dois níveis de articulação.
Para Husserl (1893), quando investigamos as condições dinâmicas que permitem à consciência transcendental representar, na forma de um objeto transcendente, a unidade de suas próprias vivências, é forçoso reconhecermos a vigência de um tipo especial de intencionalidade, que não se confunde com a intencionalidade de ato (Aktintentionalität). Trata-se, conforme a expressão de Merleau-Ponty (1945), da “intencionalité operative” (fungierende Intentionalität) (p. xviii, 418), que é para Husserl (1893), uma sorte de “gênese espontânea (genesis spontanea)” (p. 100), na forma da qual vinculamos cada uma de nossas vivências com todas as demais, sem que um ato de unificação seja exigido. Essa intencionalidade, conforme Husserl, nós a experimentamos de duas formas. Primeiramente, nós a vivemos como retenção do vivido enquanto fluxo de “modificações sucessivas” (p. 100). O que é vivenciado materialmente (a percepção de uma melodia, por exemplo), tão logo é experimentado, decompõe-se em sua organização material, o que não quer dizer que tal vivência deixe de existir. Sua permanência, entretanto, implica uma variedade de modificação: ela continua retida, mas como matéria modificada e, a cada nova vivência, como modificação da modificação, até que todas essas modificações estabeleçam, para as novas vivências, um tipo de horizonte. A constituição desse horizonte, por sua vez, corresponde à segunda forma de nossa intencionalidade operativa. Ela diz respeito, então, à organização espontânea desses vividos retidos enquanto “horizonte” de retrospecção e de prospecção para os novos vividos materiais. Nesse segundo formato, a intencionalidade operativa implica um tipo de “síntese passiva” (porque não é estabelecida por meio de atos reflexivos) entre o que eu vivi (e que comparece como horizonte de passado e futuro) e as minhas vivências atuais (HUSSERL, 1924, p. 256-257). Todavia, essa síntese é provisória, de “transição” (Uebergansynthesis), porquanto os elementos históricos (os co-dados retidos) me arrebatam de minha atualidade em direção a uma virtualidade, que é a abertura para um novo dado material (HUSSERL, 1924, p. 292). Assim, a vivência da intencionalidade operativa, ao mesmo tempo que caracteriza a retenção dos vividos em proveito da formação de um campo de presença em torno de um dado material atual, implica o desvanecimento desse campo em proveito do surgimento de um novo dado e, conseqüentemente, da formação de um novo campo, caracterizando a continuidade de um fluxo, que denominamos de vivência interna do tempo. Segundo Husserl (1893), trata-se de uma temporalidade

pré-fenomenal, pré-imanente, constitui-se intencionalmente como forma da consciência constituinte do tempo, e em si própria. O fluxo da consciência imanente constitutiva do tempo não é apenas, mas ele é de uma maneira tão notável, e no entanto compreensível, que nele se dá necessariamente uma auto-aparição do fluxo, a partir da qual o próprio fluxo deve poder ser necessariamente captado no seu fluir (p. 83).

Essa intencionalidade operativa, portanto, é diferente daquela “de ato” (Aktintentionalität), cuja nota constitutiva é justamente o ato de retroação lingüística em direção aos campos de presença vividos no passado e que, dessa forma, tornam-se “eternos” enquanto objetos da consciência intencional (1924, p. 107-108). Por meio de atos de retroação – os quais não são mais que signos indicativos empregados como representantes do passado retido - eu transformo o horizonte de co-dados em um anteparo determinado, em que posso me refletir ou me reconhecer como o autor das vivências então representadas.
Tal como na definição fenomenológica de intencionalidade, também na definição de awareness, há dois níveis. No primeiro – como correlato à noção de intencionalidade operativa de Husserl – encontramos aquilo que, no livro “Ego, Fome e Agressão”, Perls (1942) denominava de [1] “awareness sensomotora” (p. 69), mas que agora, mais ao estilo fenomenológico, Perls e Goodman (1951) subdividiram em [1.1] “awareness sensorial” (p. 42) ou “primária” (p. 223) e [1.2] “awareness deliberada” (p. 49), também denominada de “comportamento motor” ou de “resposta motórica” (p. 42), dependendo do contexto em que é utilizada . Enquanto a “awareness sensorial” designa o processo de retenção do já vivido (ou, simplesmente, o sentir), a “awareness deliberada” designa o excitamento (que, por sua vez, sempre implica a mobilização de nossa história ou, o que é a mesma coisa, uma ação historicamente motivada em direção ao futuro). No segundo nível – como correlativo da intencionalidade fenomenológica de ato - encontramos a “awareness reflexiva ou consciente” (p. 44), cuja característica é justamente a fixação verbal das “gestalten” vividas, que, dessa forma, se transformam em aquisições objetivas.
Em verdade, assim como para a fenomenologia husserliana, para os criadores da Gestalt-terapia, entre esses dois níveis de articulação da awareness não há ruptura. Há integração. A diferença entre esses níveis significa apenas a “orientação” retrospectiva ou prospectiva da fluidez. Nesse sentido, enquanto a awareness sensomotora (incluindo-se aí a sensorialidade e a resposta motora) implica um visar, através do dado material, as possibilidades futuras que se possam oferecer ao horizonte retido, a awareness reflexiva sempre envolve uma fixação ou um retardamento radical, geralmente exercido de modo lingüístico, em proveito da determinação objetiva de uma “gestalt” vivida no passado. Esse retardamento (ou objetivação) é extremamente importante para que o passado – que é um aspecto da awareness sensomotora e, por conseguinte, algo que está sempre se modificando a cada nova “gestalt” – seja então disponibilizado como uma gestalt imutável e, nesse sentido, como um valor determinado.
Ora, esse tratamento da awareness, nos moldes da filosofia fenomenológica, como “sistema intencional”, permitiu a Perls e Goodman safar a noção goldsteiniana de intencionalidade organísmica de sua conotação exclusivamente material. A fenomenologia acrescentou à noção de organismo materialmente inserido no meio um fundo temporal. Conseqüentemente, viabilizou a re-introdução do domínio psicológico, sem com isso eliminar as conquistas da fisiologia goldsteiniana em seu empenho para compreender a conduta como um fenômeno de campo organismo/meio. Afinal, o domínio psicológico – que Perls e Goodman entendiam como o universo dos co-dados retidos como fundo intencional junto a cada novo dado – não tinha existência autônoma ou separada da materialidade daquilo que se apresentasse no contato. Ao contrário, é somente junto aos dados materiais que os excitamentos poderiam acontecer, razão porque, em Perls e Goodman, o psicológico e o fisiológico são indissociáveis. Eles só podem ser compreendidos na imanência do sistema-awareness.

3 Awareness e consciência

O fato de Perls e Goodman atribuírem à awareness reflexiva ou consciente o poder para “determinar” valores, não significa que esses valores não tenham sido “compreendidos” num nível mais elementar, ainda que de forma indeterminada. Perls e Goodman admitem que, mesmo em um nível sensomotor, há apercepções que são vividas como pequenas interrupções na fluidez do processo de formação e de destruição de “gestalten”. Tais apercepções indicam que também a awareness sensomotora está investida da capacidade de abstração ou fixação, muito embora não se trate de uma fixação reflexiva exercida por meio da linguagem, como no caso da awareness reflexiva. E eis porque Perls e Goodman (1951) vão afirmar que também a awareness sensomotora (seja ela sensorial ou deliberada) implica uma forma de “consciência” (entendida como capacidade de fixação). Afinal, para Perls e Goodman (1951), “[...] (o que se denomina ‘consciência’ parece ser um tipo especial de awareness, uma função-contato em que há dificuldades e demoras de ajustamento)” (p. 44). A propósito, é preciso ter cuidado aqui. Essa consciência de que falam Perls e Goodman não é a consciência transcendental descrita por Husserl. Como equivalente dela, Perls e Goodman reservam o termo “self”, que designa a forma espontânea segundo a qual o sistema-awareness se configura como uma unidade no curso de nossos muitos contatos (lembrando que cada contato é a unidade de uma determinada vivência temporal junto ao campo organismo/meio).
O termo “consciência”, por sua vez, limita-se a designar aquela abstração ou fixação, por meio da qual se alcança a “compreensão” de que cada vivência é provida de uma espontaneidade, que se manifesta como mudança. Nesse sentido, a consciência é, primeiramente, esse momento do contato em que a awareness sensorial retarda-se (fixa-se ou, como preferia Perls (1942), concentra-se) nos co-dados mobilizados junto ao dado material até que, por conta própria, um horizonte de futuro se anuncie. Num segundo nível, a consciência é a “fixação” nas possibilidades futuras (que o dado abriu para os co-dados passados), até que, de forma espontânea, um novo dado material se apresente , dando início a uma nova experiência de contato. Por fim, há um nível mais abstrato de consciência que é imanente à awareness reflexiva ou propriamente consciente. Conforme Perls e Goodman (1951),

(a)té aqui estivemos falando de uma consciência rudimentar, que compartilhamos com os animais selvagens do campo e da floresta. Vamos iluminar um pouco o cenário e buscar uma ilustração mais elevada, o processo de abstrair e verbalizar (e até de escrever para revistas eruditas) (p. 76).

Aqui, a consciência coincide com nossa fixação nos produtos da linguagem e nas representações lingüísticas com as quais nos referimos às consciências que agora já são para nós inatuais. É aqui e tão-somente aqui que a consciência adquire status de “saber”, saber sobre o passado, sobre o que está agora representado.
O fato de Perls e Goodman terem admitido que mesmo a awareness sensomotora compreenderia formas de consciência estabeleceu um ponto de tensão com relação à teoria husserliana da intencionalidade operativa. Afinal, para Husserl, a intencionalidade operativa não implicava qualquer “re-conhecimento”, mesmo tácito ou antepredicativo, das vivências essenciais que, nesse nível irreflexivo, se pudesse exprimir. Em certo sentido, Perls e Goodman estão, aqui, mais próximos de Merleau-Ponty do que de Husserl. Ou, então, as consciências imanentes à awareness sensomotora aproximam-se muito daquilo que Merleau-Ponty (1945), na “Phénoménologie de la perception”, denomina de cogito tácito:

Ce que je découvre et reconnais par le Cogito, ce n’est pás l’immanence psychologique, l’inhérence de tous les phénomènes à dês “états de conscience prives”, le contact aveugle de la sensation avec elle-même, - ce n’est pas même l’immanence transcendentale, l’appartenance de tous les phénomènes à une conscience constituante, la possession de la pensée claire par elle-même, - c’est le mouvement profond de transcendance qui est mon être même, le contact simultané avec mon être et avec l’être du monde (p. 432).

De fato, o interesse de Perls e Goodman (1951) não era debater com Husserl, sequer seguir Merleau-Ponty. Queriam, sim, estabelecer uma diferença entre o sistema-awareness e as noções freudianas de consciência e de inconsciente. Por essa razão, introduzem a temática das consciências, a despeito de Husserl e, coincidentemente, na direção de Merleau-Ponty, na discussão sobre o sistema-awareness.

Quase desde o princípio Freud descobriu fatos poderosos do “inconsciente”, e esses se multiplicaram em discernimentos brilhantes sobre a unidade psicossomática, os caracteres dos homens, as relações interpessoais da sociedade. Entretanto, de algum modo esses discernimentos não se combinam numa teoria satisfatória do self, e isso, acreditamos, deve-se a uma má compreensão da assim chamada vida “consciente”. A consciência ainda é considerada, na psicanálise e na maioria de seus ramos (Rank foi uma exceção), como o receptor passivo de impressões, o associador aditivo de impressões, o racionalizador [sic] ou o verbalizador [sic]. É aquilo que é manejado, reflete, fala e não faz nada (p. 53).

Para Perls e Goodman (1951), se Freud precisava destacar o inconsciente do domínio de nossas vivências conscientes, tal se devia às limitações da noção de consciência com a qual trabalhava. Por se restringir às características de “receptor passivo, associador, racionalizador [sic] e verbalizador [sic]” (p. 53), o sistema consciente não podia abranger essas ocorrências lacunares, em que se anuncia uma espontaneidade para além de nossa capacidade reflexiva. Eis porque Freud propõe a tese do inconsciente, como se nossa existência tivesse um segundo centro, uma outra consciência regida por leis que não são as leis da consciência reflexiva. Para Perls e Goodman, ao contrário, não se trata de reconhecer, para nossa existência, dois centros diferentes, dois “senhores”. Trata-se de mostrar que nossa existência não tem centro, que ela é uma espontaneidade que se reconhece em níveis diferentes, em diferentes consciências. Sistema-awareness é o nome dessa espontaneidade que se revela parcialmente junto a esses instantes de fixação ou de retardamento, que são as nossas “consciências”. Elas, portanto, não são substâncias ou simples formas de censura. Elas são pequenas interrupções que, ao mesmo tempo em que dificultam o fluxo de awareness, instauram uma espécie de cogito, o qual, no caso das consciências sensomotoras, não chega a ser um saber, mas um cogito tácito, uma abertura àquilo que se faz por conta, precisamente, o fluir dos dados e dos co-dados em proveito do processo de formação e destruição de “gestalten”. Para Perls e Goodman, quando – no senso comum – se fala em “mente”, é a essas várias consciências que se faz referência; muito embora seja freqüente o homem comum relacionar a noção de mente a uma instância empírica ou a uma estrutura a priori, pura, tal como fazem os filósofos. Entretanto, a mente – entendida como uma consciência – é algo que não está em um lugar específico, o que também não quer dizer que ela não esteja em lugar algum. Enquanto consciência e, nesse sentido, enquanto interrupção do fluxo de awareness em proveito da configuração de novas possibilidades, a mente é um instante da experiência - de toda e qualquer experiência - razão pela qual há tantas mentes quanto experiências puderem acontecer. Com essa tese, Perls e Goodman novamente se aproximam de Merleau-Ponty (1942) que também afirma, em “La Structure du Comportement”, que se pode encontrar consciência por toda parte, mas não a pura consciência ou a subjetividade pura almejada pela filosofia. É possível encontrar, sim, a “conscience enracinée”: abertura ao mundo como “milieu universel” (p. 199), parada estratégica para que o mundo, ele próprio, possa imprimir o seu ritmo, suas possibilidades.


4 Considerações finais

Por meio de Goodman, Perls teve acesso à terminologia fenomenológica, a qual permitiu a ambos estabelecerem as reformulações que tornaram compatíveis teses que pareciam inconciliáveis: a tese psicanalítica de que somos seres eminentemente históricos e, portanto, implicados pelo passado, e a tese goldsteiniana de que, a cada momento, somos seres espontâneos, investidos de uma capacidade criativa incomensurável. Em Husserl, ambos encontraram a justa formulação daquilo que nivela, num só registro, a historicidade e a liberdade de nossa existência no mundo. Trata-se da noção de intencionalidade, a qual designa a forma como, diante dos eventos materiais, nossas vivências se distinguem em diferentes possibilidades, em diferentes individualidades. Perls e Goodman denominam de sistema-awareness o fluxo de vivências intencionais, por meio das quais nos generalizamos e nos distinguimos no campo organismo/meio, na linha divisória entre o passado e o futuro. Mas, diferentemente de Husserl, Perls e Goodman não acreditam que essas vivências necessitem da caução de uma consciência tética. A consciência tética é apenas uma das múltiplas formas de consciência – especificamente lingüística - que o fluxo de awareness pode desencadear. Ela é mais uma dentre as formas de consciência por cujo meio podemos retardar o aparecimento das possibilidades que nossa história almeja ante a contingência dos dados materiais. De sorte que, nos termos de uma fenomenologia da awareness, Perls e Goodman constituíram uma ampliação, quase merleau-pontyana, da noção de intencionalidade operativa, na qual o próprio Husserl reconhecia o fundamento de toda forma de consciência.


REFERÊNCIAS


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SMUTS, Jan Christian. 1926. Holism and Evolution. Danton: MacMillan, 1926.

STOEHR, Taylor. 1994. Here Now Next: Paul Goodman and the origins of Gestalt Therapy. San Francisco: Jossey-Bass Inc.





DIMENSÕES ÉTICA, POLÍTICA E ANTROPOLÓGICA DA INTERVENÇÃO GESTÁLTICA NO CAMPO DAS PSICOSES

MÜLLER, M.J.; GRANZOTTO, R.L.

Atenção gestáltica às psicoses: em torno e mais além da awareness

Por meio da noção de ajustamento criador, o que os clínicos gestálticos originalmente pretendiam era ocupar-se da experiência do contato com awareness, entendendo-se por awareness a capacidade dos corpos para desencadear, junto aos outros corpos, um horizonte de futuro para aquilo que entre eles fosse ambíguo, precisamente, a impessoalidade dos hábitos compartilhados. Cada experiência de contato com awareness seria um ajustamento criador, embora nem toda a experiência de criação fosse uma vivência de contato com awareness. O que, por fim, nos possibilitou (Müller-Granzotto & Müller-Granzotto, 2008), sessenta anos mais tarde, ampliar a noção de ajustamento criador e incluir, como uma de suas modalidades, uma vivência de contato que não necessariamente implica um fluxo de awareness, como parece ser o caso das experiências que envolvem formações psicóticas (mutismos, alucinações, delírios, identificações arbitrárias...). Afinal, podemos admitir alguma sorte de awareness em nossa interlocução com o mutismo, com as alucinações, com os delírios ou com as identificações arbitrárias? O que há nas formações psicóticas que possa ser considerado desejável (entendendo-se por desejo o horizonte de futuro visado na experiência de contato com awareness)? E acaso não seja possível desejar uma formação psicótica, que tipo de experiência nós podemos ter, senão dela, ao menos das pessoas associadas a ela?
É muito importante esclarecer de antemão que, quando propomos a ampliação da noção de ajustamento criador, de sorte a incluir as formações psicóticas, não estamos defendendo uma tese de inspiração nietzschiana, segundo a qual, em qualquer situação, sempre é possível “criar alegria”, “transvalorar” as moralidades, reinventar o sentido na própria partição dos significantes, “fazer contato com awareness”... Esse otimismo em torno do criar tornaria a noção de ajustamento criador um operador equivalente – por exemplo - ao “Ser-Uno-Todo-Virtual” de Gilles Deleuze (1986), como se cada experiência criativa fosse apenas mais um “simulacro” não-relacional de uma mesma interioridade virtual doadora insensata de sentido como pura duração, como afirmação do acaso e do eterno retorno. Ou, talvez, o otimismo em torno do criar tornaria a noção de ajustamento criador um equivalente da idéia (pessimista) de uma estética da existência voltada para a auto-perfeição e auto-afirmação do sujeito, como se, dando ênfase aos prazeres e não ao sexo, os sujeitos poderiam reinventar-se, sem recorrer às identidades criadas pelo sistema de nominação preconceituoso articulado aos dispositivos de sexualidade (conforme Foucault, 1981; 1984). Assim como cada simulacro derivado da dobra do ser sobre si mesmo, ou tal como os modos de redescrição da subjetividade revelados pelas múltiplas singularidades, a noção de ajustamento criador corresponderia a uma espécie de racionalidade do acontecimento, capaz de assegurar a unidade da experiência - mesmo abrindo mão das pretensões metafísicas de apoditicidade (universalidade e necessidade). Na contramão desta versão filosófica de emprego da noção gestáltica de ajustamento criador, nós preferimos dizer que a razão (inclusive a dionisíaca) não está em todo lugar (em todo simulacro, em toda singularidade, em todo contato...). Ou, então, nós preferimos seguir Perls, Hefferline e Goodman (doravante PHG) (1951, p. 33), quando admitem que nem sempre o contato esta seguido de awareness. Mais precisamente, acreditamos que o contato com awareness – e que se define pela abertura de um horizonte de desejo a partir da recriação atual do fundo de hábitos – nem sempre é possível. Ainda assim é possível o contato e, por conseguinte, um ajustamento criador. Evidentemente, este ajustamento terá um matiz muito diferente daquele que envolve awareness. Ele não mobilizará um fundo de excitamentos, tampouco desencadeará um horizonte de desejos, como se cada experiência de contato contivesse um núcleo inquebrantável, qual “rizoma” ou “estrutura” mais além da contingência da realidade empírica em que se está situado. Ao contrário, tratar-se-á antes de uma experiência enraizada na realidade; tão fixada nos diversos conteúdos (vociferantes, imagéticos, imaginários, pensados...) disponíveis que dificilmente parecerá inteligível ou desejável, como é o caso das formações psicóticas em geral.
Alguém poderia contestar nossa posição e lembrar que as formações psicóticas geram sim desejo. Elas são temáticas recorrentes na produção de muitos literatos, filósofos, psicólogos, cineastas... Como afirmar que os delírios não são interessantes depois de lermos o “Simão Bacamarte” de Machado de Assis em O Alientista (1886)? Como não se encantar com as logolalias de Estamira depois do premiado documentário de Marcos Prado? Todavia, todos concordarão que há uma diferença entre as formações psicóticas da Estamira que vive na cidade de Rezende no Estado do Rio de Janeiro e aquelas capturadas pelas lentes do cineasta. Mesmo na hipótese de que o recorte estabelecido pela câmera tenha preservado o essencial da forma como Estamira opera no cotidiano, mesmo que as lentes tenham conseguido capturar as formações psicóticas de Estamira ante aqueles que efetivamente convivem com ela, tal não é garantia suficiente de que o interesse dos espectadores do filme seja pela loucura de Estamira, antes pelo “filme” sobre a loucura de Estamira, pelo enquadre cinematorgráfico de uma vida que só participa da nossa a título de gênero artístico, reflexão política, propaganda ideológica, entretenimento, ilustração moral... O que, evidentemente, não tira o mérito do diretor e de sua equipe. Eles souberam produzir aquilo que, a partir de suas condições sociais, Estamira talvez não fosse capaz de provocar, caso quisesse ou devesse, precisamente: desejo. Por isso, conforme pensamos, nós não podemos confundir as formações psicóticas que nos visitam no cotidiano com o desejável elogio à loucura professado por grandes pensadores, como Platão, Schopenhauer, Freud, Jaspers, Lacan, Foucault, Fellini, Ingmar Bergman, Hitchkock... Quando capturadas pelos meios de comunicação – e oxalá elas continuem sendo – as formações psicóticas adquirem um espectro de desejo que não encontramos quando as visitamos lá onde elas acontecem, no seio das famílias anônimas, que lutam para manter no anonimato este estranho para o qual não conseguem encontrar função ou destino. Em seu lugar de origem, as formações psicóticas parecem refratárias a nossa presença. Não nos interessamos por elas – a não ser quando podemos fazer delas algum objeto (de estudo, de elogio, de comercialização, de especulação...) destinado a despertar o desejo em um interlocutor que não é o próprio psicótico. E não é de todo estranho que cheguemos à conclusão de que: se as formações psicóticas causam em nós algum desejo, o desejo de fato não tem relação com as formações psicóticas, mas com o uso que podemos fazer delas em decorrência de um terceiro por quem nos interessamos mais.
De fato, para quem busca contato com awareness, as formações psicóticas por elas mesmas parecem desinteressantes, anacrônicas, inadequadas. Diante do interlocutor que espera não apenas uma informação precisa, mas uma informação com valor de metáfora, que possa ser aplicada em diferentes contextos discursivos, de modo a abrir um fluxo de conversação, o sujeito da psicose escolhe fixar-se a uma palavra, a qual, por frustrar a expectativa por continuidade na conversação, é considerada pelo demandante um equívoco de percepção ou, simplesmente, uma alucinação. Ou pode o sujeito da psicose fixar-se a um arranjo de pensamentos disponíveis e repetitivos, proferidos como se respondessem ao interlocutor, não obstante permanecerem alheios às variações introduzidas pelas novas perguntas, o que aos ouvidos do demandante soará como delírio. Pode ainda o sujeito da psicose se fixar a um romance que porventura carregasse consigo ou sobre o qual tivesse alguma informação, como se todas as perguntas que o interlocutor pudesse propor já estivessem de antemão respondidas naquela obra, o que parecerá ao demandante uma valoração maníaca da literatura.
E o que então faria alguém se ocupar deste tipo de criação, se ele não desperta por ele mesmo desejo algum? Quem conhece ou convive com pessoas que se ocupam dos sujeitos da psicose sabe que não houve para a maioria delas uma escolha: foram antes os sujeitos da psicose que se impuseram eles próprios a elas. Por vezes, fazemos parte de uma família em que, independentemente das responsabilidades, não temos a alternativa de não conviver com aquele parente que delira, alucina, isola-se... Outras vezes isto é uma exigência do próprio ofício, como sucede aos profissionais que atuam em saúde mental. Pode ainda ocorrer de a psicose nos visitar qual acidente, episódio momentâneo que, todavia, deixará marcas profundas e inalienáveis. Razão pela qual acreditamos que o lidar com as formações psicóticas não exija um desejo. Tal qual realidade, elas se impõem. Diante delas não temos a alternativa de ignorá-las, ao menos por muito tempo.
De onde não se segue que acreditemos que a experiência com a psicose se limite à atenção às formações psicóticas (mutismos, alucinações, delírios e identificações arbitrárias). Muitas pessoas se dedicam aos sujeitos das formações psicóticas por que isso significa um aprendizado, uma oportunidade de participação em uma diferença, em um modo diferente de ver o todo social. Pode ainda ser a ocasião de um provento, de um reconhecimento, certo status ou satisfação. Ou, então, o fazem por que acreditam em um ideal, por exemplo, na possibilidade de que aqueles sujeitos possam ampliar-se enquanto cidadãos, profissionais, de sorte a gozarem de maior autonomia social. É o certo – conforme mencionamos alguns parágrafos acima – que o desejável aqui não é a psicose, mas algo que se pode alcançar a partir dela, o que podemos considerar algo absolutamente legítimo. Tal como o cineasta, ou o romancista, nós podemos nos servir da psicose para produzir objetos de desejo que, inclusive, acabam por acarretar benefícios aos próprios sujeitos da psicose.
Ademais, mais além da experiência de contato sem awareness que caracteriza a atenção às formações propriamente psicóticas (ou ajustamentos de busca), mais além da atenção à psicose em nome de um desejo (de reconhecimento) que ostentaríamos em relação a um terceiro que não necessariamente tem relação com a psicose, podemos admitir uma terceira forma de nos relacionarmos com a psicose. Estamos falando do cuidado dirigido às pessoas ditas psicóticas e que envolve nossa participação nos sentimentos, crenças e pensamentos que possamos dividir com essas pessoas. Afinal, além das formações psicóticas (ajustamentos de busca) e da disponibilidade para aceitarem – segundo certos limites - nossos projetos e programas de integração social, as pessoas consideradas psicóticas têm uma participação (às vezes limitada, mas ainda assim visível) nos motivos que constituem nosso cotidiano antropológico. Elas têm vínculos familiares, freqüentam círculos de amizade, vão a festas, buscam trabalho, têm valores morais, ideologias, participam de agremiações desportivas, associações diversas, enfim, vivem esta dimensão da existência antropológica que a teoria do self denomina de função personalidade. De onde se segue haver para os gestalt-terapeutas uma terceira via de interação com as pessoas ditas psicóticas. Por outras palavras, além da estranha atenção que possam destinar às formações psicóticas, mais além dos programas e projetos com os quais tentam realizar a inclusão política das pessoas psicóticas, os gestalt-terapeutas podem compartilhar com elas uma civilidade, uma amizade, uma convivência ampla no campo da realidade social. O que nos permite inferir que a experiência gestáltica de atenção à psicose tem pelo menos três dimensões distintas e complementares.

As três dimensões da atenção gestáltica às psicoses

Conforme nossa prática clínica, acreditamos que podemos discriminar três níveis de atuação:

- Por um lado, há a atenção não-desejante ao que não-deseja, ou, o que é a mesma coisa, há a experiência de contato “sem” awareness com as formações psicóticas (com os mutismos, com as alucinações, com os delírios, com as identificações arbitrárias...).
- Por outro há o desejo por algo em torno da psicose, que não a psicose ela mesma; por outras palavras, há o contato com a psicose em nome de um desejo, como o de ver os sujeitos da psicose desfrutando de maior autonomia.
- Mas há também uma terceira dimensão, que é a convivência, o estabelecimento de vínculos diversos, o compartilhar valores, crenças e ideologias.

À primeira dimensão denominamos de “ética”: nela os gestalt-terapeutas são clínicos e sua função é acolher o estranho que possa surgir como suplência psicótica à função id. Por ética entendemos a ação de acolhida ao estranho que se manifesta no comportamento e no discurso dos semelhantes. Tal estranho tanto pode ser um hábito inibitório (como nos ajustamentos de evitação), hostil (como nos ajustamentos anti-sociais), ou, inclusive, a ausência de hábitos (como nas psicoses). Ética, portanto, não tem relação com o emprego aristotélico do termo e segundo o qual o homem ético é aquele que leva em conta os costumes e as leis de sua comunidade. Ética tem um sentido mais originário: morada em que se acolhe ao estranho.
À segunda dimensão denominamos de “política”. O significante política” está associado, nos termos da teoria do self, à ação estabelecida pelos sujeitos de ato no sentido de sintetizar, numa unidade presuntiva e virtual a que chamamos de desejo, as representações sociais disponíveis e os hábitos (excitamentos) desencadeados pelas contingências sociais presentes (demandas por representação social e por excitamento). Em tal unidade presuntiva e virtual, buscamos estabilizar como horizonte de futuro o efeito que os hábitos possam desencadear junto às representações sociais às quais estávamos identificados. Política, portanto, é para nós a maneira como tentamos incluir o semelhante e o estranho, ou a maneira pela qual somos por eles incluídos, em um todo presuntivo e virtual, a que chamamos de desejo ou, simplesmente, poder. Fazer política é participar do poder, entendamos o poder com um desejo nosso ou de nosso semelhante. Ora, no campo da psicose, porquanto os sujeitos das formações psicóticas não se apresentam como sujeitos desejantes, a função dos gestalt-terapeutas não é demandar desejo de quem não os têm. Ao contrário, o gestalt-terapeuta acompanha o psicótico para despertar desejo na sociedade. Ou, então, os gestalt-terapeutas são acompanhantes terapêuticas (ATs) que atuam em nome de desejos que possam produzidos a partir destes dos sujeitos da psicose.
À terceira chamamos de dimensão “antropológica”. Nela os gestalt-terapeutas atuam como cuidadores da humanidade (função personalidade) que compartilham com os sujeitos da psicose. Discutamos um pouco mais cada uma destas dimensões. O significante ‘antropologia’ tem aqui seu uso orientado pela maneira crítica como lemos a Antropologia de Jean-Paul Sartre (1942). Partindo da idéia de uma fonte insuperável e irredutível – que é a sua teoria da consciência – Sartre advoga que a unidade desta consciência sempre se produz na transcendência, como uma existência em situação, na práxis história. A antropologia para Sartre – entendida como o objeto primeiro do filosofar – é o estudo desta práxis histórica. Trata-se de uma investigação do homem e do humano enquanto a realização (sempre parcial) da unidade da consciência na transcendência. Segundo ele próprio, “enquanto interrogação sobre a práxis, a filosofia é ao mesmo tempo interrogação sobre o homem, quer dizer sobre o sujeito totalizador da história. Pouco importa que esse sujeito seja ou não descentrado. O essencial não é o que se fez do homem, mas o que ele faz do que fizeram dele. O que se fez do homem são as estruturas, os conjuntos significantes que as ciências humanas estudam. O que o homem faz é a própria história, a superação real dessas estruturas numa práxis totalizadora. A filosofia situa-se na charneira. A práxis é, no seu movimento, uma totalização completa; mas nunca atinge senão totalizações parciais, que serão por sua vez superadas” (Sartre, 1966, p. 95). Para nossos propósitos, aderimos à compreensão de que, na transcendência (entendida como atualidade da situação concreta e social), o homem se ocupa de superar as estruturas em que reflete a unidade de sua própria práxis histórica; e que isto é o mesmo que fazer história. Aderimos à compreensão de que a Antropologia é o estudo desta práxis histórica e da tentativa humana de superá-la. Mas, nem por isso, precisamos onerar a Antropologia com a suposição de que, tal práxis, bem como as tentativas de compreendê-la e superá-la, estariam animadas por uma fonte insuperável e irredutível, que é a consciência (enquanto ação nadificadora, apelo de liberdade sempre em curso). ). Que haja tal fonte, ou que ela se imponha na práxis histórica como uma exigência transcendental de unificação, isto é para nós uma questão a discutir e não um princípio, como parece ser para Sartre. Eis em que sentido conjecturamos, como um eventual motivo (ausente, por exemplo, nos ajustamentos de busca) que justificasse as ações de superação das identidades historicamente constituídas, a co-presença de uma alteridade radical, qual outrem (ou função id). Se é verdade que, na práxis histórica, nos ocupamos de operar sínteses a partir do passado em direção ao futuro, tais sínteses não parecem ser decorrência de uma exigência interna ou transcendental, antes um efeito da presença do estranho que se apresenta a nós a partir da demanda do semelhante. Preferimos pensar que a práxis histórica está motivada pela alteridade antes que por uma suposta unidade que nos antecederia.
Enfim, assim como os demais ajustamentos pensados a partir da teoria do self, os ajustamentos de busca são nossas tentativas para identificar qual lugar podemos ocupar diante das pessoas que nos procuram em nome de uma intimidade que decidem manifestar. Trata-se de uma proposta ética, orientada para o acolhimento àquilo que de estranho possa haver no modo como o semelhante fala da sua intimidade. No caso dos ajustamentos de busca, o estranho está relacionado às formações alucinatórias, delirantes, identificatórias e de isolamento que o sujeito produz aparentemente em resposta às nossas demandas por excitamento e desejo. E o nosso lugar diante destes sujeitos – conforme a teoria do self – tem a ver com nossa disponibilidade para acolher àquelas formações e identificar quais demandas exigiram-nas. É claro que podemos agir de maneira política, procurando despertar no meio social interesse e respeito pelas produções e limites dos sujeitos que acompanhamos. Trata-se de uma ação de tutela aos sujeitos das formações psicóticas com vistas a provocar no meio social uma ampliação na forma como o meio social ele mesmo compreende e vive, por exemplo, sua fantasia sobre o que seja a relação entre a cidadania e a psicose. Todavia, bem mais além das formações psicóticas e do engajamento em nossas proposições políticas, os consulentes também nos fornecem representações sociais às quais estão identificados passivamente, o que significa dizer, de modo espontâneo. Por outras palavras, eles também nos apresentam valores, pensamentos e instituições que constituem suas identidades sociais. A intimidade que manifestam não é aqui o estranho, ou nosso interesse em despertar - a partir da convivência com os sujeitos da psicose - algum desejo no meio social. A intimidade agora é a horizontalidade de nossa relação humana, nossa co-participação em motivos antropológicos, que possamos dividir enquanto amigos ou cúmplices, tais como a festa, o luto, a esperança, a alegria, a indignação. E eis aqui a terceira dimensão da atenção gestáltica ao sujeito da psicose, a qual está focada nisso que a teoria do self denomina de função personalidade, a saber, nossa participação na humanidade daqueles que convivem conosco. Trata-se do cuidado dirigido aos diferentes vínculos que possamos estabelecer com as “pessoas” que se manifestam mais além das formações psicóticas e dos nossos desejos.


Bibliografia

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_____. 2008. Clínica dos ajustamentos psicóticos: uma proposta a partir da Gestalt-terapia. IGT NA REDE, v. 5, p. 8-34

[PHG] PERLS, Frederick; HEFFERLINE, Ralph; GOODMAN, Paul. 1951. Gestalt Terapia.Trad. Fernando Rosa Ribeiro. São Paulo: Summus, 1997.

SARTRE, Jean-Paul. 1966. J-Paul Sartre répond. L’Arc. nº30, 1966.



SIGILO – GARANTIAS INDIVIDUAIS E DIREITOS COLETIVOS


Rosane Lorena Granzotto


A Psicologia se ocupa dos “comportamentos” e dos fenômenos que neles se exprimem. Esses comportamentos são laços sociais, na forma dos quais nos constituímos como subjetividades históricas e como conjunto de atitudes. Ora, a constituição histórica de um sujeito, por um lado, e a sedimentação de atitudes, por outro, são as duas faces da empresa ética. De onde se segue que a Psicologia enquanto ciência, mas, sobretudo enquanto profissão é uma atividade eminentemente ética.
Por esse motivo, discutir temas como a responsabilidade social do psicólogo ou o compromisso do psicólogo para com aqueles que recorrem a seus serviços deveria ser algo tão natural quanto especular acerca de uma teoria da personalidade, por exemplo.
Isso não significa tornar o código de ética do psicólogo a peça mais importante de nossa identidade profissional. Ética é muito mais do que um conjunto de princípios e regras prudenciais – como aqueles formulados em nosso código ou na carta constitucional brasileira. E se a nossa categoria, no momento que se ocupa de refletir sobre nosso código de ética profissional, se detém justamente no ponto que trata do sigilo – essa forma especial de laço social entre o psicólogo e seu destinatário -, é porque, de alguma forma, já percebeu a complexidade do tema. Que complexidade é essa que estou a reconhecer para a ética? Como ela se reflete no campo da Psicologia profissão, especificamente na psicoterapia? Que conseqüências ela implica para a nossa discussão acerca do sigilo profissional, muito especialmente no contexto psicoterapêutico?
Existem várias compreensões possíveis do que seja a Ética dependendo do referencial filosófico que usamos – entendendo-se por referencial filosófico essa habilidade dos conceitos para exercerem a crítica de si mesmos. Não é minha pre-tensão recuperar e discutir as várias matrizes filosóficas a partir das quais a noção de ética é pensada. Quero apenas me servir da etimologia, para apontar um diplopia a respeito do termo “ética” que, paradoxalmente, persiste até hoje, especial-mente no âmbito de nossas práticas profissionais.
O termo éthos vem dos gregos, que o empregavam de duas formas distintas. Na forma mais antiga, êthos era utilizado para significar “morada, abrigo, refúgio”, lugar onde somos “autênticos e despidos” de defesas, estamos protegidos, abriga-dos, e podemos receber o outro. Posteriormente, éthos passa a merecer um uso mais abstrato, ligado à filosofia prática. Segundo Aristóteles, por exemplo, éthos expressa um modo de ser, uma “atitude” diante de si, do outro e do mundo. Indica a postura do homem diante da vida. Esta atitude é fruto de uma construção contínua e não acabada, do nosso vir-a-ser na relação com o mundo.
Nos dias de hoje, quando falamos em Ética, quase só empregamos o termo éthos no sentido aristotélico. Ética significa para nós uma atitude ampla e universalizável, formada de comportamentos que foram legitimados por representações co-letivas, como é o caso das regras prudenciais, convenções sociais, contratos e regras jurídicas instituídos no âmbito de nossas comunidades. Por meio dessas representações, zelamos por uma certa identidade social que é a nossa identidade atitudinal. Ou, então, por meio delas garantimos e favorecemos a emancipação social de cada pessoa. Não apenas isso, também nos protegemos dos comportamentos que poderiam ameaçar nossa unidade objetiva ou, como dizemos em Gestalt Terapia, nossa personalidade, gerando sofrimento social, político, moral, racial, afetivo, dentre outros. Nesse sentido, falamos de uma atitude ética, entendendo por isso um comportamento balizado por representações publicamente sancionadas.
Essas representações, entretanto, não abrangem a totalidade dos fenômenos que se exprimem em nossos comportamentos e que, malgrado o formato não objetivo, ainda assim integram nossa unidade atitudinal, por exemplo, nossos sentimentos, afetos, esquecimentos, inibições reprimidas etc. Por outras palavras, em nossos comportamentos, há um excesso de sentido que não se deixa apreender pelo formato objetivo de nossas representações coletivas, de nossos códigos, de nossas normas. Trata-se – sem dúvida – de algo intimamente vinculado com nossas formas de interação social, mas que as ultrapassa, como se fosse, senão um efeito inapreensível dessas formas, ao menos uma reação promovida por algo que essas formas ignoram. Em Psicologia, chamamos isso por vários nomes: fundo de vividos ou perfis co-dados, inconsciente, memória involuntária do tempo, espontaneidade ou, simplesmente, subjetividade. Ainda que nas mais das vezes anônima, escondida, encoberta, essa dimensão está presente. Razão porque, às vezes, sen-timos necessidade de nos despir de nossas identificações objetivas, para que essa identidade ignorada, essa experiência irrefletida de nós mesmos possa emergir. De alguma forma, sentimos necessidade de uma morada segura, de um ambiente protegido, em que nosso silêncio possa se exprimir enquanto silêncio, sem ser confundido com uma forma objetiva. Sentimos necessidade de um êthos, de uma morada, que pode ser muitos lugares, mas, também e eminentemente, um ambiente psicoterapêutico, seja ele grupal ou individual. E eis que, de maneira muito especial, a prática psicoterapêutica reencontra e recupera o sentido primitivo da ética e institui, para o psicólogo psicoterapeuta, uma duplicidade de papéis: agente objetivo e guardião da pré-objetividade.
De fato, na psicoterapia – cujo sentido ainda precisamos discutir muito mais -, os profissionais psicólogos se deparam com demandas individuais e coletivas respaldadas em expectativas objetivas fundamentadas em códigos e regras socialmente sancionados. Trata-se de demandas legítimas, em que muitas vezes se exprime um sofrimento ético-político frente ao qual o psicólogo não pode ficar indiferente. Mas, também, para não dizer “sempre”, deparamo-nos com algo que não se caracteriza como demanda objetiva, porquanto se formula sem revelar o conjunto de representações no qual se apóia. Trata-se, antes, da manifestação de uma espontaneidade histórica, formada de hábitos cegos para si, de comportamentos que não reconhecemos como nossos, mas que ainda assim nos mobilizam de for-ma integral e presente. O fato é que os destinatários de nossas intervenções trazem, nas entrelinhas de suas demandas objetivas, um pedido suplementar que, no desenvolvimento do trabalho psicoterapêutico, acaba se revelando como o motivo mais importante. Nos nossos consultórios ouvimos esse pedido, ouvimos esse fenômeno que podemos chamar por diversos nomes: intencionalidade organísmica, pulsão, desejo, existencial etc.
Ora, diante desse pedido suplementar, pré-objetivo, valem as nossas convicções religiosas, políticas, morais, comportamentais para trabalhar na clínica? Certamente não. Nas mais das vezes, para ouvi-lo temos de suspender nossas crenças, temos de praticar uma espécie de redução em proveito dos fenômenos tais como eles se mostram para nós. De onde se segue que nossa prática compor-te algo assim como uma dupla inscrição ética. Por um lado, procuramos preservar :
- a saúde ético-política de um sujeito constituído objetivamente na realidade, enquanto ser sócio-cultural, enquanto unidade atitudinal ou, como prefiro, personalidade.
Mas, por outro, nos ocupamos de promover
- a saúde existencial, na falta de outro nome, e cujo sujeito somos nós mesmos enquanto seres investidos de uma história que está esquecida, mas nem por isso menos atuante em nossas vidas.


É a partir dessa distinção, precisamente, que acredito ser possível se pensar o sentido ético do sigilo apregoado por nosso código de profissionais psicólogos. Afinal, em nome de que eu me comprometeria a guardar segredo sobre fatos e declarações ocorridos e relatados no âmbito de minha prática clínica? Faria isso em função de um padrão comportamental no qual acredito e com o qual me identifico? Ou faria isso em proveito da manutenção de um espaço adequado à manifestação disso que não é da ordem da objetividade? Minha aposta é na segunda alternativa.
Conforme penso, quando uma pessoa ou grupo está em sofrimento ético-político, quando há dificuldade de emancipação social e individual, é dever do psicólogo psicoterapeuta orientar os destinatários do serviço psicológico a buscarem auxílio na rede de apoio. O psicólogo deve promover a conscientização dos consulentes para que estes possam, por conta própria, buscar seus direitos ou, ao me-nos, possam buscar ajuda. Mas o psicoterapeuta não deve obrigá-los a nada, sob pena de pôr a perder aquilo que mais propriamente está em jogo na relação psico-terapêutica, a saber, a expressão da subjetividade pré-objetiva dos consulentes.
Tampouco deve o psicólogo psicoterapeuta informar a sociedade sobre a situação que o consulente esteja vivendo. Uma vez cônscio de seus direitos, cabe ao cliente tomar a decisão de procurar ou não ajuda. Mesmo se quem estiver sob risco seja a sociedade, o psicoterapeuta não deve denunciar os consulentes. Quando muito, ele pode acionar o Conselho Regional para que cumpra a função social de alertar as autoridades públicas sobre possíveis pessoas ou instituições que estariam em risco, desde que o nome dos consulentes e dos profissionais sejam preservados.
Porém, no que diz respeito aos dramas existenciais relatados e trabalhados no âmbito psicoterapêutico, o psicólogo não tem nada a informar às instâncias normativas, tampouco aos familiares do consulente implicado, mesmo se tratando de uma criança. Aqui importa promover a ocasião para o consulente elaborar, dentro de sua especificidade cognitiva e sócio-cultural, os fenômenos pré-objetivos que ele próprio exprime junto aos seus comportamentos. Ninguém, além do próprio consulente, pode realizar essa elaboração, razão porque seria um contra-senso subordinar os acontecimentos psicoterapêuticos à vigilância da norma social. Trata-se, ao contrário, de permitir que o consulente entre em contato com a espontaneidade que há nele, trata-se de trabalhar seus conflitos existenciais, permitindo a ele formular seus próprios desejos, os ajustamentos criativos de que precisa e que não necessariamente se dão no plano objetivo.
Sou da opinião, portanto, que o psicólogo psicoterapeuta não deve “ser obrigado” a quebrar o sigilo quando estiver lidando com situações de risco, seja à integridade do consulente, dos familiares e da sociedade, ou a sua própria integridade. Mesmo porque, a partir de seu aporte teórico e do acompanhamento terapêutico que realiza, o psicólogo psicoterapeuta pode discernir quando há evidências de que o consulente possa provocar ou sofrer dano contra ou a partir de quem quer que seja. E, então, “pode”, se assim o julgar, acionar o Conselho Regional para prevenir-se, como prevenir os familiares ou quem julgar necessário, observa-dos os princípios objetivos que regem o código de ética profissional e os códigos superiores.
Quanto a depoimentos de ordem judicial, penso que o mesmo critério deva ser seguido. Nada que seja formulado no âmbito da psicoterapia e que implique o compromisso ético do psicoterapeuta com a dimensão existencial do processo terapêutico deve ser revelado, a não ser a pedido do consulente e visando sua proteção.
Enfim, acredito que nós, psicólogos, temos de nos preocupar com o bem-estar objetivo de nós mesmos, de nossos consulentes e da sociedade em geral. Por isso, devemos estar atentos às demandas ético-políticas que, de diversas formas, chegam até nós. Mas, também, é nosso dever assegurar este espaço (morada, abrigo, refúgio, à qual a noção primitiva de êthos faz referência) para que os beneficiários de nossos serviços possam lidar de forma protegida com essa dimensão pré-objetiva que todos nós trazemos conosco. O sigilo foi pensado para favorecer essa função ética especificamente.

REFERÊNCIAS

JACQUES, M.G.C. (et al.) (Orgs.) (1995). Relações Sociais e Ética. Porto Alegre: ABRAPSO - Regional Sul.
NOVAES, A. (Org). (1992). Ética. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura.
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VOLPE, A. J. (1999). Resenha: A reinvenção do Homem. Insight – Ano IX – Nº 102, 27-29.

ESCUTA DE GÊNERO
Sofrimento ético-político e a violência contra a mulher

Rosane Lorena Granzotto

Nos interessa discutir neste artigo a temática da violência contra a mulher principalmente no que diz respeito à escuta clínica deste sofrimento. Numa realidade em que acontecem 13 mortes violentas de mulheres e 135 estupros registrados por dia (pesquisas divulgadas em 2018), cabe a cada um de nós, seja em instâncias mais amplas de militância ou em nossos espaços profissionais mais rotineiros, exercer um lugar político de ampliação da consciência de gênero das mulheres brasileiras.
Mais além do nosso lugar de cidadãs, quero refletir sobre o lugar de escuta destas mulheres. Esta escuta é diferenciada por ser uma escuta engajada e politizada que leva em conta a trama cultural e histórica de uma sociedade majoritariamente machista que condiciona a experiência de ser mulher à sofrimentos cujas causas são invariavelmente violências naturalizadas e invisibilizadas. É uma escuta que parte de um lugar de fala com compromisso social, ético e político. É um dar ouvidos à sujeitos oprimidos num ato de restituição de humanidades negadas ouvindo os aspectos psíquicos a partir de uma realidade vivida. Quando se escuta o sofrimento de uma mulher por ser mulher é importante considerar que estamos diante da forma mais antiga, arraigada e naturalizada de discriminação e exclusão criada pela raça humana, a misoginia.
Quanto à violência, esta destrói a liberdade; trata-se de um ato que priva sua vítima de toda e qualquer possibilidade de ação, reduzindo seu espaço a zero, aniquilando-a. A pior delas é o feminicídio seguida das diferentes violências, física, sexual, psicológica, etc. Porém há uma violência que causa um sofrimento profundo, trata-se da violência invisibilizada e naturalizada, aquela que se transformou em hábito socialmente legitimado, tal como as cenas de ciúme, o confinamento à esfera doméstica, as piadas, xingamentos, etc. Estes hábitos se constituem a partir das estruturas implícitas no sistema social e fazem com que os estados de injustiça e violência permaneçam; estabelecem relações de poder desiguais, sem se revelarem como tais. Em virtude de sua invisibilidade, as vítimas da violência não têm consciência direta do contexto de domínio a que estão submetidas. E isso é que caracteriza sua eficiência. Por ser hábito, são repetidos sem questionamento como atos usuais, costumeiros, fazendo avançar as relações de dominação, solidificando-as de forma muito efetiva, parecendo quase como natureza, como um “é assim mesmo”, gerando formas sutis de coerção, que conservam a vigência das relações de dominação e de exploração (Han, 2017). Tal processo é dificilmente percebido como construto social e moral (costumes, hábitos patriarcais e ciência androcêntrica) e em todas estas situações as mulheres pensam que o problema está com elas. Exemplo disto é o medo do estupro, a construção da ideia de que o corpo da mulher é violável. Por que o risco é entendido como produzido por ela? Pior que isso, provavelmente esta mulher será investigada à respeito de quais os mecanismos psíquicos que produziram tal exposição, etc.
A ciência androcêntrica merece um capítulo à parte. Por que as mulheres são mais “loucas” que os homens? Então vejamos, quando se fala de loucura são homens falando das “loucas”, criando diagnósticos, teorias, etc. Este discurso repetitivo sobre mulheres loucas se naturaliza e passamos a achar natural a relação entre mulheres e loucura. Afinal mulheres são mais instáveis, sujeitas às alterações hormonais, emotivas, choronas, histéricas e por aí vai. Se considerarmos o diagnóstico psiquiátrico percebemos nitidamente que não há neutralidade: o nível de tolerância é muito mais baixo para comportamentos mais sexualizados e agressivos dentre as mulheres e são compreendidos como sintomas de uma patologia. Sem falar na TPM, atualmente patologizada pela psiquiatria e usada invariavelmente pelos homens como forma de desqualificar falas e manifestações das mulheres.
Mas, e quando estas mulheres nos procuram para falar de seu sofrimento? Como chegam? O que temos diagnosticado e tratado? Grande parte deste sofrimento aparece como depressão e ansiedade. Mas quando escutamos essas mulheres encontramos um nível de violência muito grande, que muitas vezes elas nem sequer percebem. A partir deste olhar, aquele que considera as questões de gênero, passamos a fazer uma escuta completamente diferente dentro da clínica. A consequência disto é que retiramos a mulher do lugar de deprimidas, histéricas ou coniventes, e a ajudamos a encontrar o desejo de mudar sua condição.
Esta escuta quebra o que já é usual no tratamento do sofrimento das mulheres. Ou elas são psiquiatrizadas, quando se abafa com medicação algo que vem dizer alguma coisa, algo que precisa ser acolhido e levar a uma transformação, ou são psicologizadas, quando se trabalha o sofrimento de gênero como uma questão individual e interna, privatizando a dor e o sofrimento. Tais condutas despolitizam a atuação clínica e impossibilitam a articulação entre o cultural, o social, o político e o psíquico. Se nós psicólogas(os), não temos uma crítica de gênero, podemos cometer uma nova forma de violência, tanto teórica quanto interventiva. Ao legitimar a privatização dos afetos e reduzir o entendimento da situação de violência em que estas mulheres se encontram a apenas uma questão psicológica, a tornamos ainda mais vulneráveis ao sistema de dominação.
Se abre aqui uma nova possibilidade clínica, a Clínica do Sofrimento Ético-político, pois, pensar esse sofrimento pelo viés de gênero é politizar esse sofrimento, é resgatar a experiência como uma vivência intersubjetiva partilhada entre mulheres, sociedade e cultura. Isto significa entender aquele sofrimento não como patologia, mas como uma resposta possível, ajustamento de inclusão, pedido de socorro, dentro desta cultura patriarcal hegemônica que estrutura o pensamento, produz sintomas e mantém as mulheres em situação de violência. Nesta clínica a atuação consiste principalmente em fornecer apoio à resistência à violência, na medida em que, trazendo à compreensão as raízes políticas do sofrimento, questiona e desestabiliza as normas massificadas, podendo assim, minimizar culpas enraizadas na ideia de família, maternidade e todos os demais traços relacionados à produção de feminilidade, na qual ocorrem com frequência as violências, de vários níveis contra as mulheres.
Atuar dentro destes princípios nos leva a refletir sobre a clínica como um projeto político. Começamos então nos questionando o que entendemos por política. No campo da ciência por exemplo, podemos dizer que a ciência é um projeto político, pois se trata do exercício do poder pelo saber, um saber que se exerce sobre os corpos, enfermos, rebeldes, descrentes, ignorantes, etc. O saber pode ser uma teoria, um remédio, uma técnica ou um dispositivo de controle biopolítico, por exemplo, os dispositivos midiáticos. Assim se exerce o controle sobre o corpo, sobre os afetos, sobre as enfermidades.
E a clínica que fazemos, também é um projeto de exercício de poder? Sim, porém é necessário esclarecer o que entendemos por poder. Para nós, clínicos gestálticos, o poder é o exercício do “eu posso”, é se lançar para as possibilidades abertas em cada agora vivido. O poder corresponde às nossas possibilidades criativas, toda ação por cujo meio procuramos reinventar nossa realidade junto a uma possibilidade que visamos como um horizonte futuro. Neste sentido, quando fazemos uma clínica política autorizamos um outrem no outro corpo, um desejo.
Nas relações de campo, sob certas condições, estabelece-se um conflito de poder entre o desejo do outro social traduzido nos valores, crenças, papéis, instituições, etc. e os nossos projetos políticos ou desejos. Frente a este conflito podemos nos posicionar nos submetendo ao desejo do outro, aniquilando este outro, ou escolhendo uma terceira via, a via da banalização. Qualquer uma das alternativas criam vulnerabilidades. A submissão aos dispositivos de poder é o que mais observamos, talvez porque esteja muito arraigada aos processos disciplinadores e educacionais. Quando estas demandas se tornam excessivas, não conseguimos atender às expectativas, sejam elas de produtividade, consumo, disciplina, etc. Porém se nos rebelamos, somos considerados marginais, perigosos. Só nos resta submeter-nos, e quando isso acontece nosso corpo não aguenta, e então deprimimos, fazemos pânicos, fobias e até psicotizamos. As depressões, fobias, pânicos e inclusive as rebeldias são formas alternativas de construção da subjetividade. Eis porque a Foucault interessava escutar presos, loucos... Neste lugar de aparente fracasso nós construímos na verdade uma forma de resistência.
Numa clínica política, o poder se traduz em possibilidades criativas de enfrentamento. Se exerce por meio da gratuidade, do não-saber ou saber perder, pois tenho que perder o poder para o outro criar. O político aqui é a autorização ao outrem, ao estranho: o outro pode aparecer que eu acolho (não vou enquadrar, prender, denunciar, mandar para algum lugar, etc). A função política do terapeuta diante do outro é a de emancipar, dar lugar a uma autorização de si, empoderar.
E é lamentável como muitas vezes as práticas clínicas servem de agentes de cristalização da cultura de dominação. O trabalho clínico com as vulnerabilidades políticas deve poder ir muito além da mera aplicação de ficções metapsicológicas aos conflitos descritos pelos consulentes. A intervenção clínica jamais pode ignorar o papel dos demandantes, o papel dos dispositivos de poder veiculados pela mídia, a astúcia do outro capitalista em nos fazer exigir, de nós mesmos, que sejamos bem sucedidos. É um tipo de clínica cuja atuação consiste principalmente em fornecer apoio à resistência à violência, à submissão, à exclusão, à discriminação, na medida em que, trazendo à compreensão as raízes políticas do sofrimento, questiona e desestabiliza as normas massificadas, como diagnósticos estruturados e centrados no sujeito. É a clínica que se manifesta como forma de produção de uma diversidade, de uma diferença.
Nesta clínica estão incluídos muitas formas de sofrimento, todas elas desencadeadas nas relações sociais, como os assédios, o bulling, as crises reativas (depressão e pânico), o burnout, as violências domésticas e urbanas, todos os casos de exclusão por diferenças raciais, de gênero e de classe, etc. Estamos discutindo aqui apenas o sofrimento de gênero, e dentro dele o sofrimento de gênero relativo ao fato de ser mulher. Como já dissemos acima a misoginia é o mais antigo dos preconceitos, sempre reforçado pelos contextos culturais de cada época. A partir do século XVIII as mulheres foram colocadas em lugares desempoderados, de falta de privilégios, de desprestigio. De um século para cá foram colocadas em um lugar de objetivação sexual. Isso está presente nas propagandas, no assovio na rua, na piadas. As próprias mulheres acabam introjetando esse tipo de representação e se tratam de forma objetificante. É a forma como elas se avaliam a partir de um olhar que as objetifica. E essa ainda é a realidade que vivemos hoje.
A partir do momento que incluímos a escuta de gênero em nossa prática clínica, auxiliamos as mulheres a identificarem a violência a qual estão submetidas. Quando conseguem nomear esse tipo de violência, elas percebem que é um problema social, algo que é construído e não o seu destino, um problema seu ou algo que elas provoquem, deixando assim de se culparem. Esta percepção leva também ao empoderamento destas mulheres, que podem construir a partir daí novas formas de enfrentamento, se instrumentalizando para conseguir se proteger e se emancipar, podendo dizer “Eu não quero mais esse lugar”. Esta é uma prática clínica politizada, que as acompanha na decisão de não aceitar se submeter às agressões, de não as ocultarem, mas as tornarem públicas, recorrendo às instituições sociais. Isso se dá em um encontro terapêutico que constitua subjetividades políticas capazes de articular os aspectos socioculturais e os aspectos psicológicos implicados na prática da violência.
É importante que o processo se dê em grupo para deslocar a centralidade da revelação individual do sofrimento para o compartilhamento das experiências, rompendo com a privatização das emoções e propondo a ressignificação das experiências a partir de um lugar politizado e de interação.
Chegamos assim à consciência de gênero, a percepção do lugar onde a mulher é colocada e desenvolvendo um novo lugar, um lugar político e social em que elas conseguem perceber as opressões, lidar com elas e a partir dessa percepção começar seu processo de empoderamento. No momento em que as mulheres percebem e desenvolvem essa consciência de gênero, elas próprias vão pontuando isso, pois aquilo que era invisibilizado e naturalizado passa a ser visível e passível de mudança.

Referências
Bley, S., 2005. “Familiaridade estranha da violência”. In: Violências e contemporaneidade. Porto Alegre: Artes e Ofícios.
Caon, J., 2005. “Mais perigosas são as feridas que não doem, não ardem nem sangram”. In: Violências e contemporaneidade. Porto Alegre: Artes e Ofícios.
Ferrari, D. e Vecina, T., 2002. O fim do silêncio na violência familiar. São Paulo: Ágora.
Granzotto, R.L. e Granzotto, M.J.M., 2012. Psicose e Sofrimento. São Paulo: Summus.
Han, B., Topologia da Violência, São Paulo: Ed. Vozes, 2017
Hartmann, F., 2005. “Violência e discurso”. In: Violências e contemporaneidade. Porto Alegre: Artes e Ofícios.
Timm, F.B., Pereira, O.P., Gontijo, D.C., 2011. \"Psicologia, violência contra mulheres e feminismo: em defesa de uma clínica política\". In: Revista Psicologia Política, vol.11, nº 22

Desafios da prática clínica na pós modernidade
Rosane Lorena Granzotto

Vivemos num mundo em que tudo é ilusório, virtual e efêmero. A angústia, o medo, o sofrimento e a insegurança são os sentimentos que permeiam nossas experiências nas relações sociais. Há uma sensação de desorientação devido à inconstância e a precariedade dos planos que homens e mulheres fazem para as suas vidas, e não encontramos solução para isso nas certezas passadas e nem nos textos sagrados ou científicos. A corrosão do caráter é outra manifestação marcante da profunda ansiedade que caracteriza o comportamento, a tomada de decisões e os projetos de vida de homens e mulheres.
A sociedade está paralisada pelo medo que reflete o despertar do sono da modernidade, caracterizada pela crença:
- na verdade alcançável pela razão (o mundo caminha para alguma coisa)
- na vida administrada.
A Modernidade (sólida) começou em mais ou menos 1.500 com a crença na transformação do mundo através da ciência e da racionalidade (Copérnico, Galileu, Francis Bacon). Atinge a maturidade no século XIX com os intelectuais acreditando que descobriram a fórmula de como a história anda através da troca de mercadoria. A sociedade ganha mecanismos sociais como por exemplo a certidão de nascimento, escolas que dão uma profissão, etc.
Mas, o no século XX começa a modernidade começa a viver seu pesadelo total. Bauman (1989) traz a experiência do Holocausto como o marco da derrocada da modernidade. A ciência, a ordem e a administração da vida gera um de seus monstros e vimos o ser humano se afastar da reflexão moral. Ficamos preocupados com a ideia de eficácia, em resolver problemas. Não há tempo para se preocupar com problemas morais. No holocausto a dinâmica e violência da racionalidade chegam ao topo. No extermínio trabalharam pessoas normais (não monstros), pessoas que você poderia encontrar na rua.
Nos anos 80 começa a circular a ideia de pós-modernidade. Jean-François Lyotard (1979) diz que a pós-modernidade é a recusa de narrativas longas sobre as coisas (teorias complexas) fundadas na crença no progresso (revolução industrial) e nos ideais iluministas de igualdade, liberdade e fraternidade (revolução francesa). Não há mais garantias, posto que nem mesmo a ciência pode ser considerada como fonte de verdade. A consciência pós-moderna é a consciência do fracasso da modernidade, das utopias que nos prometeu.
Lyotard (1979) entendeu a modernidade como uma condição cultural caracterizada pela mudança constante na perseguição do progresso. A pós-modernidade representa então a culminação desse processo em que a mudança constante se tornou o status quo e a noção de progresso obsoleta.
Bauman (2000) diz que a pós–modernidade, modernidade líquida como prefere chamar, é o despertar maldito de um sonho colorido para um pesadelo. Estávamos construindo um mundo simétrico, acreditávamos na nossa capacidade de organização, na causa e efeito. Mas também é um momento de esperança porque a modernidade, como já vimos, tem uma série de problemas.
Nos tempos pós-modernos vivemos como se estivéssemos sobre uma fina casca de gelo, se pararmos ela racha e quando rachar nos afogamos. Além de não termos nenhuma referência clara de como resolver os problemas, não temos tempo. Esta é uma característica fundamental do diagnóstico do momento. Temos que correr muito, a velocidade é enorme, e não se está correndo para lugar nenhum, mas temos que correr, se não a casca racha.
Em “Modernidade líquida”, Bauman (2000) parte da metáfora “no capitalismo tudo que é sólido desmancha no ar”, dizendo que não se trata de ar, mas de água pois as coisas não tem forma, elas se espalham. Vivemos numa realidade ambígua, multiforme. Tudo é líquido, não podemos pegar nada com a mão. Nossa relação com nossa família, com os filhos, com o companheiro(a) é líquida, nos escapa e a qualquer momento acaba. Não temos nenhuma garantia de que a pessoa que está conosco permanecerá conosco, inclusive porque esta pessoa é alimentada pelo mesmo motor que nós somos (eu mereço ser feliz no que eu faço). Quando a pessoa que está ao nosso lado não preenche os requisitos de felicidade aos quais tenho direito, eu troco.
Gilles Lipovetsky (1993) prefere o termo hipermodernidade: exacerbação de certas características das sociedades modernas: o individualismo, o consumismo, a ética hedonista, a fragmentação do tempo e do espaço. Caracteriza-se pela multiplicidade, fragmentação, desreferenciação e pela entropia, que , com a aceitação de todos os estilos e estéticas, pretende a inclusão de todas as culturas como mercados consumidores. O pós-modernismo é hostil à ideia de uma verdade única, exclusiva, objetiva, externa ou transcendente. A verdade é ilusiva, polimorfa, íntima, subjetiva…
Toda esta reflexão e a experiência que vivemos no dia a dia da prática clínica dos tempos contemporâneos nos abrem novos desafios. O primeiro deles diz respeito à vivência da identidade. Quando olhamos no espelho vemos uma mercadoria, sem que se tenha a fórmula de como se deixa de ser mercadoria graças por exemplo a uma classe social que vai quebrar este jogo. Falta a fé, a crença de que há uma fórmula. Hoje, o máximo que conseguimos ter como identidade é a noção de estilo – você é o que você veste, o restaurante que frequenta, os amigos que tem, os livros que te vêem com eles na mão, a praia que frequenta. A noção de estilo substitui a noção de personalidade (identidade, pertencimento). Afinal, para que ter personalidade (estabilização)? Precisamos ser leves. Memória só as boas, que ajudem a melhorar nossa auto-imagem (facebook). Estamos diante da fragilidade e da condição eternamente provisória da identidade. As “identidades” flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta, e é preciso estar em alerta constante para defender as primeiras em relação às últimas. A internet facilita a expressão de identidades prontas para serem usadas.
A essência da identidade – a resposta a pergunta “Quem sou eu?” e, mais importante ainda, a permanente credibilidade da resposta que lhe possa ser dada, qualquer que seja – não pode ser constituída senão por referência aos vínculos que conectam o eu a outras pessoas e ao pressuposto de que tais vínculos são fidedignos e gozam de estabilidade com o passar do tempo. Precisamos de relacionamentos aos quais possamos referir-nos no intuito de definirmos a nós mesmos. Precisamos deles pelo benefício da coesão e da lógica de nosso próprio ser. Tornamo-nos conscientes de que o “pertencimento” e a “identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a “identidade”.
Diante destas questões nos deparamos na clínica com novas formas de ajustamento, neste caso, ajustamentos banais que consistem na substituição da personalidade constituída a partir de experiências de contato por semblantes de personalidade, imagens criadas pela lógica consumista. Ajustamentos banais são aqueles que, diante deste Outro muito poderoso, que é o Outro capitalista, os sujeitos abrem mão dos seus excitamentos, de suas autonomias criativas e de suas identificações personalísticas. No entanto, nem por isso se submetem a ele, elegendo a banalização das demandas como forma de resistência. Nestes ajustamentos os sujeitos parecem desertores da própria condição de sujeitos (de ato).
• Não querem sentir nada: tomam analgésicos para a dor, antidepressivos para a tristeza, reguladores de humor para a alegria, cafeína para o sono, indutores de sono para a vigília.
• Também não querem fazer nada: alienam-se na sorte e no azar em vez de trabalhar, consomem em vez de se divertir, usam jargões em vez de se comunicar, vestem-se com tecnologia – fones de ouvidos, telefones, games – para se conectarem a nada.
• Tampouco querem se refletir em representações sociais que lhes valessem identidades das quais se orgulhassem: mostram-se em restos de semblante para não serem vistos; fixam-se em imagens pelas quais não precisam responder, – pois as comunidades virtuais não exigem “opinião”, “debate”, “reflexão” aos seus seguidores -, acompanham a vida alheia sem o risco de serem vistos.

A intervenção diante da banalidade consiste, por um lado, na
responsabilização dos sujeitos envolvidos; mas, também, no encorajamento da capacidade de cada qual para enfrentar o Outro social. O trabalho de restituição do lugar de protagonistas aos sujeitos que desistiram de sua capacidade ativa em favor de restos da cultura de massa é a estratégia mais eficiente tanto para a redução dos danos advindos da alienação irresponsável, sem reflexão (como diria Hannah Arendt), quanto para o enfrentamento da verdadeira causa do esvaziamento da capacidade crítica destes sujeitos, precisamente, o totalitarismo do Outro capitalista, constitua-se ele na forma de uma demanda de consumo ou de uma demanda por adesão cega a uma ideologia. Resgatar, nos sujeitos banais a indignação e a capacidade reativa é o mesmo que fortalecer, em cada qual, a função de ato por cujo meio eles haverão de mobilizar desejos a partir dos excitamentos disponíveis e identidades sociais críticas (face às demandas totalitárias).

Outra questão que nos surpreende na prática clínica são os
“relacionamentos” na pós-modernidade. A consciência pós-moderna descobre que o amor incondicional não existe. Todo amor é condicionado e parece que alguém está roubando no jogo. O amor para funcionar tem que ser como doença. Vivemos uma ambivalência nas relações interpessoais, em tudo que as acompanha – amor, parcerias, compromissos, direitos e deveres mutuamente reconhecidos - , são simultaneamente objetos de atração e apreensão, desejo e medo, locais de ambiguidade e hesitação, inquietação, ansiedade. Estamos na era do “homem sem vínculos” líquido-moderno. A maioria de nós tem uma opinião ambígua sobre essa novidade que é “viver livre de vínculos”- de relacionamento “sem compromisso”. Nós os cobiçamos e os tememos ao mesmo tempo.
As pessoas estão desesperadas por terem sido abandonadas aos seus próprios sentimentos facilmente descartáveis. Se sentem ansiosas pela segurança do convívio e pela mão amiga com quem possam contar num momento de aflição. Desesperadas por relacionar-se, e no entanto desconfiadas da condição de estarem ligadas, em particular de estarem ligadas permanentemente, para não dizer eternamente. Temem que tal condição possa trazer encargos e tensões que elas não se consideram aptas nem dispostas a suportar. Pois estas poderiam limitar severamente a liberdade de que necessitam para relacionar-se. Os relacionamentos são ambíguos, oscilam entre o sonho e o pesadelo e não há como determinar quando um se transforma no outro.
Tendemos a reduzir os relacionamentos amorosos ao modo “consumista”, o único com que nos sentimos seguros e à vontade. Perdidos e sem referências, homens e mulheres aprendem que é possível buscar relacionamentos de bolso, do tipo de que se pode dispor quando necessário e depois tornar a guardar. O “modo consumista” requer que a satisfação precise ser, deva ser, seja de qualquer forma instantânea, enquanto o valor exclusivo, a única “utilidade” dos objetos é a sua capacidade de proporcionar satisfação. Uma vez interrompida a satisfação (em função do desgaste dos objetos, de sua familiaridade excessiva e cada vez mais monótona ou porque substitutos menos familiares, não testados, e assim mais estimulantes, estejam disponíveis), não há motivo para entulhar a casa com esses objetos inúteis.
Assim, toda parceria está fadada a ser permanentemente derrotada pela ansiedade: e se a outra pessoa se aborrecer antes de mim? A disponibilidade de uma saída fácil é em si um terrível obstáculo à satisfação no amor. Torna o tipo de esforço de longo prazo que essa satisfação exigiria muito menos provável, tendente a ser abandonado bem antes que uma conclusão gratificante possa ser alcançada.
O “relacionar-se” é substituído pelo “estar conectado”. As pessoas ao relatarem suas experiências e expectativas não utilizam mais termos como relacionar-se e relacionamento, mas em conexões, ou conectar-se e ser conectado. Em vez de parceiros, preferem falar de redes. Nas relações, parentescos, parcerias, há engajamento mútuo ao mesmo tempo que excluem ou omitem o seu oposto, a falta de compromisso. Uma rede serve de matriz tanto para conectar quanto para desconectar, não é possível imaginá-la sem as duas possibilidades. Nela as conexões são estabelecidas e cortadas por escolha. As conexões podem ser rompidas, e o são, muito antes que se comece a detestá-las, enquanto que as relações, mesmo quando indesejáveis, não são rompidas sem culpas e ressentimentos.
Assim, estabelecemos relações virtuais. No envio e recepção de mensagens se elimina da troca a simultaneidade e a continuidade, impedindo-a de se tornar um diálogo genuíno e, portanto, arriscado. O contato auditivo vem em segundo lugar. É um diálogo, mas felizmente livre do contato visual, aquela ilusão de intimidade portadora de todos os perigos de traição involuntárias (por gestos, mímica, expressão do olhar) que os interlocutores prefeririam manter excluída do “relacionamento”. As conexões são relações virtuais. Ao contrário dos relacionamentos antiquados (para não falar daqueles com “compromissos”, muito menos dos compromissos de longo prazo), elas parecem ser feitas sob medida para o líquido cenário da vida moderna, em que se espera que as possibilidades românticas surjam e desapareçam numa velocidade crescente e em volume cada vez maior, aniquilando-se mutuamente e tentando impor aos gritos a promessa de “ser a mais satisfatória e a mais completa”. Em comparação com a “coisa autêntica”, pesada, lenta e confusa, eles parecem inteligentes e limpos, fáceis de usar, compreender e manusear.
Mas o que costumamos ouvir é que as pessoas não estão felizes. A facilidade do desengajamento e do rompimento (a qualquer hora) não reduzem os riscos, apenas os distribuem de modo diferente, junto com as ansiedades que provocam.
Há uma preocupação excessiva com a qualidade do relacionamento. Somos sistematicamente atormentados pela consciência de que tem que ter qualidade na relação, é preciso trabalhar a relação, discutir a relação… Isto se torna uma sombra. Ficamos nos observando o tempo todo para ver se está funcionando e acabamos observando que não está funcionando direito, pela simples razão de que nada funciona direito. O cidadão contemporâneo sabe que quando está dentro de uma relação, existem outras oportunidades no mercado e não se pode perder nada.

Outra característica da pós-modernidade é a perda de referências. A modernidade acreditava que os indivíduos modernos se tornaram esclarecidos e autônomos. O que aconteceu? Ficamos autônomos. E para onde vamos quando somos autônomos? Quais são as referências? Somos esclarecidos e autônomos, mas perdemos as referências.

O mal estar do pós-moderno é ser livre, é a angústia pós-moderna. A modernidade era caracterizada por um alto investimento humano na racionalidade, segurança e organização. A pós-modernidade é caracterizada por um alto investimento humano na liberdade. O que caracteriza a liberdade é saber que tudo pode, porém não tem coisa pior no mundo do que ter alguém livre do seu lado. A única coisa que temos que obedecer é a lei do mercado, desta não tem como escapar, fora isso somos livres. E é esta liberdade que nos atormenta. Ninguém mais sabe o que é o bem e o mal (perda de referências). Ser livre é um peso gigantesco. Gostaríamos muito que alguém dissesse para nós para onde estamos indo e principalmente gostaríamos de investir nos afetos e no amor confiando nele… mas quem é louco para confiar plenamente no amor e no parceiro?

Nosso desafio enquanto clínicos é acompanhar estes homens e mulheres vivendo suas relações nesta ambiguidade, insegurança e constante mudança. Também aqui os ajustamentos banais aparecem como forma de lidar com os conflitos, elegendo o modo “consumista” de relacionar-se, ampliando conexões em quantidade e velocidade crescentes, através dos aplicativos disponíveis, onde a oferta de “pessoas mercadoria” é abundante. Seja em atendimentos individuais ou de casal são estas as questões que se apresentam e nós clínicos não podemos ignorar estas mudanças no comportamento social pós moderno.
A consciência crítica de si e de suas relações, o enfrentamento dos vazios, das perdas, da instabilidade e das rápidas mudanças (clínica do sofrimento), a coragem para reconstruir e enfrentar o outro social demandador em seus apelos consumistas (fortalecimento da função de ato nos ajustamentos banais), são caminhos terapêuticos possíveis.
A autonomia em relação ao Outro social, o exercício do protagonismo e a responsabilização em relação às suas escolhas e atos ainda são as formas de resgate de uma subjetividade alienada e em sofrimento. Ainda buscamos as referências em nosso sentir e em nossas identificações, mesmo que efêmeras e instáveis. Ainda acreditamos que nos deixar guiar pelo desejo nos preserva das demandas por alienação.
E acima de tudo, ainda acreditamos que a experiência, a expressão, o ato criativo que nos recria e renova, nos dá suporte para enfrentar a turbulência destes tempos pós-modernos.

Referências
Arendt, H. Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal, São Paulo, Companhia das Letras, 1999
Bauman, Z. Identidade, Rio de janeiro, Zahar, 2005.
____ Modernidade Líquida, Rio de janeiro, Zahar, 2001
____ Modernidade e Holocausto, Rio de janeiro, Zahar, 1989
____ Amor Líquido, Rio de janeiro, Zahar, 2003
Lipovetsky, G. L’Ère du vide. Essais sur l’individualisme contemporain, Paris, Gallimard, 1993
Lyotard, J-F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979

Corpo e corporeidade: uma leitura fenomenológica

Rosane Lorena Granzotto


I

Já é lugar comum para todos nós a afirmação de que, em Gestalt Terapia, importa o que se exprime no corpo de nossos clientes. O que seria uma apresentação feliz de nossa compreensão da experiência clínica, não fosse a complexidade do que se vela nessa noção, sobre a qual estamos aqui reunidos para debater: o corpo. Frederick Perls bem sabia o quão difícil era fazer caber, no domínio de nossas teorias, essa vivência de todos os dias, que é a expressividade corporal do outro e de nós mesmos. Nesse sentido, ele não se iludia quanto à capacidade da ciência para esclarecer essa vivência. Definições processuais, como a encontrada na teoria organísmica de Kurt Goldstein dizem bem em que sentido nosso corpo é um sistema simultaneamente físico e social, mas também pessoal. Ainda assim, Goldstein não chega a esclarecer o que caracteriza a pessoalidade de nosso corpo, ou em que medida nossa pessoalidade pode ser descrita como uma sorte de corporeidade. Razão pela qual, mais do que a teoria organísmica, é a fenomenologia – especificamente aquela desenvolvida nos textos tardios de Edmund Husserl e seus interlocutores – quem delimita o sentido propriamente corporal disso que chamamos nossa pessoalidade. Corpo, conforme a fenomenologia, é aquilo que é próprio, aquilo que implica pertencimento, conforme está indicado no pronome reflexivo “selbst” (em alemão) ou “self” (em inglês). E o pertencimento, a sua vez, não é senão tudo aquilo que eu posso circunscrever como domínio de possibilidades: possibilidades sensoriais, motoras, indicativas, reflexivas... De onde se segue o caráter eminentemente temporal da corporeidade. Afinal, o possível é sempre um futuro que se apresenta ao presente desde o passado. O que talvez justifique o fato de Frederick Perls descrever o corpo não como algo fechado em si, mas como um sistema de possibilidades de contato no presente transiente, ao qual denominou justamente de self e cujo sentido é temporal.
Nesta apresentação vou me ocupar de caracterizar, em primeiro lugar, o modo como Edmund Husserl alcança a noção de corpo como “domínio da pertença” ou, o que é a mesma coisa, domínio do “eu posso”. Em segundo lugar, quero mostrar em que sentido esse domínio é temporal para, então, em terceiro lugar, refletir sobre o modo como a teoria do self da Gestalt Terapia encampa essa compreensão fenomenológica da corporeidade.


II

Em um curso intitulado “O conceito de natureza”, ministrado entre 1956-7 no Collège de France, Merleau-Ponty refere-se à filosofia de Husserl, identificando nela duas tendências complementares. Por um lado, Husserl tem em vista superar o naturalismo da atitude natural, por cujo meio somos levados a admitir, como a verdade última acerca de nossa fé perceptiva em nós mesmos e no mundo, a vigência de uma natureza determinada como “pura coisa” ou “coisa em si”, independentemente da experiência que dela possamos ter. Contra essa atitude, Husserl quer resgatar o primado de nossa experiência intencional, sem a qual nada poderia adquirir o status de uma coisa determinada, objetiva. Mas, em segundo lugar, Husserl quer salvaguardar aquilo que há de legítimo na atitude natural, precisamente, a fé perceptiva em que há um mundo e que nós somos alguém nesse mundo. Ora, se o primeiro objetivo nos leva ao idealismo husserliano – e que consiste na afirmação de que toda a existência dotada de valor objetivo é uma construção intencional de nossos atos conscientes -, o segundo objetivo nos leva a crítica desse idealismo em proveito daquilo que o torna possível, a saber, a corporeidade das subjetividades intencionais. Ainda que nosso interesse seja discorrer sobre o que seja essa corporeidade, não podemos falar dela sem antes esclarecer o idealismo husserliano. O que passo a fazer nesse momento.
De um modo geral, as pessoas confundem o que é o idealismo husserliano. Acontece que Husserl emprega esse termo num sentido estritamente metodológico, sem qualquer pretensão ontológica. Idealidade não tem a ver com a existência – não importa se concreta ou abstrata - das coisas, mas com o modo como essas coisas podem ser representadas. Eis por que a fenomenologia devia ser, depois de 1913, um idealismo transcendental, pois transcendental é a palavra que designa exatamente esse método de investigação que não se interessa pelas coisas, mas pelo modo como as podemos conhecer.
Mas por que Husserl se propõe uma investigação transcendental de nossa atitude natural frente ao mundo e a nós mesmos? Justamente porque, nos termos dessa atitude, ocupamo-nos de definir o mundo e a nós mesmos, sem entretanto compreender como nós o fazemos. Ao contrário, criamos definições e acreditamos nelas, como se elas valessem por si. Aliás, “valer por si” ou “ser em si” é nossa definição predileta. Acreditamos que o mundo é um aglomerado de coisas que valem por si desde que nascem, assim como nós já nascemos corpos individuais, ocorrências materiais que trazem em si mesmas aquilo que as define, por exemplo, um código genético, um temperamento, etc... Todavia, não nos ocupamos de questionar o que nos permite acreditar nessas definições. Afinal, as tais coisas que julgamos definidas em si não aparecem, em nosso primeiro contato com elas, assim tão definidas. Nem nós mesmos nos experimentamos como seres tão definidos.
Mas o fato é que dispomos de definições já formuladas por nossos antepassados, e a utilização dessas definições nos faculta uma relação freqüentemente bem sucedida com o que surge em nossa experiência. Husserl não é contra a produção e utilização de definições. Muito pelo contrário, ele quer apenas mostrar como isso é possível. Para tal, precisamos pôr em suspenso não o mundo e nós mesmos, mas as definições que atribuímos a eles, para podermos, então, investigar ou, como prefere Husserl, descrever a origem e o funcionamento dessas definições. Dessa forma, podemos esclarecer, por exemplo, a relação existente entre a definição do corpo como sistema neurofisiológico geneticamente determinado e a experiência que nós temos desse corpo. Eis aqui o início da fenomenologia: ela começa com a suspensão das nossas teses em proveito da investigação do modo como elas funcionam. Tecnicamente falando, tal suspensão corresponde à primeira etapa da redução fenomenológica.
Ora, vocês vão me perguntar, o que a investigação fenomenológico-transcendental vem esclarecer relativamente ao modo como representamos a nós mesmos e ao mundo? Se nos ocuparmos de descrever as definições tais como elas nos ocorrem, sem dificuldade haveremos de perceber que, em situações inéditas, vividas pela primeira vez (como a paixão, que sempre é vivida pela primeira vez), não são suficientes as palavras já empregadas por outrem. Ainda que não tenhamos alternativa senão servirmo-nos delas, elas não significam o que de inédito estejamos vivendo, a menos que introduzamos pequenas modificações, que as personalizem. Mas, de onde vêm essas modificações, essas personalizações? O que são elas em relação às falas já faladas, aos pensamentos já formulados, às definições de que dispomos? Fiel a seu professor Franz Brentano, Husserl vai dizer que essas modificações por nós introduzidas não são senão vivências intuitivas – a que Brentano justamente denominava de vivências intencionais -, na forma das quais experimentamos uma unidade pré-significativa, uma vivência de totalidade, cujas partes são por nós ignoradas. Trata-se de intuições fenomênicas, por cujo meio compreendemos, em um certo instante de nossa vida, algo que ultrapassa esse instante e vai se ligar a outras partes, a outros momentos, muito embora não possamos dizer quais são. Esse é o caso de nossos sentimentos – melhor exemplo para esclarecer o que são nossas intuições fenomênicas. Os sentimentos são vividos em um instante específico, mas nos remontam a outros momentos que, junto àquele, ganham nova vida. E é a partir dessas intuições, enfim, que as palavras que aprendemos de alguém surgem em nossa boca como aquilo que nós mesmos ignorávamos antes de fala-las. É a partir dessas intuições, enfim, que acrescentamos algo ao mundo da cultura, mas também ao repertório de nossas ações concretas junto à natureza. Percebamos aqui que, em sua descrição transcendental do modo como conhecemos a nós mesmos e ao mundo, Husserl começa admitindo a existência de um saber que se ignora, mas sem o qual todos os nossos atos se resumiriam a uma repetição.
Aliás, os atos de que fala Husserl não dizem respeito apenas a nossa capacidade para indicar, por meio de um gesto, algo que esse gesto não é, o que justamente caracteriza esse processo que denominamos de linguagem. Os atos dizem respeito a toda e qualquer transformação que possamos operar em nós mesmos e no meio; muito embora somente os atos indicativos (ou de linguagem) possam estabelecer modificações permanentes e evidentes em si mesmas, que são as nossas definições ou pensamentos. Por essa razão, acredita Husserl, é somente quando nossas intuições fenomênicas ganham, por meio de atos indicativos, a forma de pensamentos, que elas deixam de ser “compreensões indeterminadas sobre a unidade de nossa vida a cada nova experiência”, para se transformar em verdadeiras “coisas”, verdadeiros “ob-jetos”. Esclarece-se aqui, enfim, o modo ou processo pelo qual as coisas determinadas, objetivas, surgem em nossas vidas. A determinação não é um atributo das coisas em si – como supunha o homem natural-, mas do modo como nós as produzimos por nossos atos a partir de nossas compreensões intuitivas. O que nos permite entender, ademais, em que sentido a fenomenologia é, simultaneamente, uma crítica à noção de coisa em si e uma proposta de retorno às próprias coisas (zu den sachen selbst, no dizer de Husserl). Afinal, as coisas a que a fenomenologia quer voltar não são as coisas aquém de nossa experiência, mas, sim, as coisas intencionadas que nós produzimos a partir da experiência, a partir de nossas intuições.
Ora, para Husserl, junto a essas coisas intencionadas, deveríamos poder reconhecer algo que nos é próprio, algo que tem a ver com nossas intuições e nossos atos. Husserl chama esse reconhecimento de intuição essencial. Reconhecer, nas coisas intencionadas, algo que nos é próprio é reconhecer uma essência. Nesse sentido, alcançar a essência de uma variedade de flores chamadas ‘rosas’ é compreender aquilo que de invariável permanece na “minha experiência” dessas flores. Da mesma forma, atingir a essência de mim mesmo é compreender o que de invariável há na “experiência que tenho” disso que representei como eu mesmo, a saber, minha personalidade psicofísica.
Mas, eis que surge a questão: como posso reconhecer, nas coisas intencionadas, produzidas por meus atos, algo próprio? O que há de comum entre minhas intuições, meus atos e as coisas que ambos constituem? O que é essa essencialidade que reconheço como o que me é próprio nas coisas?
Ora, nesse ponto Husserl sente a necessidade de operar uma segunda redução fenomenológica – que ele chamou de redução transcendental. Afinal, não obstante a primeira redução (chamada redução eidética ou redução às essências) esclarecer que as coisas têm a ver com algo que nos é próprio, tal não elucidou o que é essa pertença. A segunda redução, por sua vez, esclareceria a vivência da pertença. E, fazendo isso, a fenomenologia resgataria aquilo que há de verdadeiro na atitude natural, precisamente, a prévia admissão do mundo e de si mesmo, o reconhecimento tácito de que o mundo, seja lá o que ele for, é acessível, é próprio a nossa experiência.


III

Mas o que é, então, essa pertença, que o homem natural já vivia – muito embora a velasse com suas definições -, e à qual a primeira etapa da redução nos reconduziu? Para responder essa questão, Husserl radicalizou o procedimento de redução das definições com as quais nós nos representamos a experiência. Tal radicalização implicou que não somente as definições herdadas, mas também as definições produzidas pelo discurso fenomenológico deveriam ser suspensas. Essa é a condição sem a qual a experiência da pertença continuaria dependente de uma prévia definição. E foi ao fazer isso que Husserl deu-se por conta de um irredutível, do qual não podia declinar. Trata-se do uso do pronome possessivo. Para se descrever a experiência de reconhecimento do que nos é próprio, Husserl precisava continuar usando o “meu”, o “nosso”. O que não implicava que devesse admitir a tese de que existamos aquém ou além da experiência. No contexto de reconhecimento do que nos é próprio, não empregamos o possessivo para caracterizar a ação de um sujeito (voz ativa), ou a ação por ele sofrida (voz passiva). Se tal possessivo, em algum sentido, implica um certo sujeito, trata-se daquele sujeito que se constrói simultaneamente com sua ação (tal como acontece nas orações em voz média). Assim compreendido, enfim, o possessivo não tem a ver com o sujeito que existe, nem com o que permanece. Apenas com aquilo que possivelmente venha a existir. Trata-se, nesse sentido, da caracterização daquilo que “posso” sentir, fazer, dizer... De onde Husserl concluiu que não é no campo da existência, mas no campo das possibilidades que eu encontro a forma mais elementar da pertença, da vivência daquilo que é próprio.
Todavia, o que é esse campo, como eu o vivo? Para descrever o domínio do possível, Husserl lança mão de uma formulação que o aproximaria de Heidegger, precisamente, a noção de “saber” mundano, de logos estético, tal como aquele que me permite saber – sem necessidade de cálculo - quanto devo me abaixar para meu cabelo não enroscar na copa da árvore a minha frente, ou quando preciso começar a pisar no freio para que meu carro não ultrapasse o semáforo fechado. Esse logos estético não é diferente daquilo que, muito antes de Heidegger, Husserl já havia reconhecido para nossas intuições fenomênicas, a saber, que elas são uma sorte de temporalidade primitiva, em que não só minhas vivências se conservariam modificadas como pano de fundo para novas vivências, como também viabilizariam a expressão de uma unidade de transcendência, de movimento, que não se realiza num interior, mas na passagem, na fronteira dinâmica daquilo que surge como matéria atual e o que retorna como horizonte de passado e futuro. Mas, agora, depois das reduções, Husserl sabe que essa temporalidade não é um atributo de alguém ou de uma coisa, não é a intuição fenomênica de uma certa pessoa, mas a construção estética, sensível de minha pessoa enquanto unidade de possibilidades que se abrem em torno de uma certa matéria. O logos estético é essa construção, é a experimentação ou awareness de mim como unidade que se constrói historicamente.
Pois bem, Husserl vai justamente chamar de corpo carnal esse campo de possibilidades que se arma em minha experiência de reconhecimento do próprio nas coisas. Corpo carnal não é, nesse sentido, uma determinada coisa, como por exemplo, um microfone ou a imagem que eu tenho de mim mesmo enquanto uma personalidade psicofísica; mas sim as possibilidades que se abrem diante dessas coisas e que me permitem ultrapassa-las em direção ao inédito. Corpo carnal tem a ver com a capacidade que tenho para reunir, num só ato, uma matéria atual e outra inatual, por exemplo, a sede que agora sinto e a esperança de encontrar água fresca. Mais do que isso, o corpo carnal é principalmente a vivência da unidade espontânea entre o que faço e sinto e aquilo desde onde e para onde minha sensibilidade e minha ação me encaminham. Essa unidade não é algo que demande uma deliberação de minhas funções corticais superiores, uma consciência representacional ou lingüística. Ela é a co-presença espontânea daquilo de que me apropriei – a saber, o mundo e os outros, os quais agora restam para mim como memória, matéria modificada ou retida – em proveito do que se apresenta em minha atualidade material. Trata-se de uma sorte de generalidade carnal, que não é diferente daquela emoção, que antes chamei de paixão, e que não obstante ser sentida num pedaço de carne que é a minha matéria atual, denuncia a presença de quem não é essa matéria, mas ainda assim está co-presente nela, a saber, o meu amado, o meu amante. E eis em que sentido, conforme a formulação de Husserl, enquanto corpos carnais somos uma subjetividade intersubjetiva, assim como o tempo é um presente entrecortado de passado e futuro.


IV

Ora, a Gestalt Terapia, de muitas maneiras, sempre se disse fenomenológica. Mas, talvez, aquela em que essa filiação tivesse ficado mais evidente, podemos encontra-la nas passagens escritas que tratam da awareness. Nas palavras de Perls (1969: 88), “(e)u fiz da awareness o ponto central da minha abordagem, reconhecendo que a fenomenologia é o passo básico e indispensável no sentido de sabermos tudo o que é possível saber”. Mas, qual a relação entre a awareness e a fenomenologia? Não obstante a raridade das passagens em que Perls se ocupa de definir o que é awareness, em vários lugares, ele e seus colaboradores dizem que a awareness não é uma reflexão sobre um problema, mas a “integração criativa do problema” (1951: 46) em benefício da “sensação de nós mesmos” (1949: 264). Trata-se de uma forma de apercepção sensório-motora em que nos experimentamos “um” sem o consórcio da consciência reflexiva. Ora, assim entendida, a awareness não é diferente da noção fenomenológica de corpo carnal. Ambas designam a experiência de nós mesmos como unidade das possibilidades que, desde o passado, armam-se em torno daquilo que se apresenta como materialidade no agora. Ambas tratam de uma subjetividade que se forma no tempo e de um tempo que, por se experimentar como unidade em transição junto à matéria, não é sucessão, mas pertença ou, como prefere Perls, self. Aliás, se levarmos em conta a definição que Perls nos oferece do que seja o self, logo perceberemos que tal não designa um corpo individual, mas a fronteira em que o mundo e os outros, uma vez experimentados, podem retornar enquanto potencialidade apropriada àquilo, junto a que, eu vivo a unidade da minha sensorialidade e de minha ação. O self mais não é que o sistema por cujo meio me torno aware, assim como o ego fenomenológico é o sistema na forma da qual vivo o que é próprio, o que pertence, numa palavra, corpo carnal.
Ora, alguém poderia lembrar, Perls recorre insistentemente à noção de organismo de Goldstein. Nesse sentido, não seria ela uma melhor apresentação do que se deve entender por corpo na Gestalt Terapia? Todavia, se olharmos no detalhe o emprego de tal noção, logo compreenderemos que organismo não designa uma certa unidade objetiva que se deslinda do resto do mundo. Esse organismo é o organismo da fisiologia. Todavia, o que interessa a Perls e cols. “é o organismo-como-um-todo em contato com o ambiente” (1951: 180). Trata-se de um organismo investido de uma “awareness”, de um sentido de unidade em sua integração com o meio ambiente. Por isso, em última instância, continua sendo a awareness o elemento que define, precisamente, o foco principal da Gestalt Terapia. E a awareness, como se viu, é a vivência temporal de uma unidade que se refaz a cada contato. A awareness, nesse sentido, é corpo carnal.
Ora, é tendo em vista essa noção fenomenológica de corpo que, na clínica da Gestalt Terapia, nosso olhar e nossa escuta não se dirigem para as imagens intelectuais que o cliente faz de si e do mundo. Tampouco para as imagens que nós mesmos, psicoterapeutas, aprendemos estudando anatomia, neurologia, fisiologia e outras coisas mais. A clínica da Gestalt Terapia se interessa pelo corpo vivido, que é esse excesso que se exprime para além das palavras e dos músculos. Para usar um termo técnico, o corpo para o qual nos dirigimos é a awareness do cliente, a qual não tem nada a ver com representação objetiva que ele possa fazer de si mesmo, mas, sim, com a forma global e espontânea, segundo a qual, em uma certa região de matéria, que pode incluir o terapeuta e as coisas do consultório, o cliente se experimenta como a unidade de um continuum em transição. E eis por que razão, dizem Perls e cols., para a Gestalt Terapia importa “não tanto o que está sendo experienciado, relembrado, feito, dito, etc., mas a maneira como o que está sendo relembrado é relembrado, ou como o que é dito é dito (...). Trabalhando a unidade e a desunidade dessa estrutura da experiência aqui e agora – [que é a awareness ou o corpo carnal], é possível refazer as relações dinâmicas da figura e fundo até que o contato se intensifique” (1951: 46).

CLÍNICA GESTÁLTICA DE CASAIS
Rosane Lorena Granzotto


A intenção deste trabalho é pensar a clínica de casais pela ótica da teoria do self e suas categorias funcionais: id, ego e personalidade.
Compreendemos o self como um sistema de contatos no presente transiente, o que significa dizer, em constante mutação. Contato é aqui um termo bastante amplo que significa a maneira peculiar segundo a qual, determinada relação social repete e recria um hábito em proveito de um futuro, ao qual chamamos de desejo. Tal significa dizer que cada experiência de contato é, simultaneamente, a repetição do passado e a criação do futuro. E o sistema self, a sua vez, é tão-somente a descrição da fluidez de uma vivência de contato a outra.
Em sua fluidez, o sistema self pode ser descrito sob três registros ou pontos de vista, aos quais denominamos de funções do self. São elas a função id, a função de ato (ego) e a função personalidade.
Por função id entendemos o fundo de vividos retidos a partir das experiências passadas e que retornam até nós pelo olhar, pelo desejo do semelhante, como aquilo que nos desvia. Tal fundo é composto por hábitos e situações inacabadas, ponto de partida daquilo que chamamos de excitamentos.
A função de ato (ego) é o corpo motor e linguageiro, o qual, por meio de criações de toda ordem, ajusta os excitamentos às possibilidades fornecidas pelo meio natural e social, desencadeando assim um horizonte de futuro ou desejo.
Mas, a função de ato também pode experimentar, junto ao meio social, uma vivência de auto-reconhecimento, que também denominamos de função personalidade. Trata-se de uma espécie de réplica verbal da experiência.
Ora, essas três funções constituem marcos a partir dos quais, nas clínicas gestálticas, procuramos descrever o que de novo e singular surge num campo sociolinguístico atual. Da mesma forma, aquelas funções ajudam a compreender a peculiaridade de cada contexto clínico e a tarefa ética a ser desempenhada pelo terapeuta.

O que é um relacionamento de casal sob a ótica das funções do sistema self?
É um laço social especial que, por sua intimidade, favorece a repetição daqueles hábitos que constituem, para ambos os amantes, o fundo de excitamentos disponível, ao qual, em Gestalt-terapia, também denominamos de função id. Tal fundo envolve modos de emprego do corpo e da linguagem, os quais, não obstante serem desprovidos de conteúdos que pudessem esclarecer sua origem ou sentido, têm efeito afetivo na atualidade da relação vivida pelo casal. Trata-se de formas retidas daquilo que um dia foi um ajustamento criativo ou uma inibição deliberada frente às condições desfavoráveis do meio e que agora encontram a ocasião para se atualizarem no presente.
Esta relação íntima também é especial porque, nela, a função de ato realiza, a partir dos hábitos que herdou da função id, a mais bela das criações, que é o desejo amoroso.
O desejo amoroso não é qualquer desejo, pois, se é verdade que desejar é provocar, na forma de uma fantasia (ou futuro de possibilidades) o que nos falta, no desejo amoroso, a fantasia diz respeito à satisfação do outro. Não se trata de buscar, junto ao nosso semelhante, aquilo que ele poderia nos dar. Trata-se, antes, de querer alcançar a satisfação que ele poderia sentir a partir de nós. Mas como isso é impossível, continuamos a nos dedicar a ele. Eis então o amor, que é esse desejo que se recria a cada dia, como nosso impulso a ser outro, a ser outro para nós mesmos. Junto ao nosso semelhante, junto a essa pessoa que é nosso companheiro, nossa companheira, procuramos nos experimentar como outro. De onde não se segue que aquilo que pudéssemos receber do companheiro, da companheira não seja importante. O reconhecimento que nosso parceiro amoroso nos dirige e, mesmo, o reconhecimento que o meio social pode nos oferecer a respeito de nossa relação íntima é uma experiência que envolve muito prazer/desprazer. Eis aqui a terceira pilastra que, do ponto de vista da teoria do self, sustenta uma relação íntima. Trata-se do imaginário social alcançado pela dupla entre si ou em suas relações com a comunidade. Ou, ainda, trata-se da função personalidade, que é a carga de expectativas familiares e da sociedade que leva o casal a constituir família, adquirir propriedade, enfim participar dos rituais e assumir papéis esperados para um marido, uma esposa, um pai, uma mãe, etc. Tanto quanto buscar, junto ao nosso parceiro, o outro no qual nós mesmos podemos nos tornar, importa também desfrutar do prazer de assumir e ver reconhecido um lugar social que possamos ocupar ao lado do nosso parceiro.

Por que um casal vem à terapia?
Quando se trata de ajustamentos neuróticos a busca por terapia é mais uma
dentre as buscas amorosas que um casal possa fazer. Em outras palavras, a busca por terapia tem relação com o desejo amoroso, com o desejo que cada parceiro tem de se experimentar como outro para si próprio. Mas, há na terapia uma singularidade: o desejo amoroso investe um terceiro no lugar da falta, no lugar do outro cuja satisfação cada qual quer experimentar. Isso por que os pares não conseguem mais ser, um para o outro, o outro no qual desejam se tornar. O desejo perde lugar para uma fantasia cristalizada, frequentemente associada a uma forma neurótica do casal funcionar; qual seja essa forma: aquela em que os parceiros se atribuem mutuamente a responsabilidade pela ansiedade advinda do fato de inibirem seus próprios desejos de mudarem. Um terceiro deve então aqui advir como aquele que possa desmontar as fantasias cristalizadas e desafiar o desejo mais além das inibições individuais.
De um modo geral, quando procuram terapia, os casais têm uma vaga ideia do que buscam. Eles sabem que seus desejos precisam ser resgatados. O que, por vezes, significa um atravessamento das fantasias em que estão cristalizados. Noutras vezes, a separação. Para tanto, os casais costumam investir o terapeuta nesse lugar de representante daquilo que está interditado, precisamente, o desejo. O terapeuta terá de frustrar o ardil que, frequentemente, os parceiros criam para si mesmos e que consiste em atribuir, um ao outro, a responsabilidade pela interdição dos desejos. Cada parceiro vê no outro a causa daquilo que, em verdade, é uma auto-inibição habitual. Cada parceiro vê no outro uma versão de sua própria inibição ou, se quisermos, um parceiro-sintoma.
Nesse sentido, mais além do ciúme sincrético, que é um tipo de ajustamento fluido que herdamos de nossa ligação infantil com os cuidadores, os quais nos ensinaram a excluir a presença do terceiro, por vezes, os casais, frequentemente um dos pares, exibe um ciúme neurótico. À diferença do primeiro, o ciúme neurótico não opera verdadeiramente com a exclusão do terceiro, mas faz do terceiro o motivo para responsabilizar o parceiro pela insatisfação que o pseudo-ciumento esteja vivendo. Ora, implicar cada um do par em seu próprio expediente manipulador é a primeira tarefa ética do terapeuta.
Este é o primeiro momento da intervenção gestáltica em ajustamentos neuróticos em regime de terapia de casal. Não se trata de uma tarefa simples, pois o terapeuta deve se introduzir como aquele que quebra a parceria sintomática do casal ao qual atende. Tal significa dizer: o terapeuta deve poder fazer com que cada parceiro se responsabilize por aquilo que acusa ou reclama; e tudo isso na frente do companheiro. Essa auto-implicação testemunhada é algo que tem muito efeito sobre cada qual e, por vezes, acelera o encontro dos pares com suas próprias repetições neuróticas, bem como com seus próprios desejos.
Uma vez que, no processo terapêutico, os pares conseguiram se responsabilizar por seus sintomas e, dessa forma, alcançarem uma compreensão sobre quais repetições estariam a produzir e quais desejos estariam a evitar, inicia-se uma nova fase – a segunda etapa da intervenção gestáltica em ajustamentos neuróticos em regime de terapia de casal - em que cada qual deveria poder vislumbrar quais possibilidades a relação abre para a realização dos desejos então reavivados.
Por vezes, os parceiros não reconhecem mais, um no outro, razão para continuar. Não há, mais entre eles, possibilidades de contato. E esse reconhecimento – caso um dos dois não esteja manipulando – é sempre compartilhado. Assim como é compartilhado – caso também não haja mais manipulação – a retomada da via amorosa.

Porém não são apenas os quadros neuróticos que levam os casais à terapia. Por vezes, um dos pares necessita da ajuda de um terceiro para poder administrar o que sozinho, não consegue, por exemplo, a desarticulação comportamental de seu parceiro (surto psicótico), a doença somática, a violência doméstica ou determinado quadro de exclusão social, que constrange a si ou ao parceiro. Por exemplo, um homem pode estar precisando fazer uma depressão para lidar com a impossibilidade de eleger um dentre os excitamentos que o acometem. Sua mulher não compreende o que se passa, uma vez que não apenas não se sente desejada, como tampouco identifica desejo em seu parceiro. Ainda assim o deseja. E quanto mais manifesta esse desejo, mais sofrimento parece gerar em seu par. A questão aqui não é simples pois acompanhar o esforço de articulação que alguém possa estar fazendo exige abrir mão de seus próprios desejos até que o parceiro possa voltar a desejar. A intervenção de um terceiro, de um terapeuta, pode abreviar a espera da mulher, como ajudar o seu parceiro em seu processo de reconstrução.
A intervenção aqui difere radicalmente da intervenção nos ajustamentos neuróticos, pois se trata de orientar o casal a compreender o que acontece com cada um e trabalhar no sentido da abertura de novas possibilidades, aquelas que, em cada caso particular, dê suporte para o momento de crise e ajude o casal a sobreviver. O terapeuta se coloca no lugar de um corpo auxiliar, que dê ao casal condições de, por um lado, continuar operando a partir de seus excitamentos e, por outro, continuar criando um horizonte de expectativas (desejo), o que inclui muitas vezes a elaboração de um luto.

O lugar do terapeuta neste campo
A clínica de casais se constitui num campo terapêutico peculiar, onde os efeitos das ações de cada um sobre o outro se faz sentir na própria sessão criando uma realidade tal que permite ao clínico a possibilidade de intervir diretamente na dinâmica relacional do casal.
Neste sentido somos este terceiro que estará atento ao que aparece no campo,
àquilo que se manifesta no momento presente, com uma escuta aberta, apenas acompanhando o que se manifesta, sem em nenhum momento dar sentido ou interpretar as atitudes do casal.
Pelo contrário, a intervenção terapêutica gestáltica acontece pontualmente
quando uma forma se revela, quando uma repetição acontece ou quando um hábito é retomado, abrindo a ocasião para que cada um possa se implicar, se responsabilizar pelo que produz na relação e criar algo a partir desta experiência.
É muito comum que os processos iniciem com relatos e queixas que um faz do
outro. Ao mesmo tempo que estamos disponíveis para ouvir um e outro, não é o conteúdo de suas falas que nos interessa mas as formas que aparecem em sua comunicação, em suas discussões, em seus corpos, em como brigam ou amam.
Na clínica de casais o terapeuta estará atento à “forma” da relação, que refletirá
sem dúvida as “formas” de cada um. Trabalhamos com o que acontece no momento presente da sessão e não com relatos de acontecimentos. O relato é apenas a ocasião em que a “forma” de cada um pode se revelar.
Enfim, o terapeuta gestáltico na clínica de casais trabalha a partir dos
ajustamentos que ali se produzem, sejam eles ajustamentos fluidos, de evitação, de busca, banais, antissociais ou de inclusão, que por sua vez orientarão qual o lugar que o terapeuta ocupará neste campo tão peculiar.

Etapas da Intervenção da clínica de casal
• Princípio fundamental: o clínico é o terapeuta da relação.

1ª etapa: Função Id, afetos, satisfação secundária.
• Implicação de cada cônjuge em seu próprio discurso. Ajudar os pares a compreender que a origem dos afetos pode estar em outra cena.
• Distinguir os afetos da ordem da repetição (afetos, satisfações secundárias) e sentimentos atuais.

2ª etapa: Função de ato, desejo, fantasia.
• O que cada um deseja do outro?
• Que lugar o parceiro pode ocupar no meu desejo?
• Que lugar eu posso ocupar no desejo do meu parceiro?
• É importante olhar se há a possibilidade de um suportar o desejo do outro. Aqui é importante ter cuidado, porque a tolerância ao desejo do outro pode afetar o amor gerando prazer ou desprazer.
O clínico pode fazer algumas provocações como:
• Quais lugares cada indivíduo ocupa na relação?
• Qual a importância do parceiro nos projetos futuros do outro?

3ª etapa: Função Personalidade (amor, prazer, projetos e histórias compartilhadas)
• Olhar para história, para os projetos, para o patrimônio (emocional) construído pelo casal até o momento.
• Olhar para a relação historicamente. O que construíram juntos? O que pretendem construir?
• Os projetos são concretos, e estão relacionados com a possibilidade de construir uma realidade. O clínico ajuda o casal a perceber os projetos que já construíram juntos (casa, filhos), e assim atribuírem valores aos patrimônios da relação.





CLÍNICA DA BANALIDADE – EM TEMPOS PÓS-MODERNOS
Rosane Lorena Granzotto

Muito embora apenas a clínica da neurose tivesse sido aprofundada por Perls e Goodman, outras duas foram anunciadas no livro Gestalt Terapia (1951), apesar de permanecerem incoativas, a clínica das psicoses e a clínica do sofrimento, como sendo vulnerabilidades da funções id e personalidade respectivamente. Estas duas clínicas são largamente discutidas e ampliadas nas obras Psicosis y Creación (2013) e Biopoder, totalitarismo y la clínica del sufrimiento (2013) de Müller-Granzotto & Müller-Granzotto.
Nenhuma dessas três modalidades, entretanto, logra pensar certos fenômenos clínicos típicos de nosso tempo. Referimo-nos àquelas experiências de consultório, mas não exclusivamente, em que não nos sentimos manipulados (como nos ajustamentos neuróticos), nem rejeitados (como nos de busca) ou convocados a uma ação solidária (como nos ajustamentos de inclusão em decorrência do sofrimento ético-político e antropológico). Referimo-nos àquelas experiências em que nos sentimos impotentes e decepcionados diante da inconsequência ou da inércia de nossos consulentes que, perplexos diante da falta de referências, imersos nas demandas por consumo, sem laços sociais permanentes que lhes garantam identidades estáveis e cada vez mais sem tempo, sofrem as consequências dos tempos pós-modernos.

Clínica dos ajustamentos banais

Ora, quando nos referimos às inconsequências de determinados ajustamentos, temos em mente, sobretudo, aquelas ações em que, sem pensar ou sem se antecipar aos resultados, os consulentes alienam suas possibilidades e interesses em favor de restos de objetos ou em favor de objetos de consumo em massa (considerando-se que nenhum dos dois, verdadeiramente, possa ser considerado um objeto da realidade ou de desejo, porquanto, ou não viabilizam a experiência da reflexão, como se exigiria de um objeto da realidade, ou a experiência da transcendência na virtualidade, como se exigiria de um objeto de desejo). Ou, então, temos em mente o fenômeno segundo o qual, aprisionados pela lógica capitalista, os sujeitos transformam-se eles próprios em objetos de consumo em massa. Estes sujeitos não têm mais em conta o que pudessem provocar (desejo) ou o que pudessem receber em relação aos semelhantes (reconhecimento social); defendem-se das demandas por excitamento e por inteligência social alienando-se em substitutos aos objetos, independentemente das consequências sociais que esta alienação possa acarretar. O que aí acontece? Trata-se de um ajustamento criador?

Sujeitos-mercadoria

É uma realidade de quase todas as famílias a existência de parentes improdutivos, ou estagnados em algum tipo de atividade repetitiva, incapaz de produzir interesse ou respeito. Ou, então, é comum para todos nós termos de conviver com pessoas destituídas de ambições, projetos e desejos, como se a única coisa que lhes restasse fosse reproduzir alguns poucos papéis na periferia das ideologias de massa. Aparentemente, não se interessam em ser reconhecidos (como cidadãos, como empreendedores, como consumidores), preferem desfrutar no anonimato as imagens produzidas em sites de pornografia, reality shows e em redes de relacionamento virtuais, ou entregar-se ao entorpecimento produzido por substâncias marginalizadas (como a cocaína, o álcool, LSD, o ecstasy, para citar algumas). Em vez de se posicionarem nos conflitos e nas disputas de natureza política e econômica, deixam-se governar pelos jogos de azar, pelas previsões místicas e pelos rituais secretos de natureza disruptiva (como nos distúrbios alimentares). São pessoas moldadas às poucas e fugazes possibilidades fornecidas àqueles que desistiram de ocupar um lugar social ou operar com os próprios desejos; o que, por vezes, significa fazer do corpo (tátil, imagético e discursivo) mercadoria sem valor subjetivo. São como geringonças, destituídas de importância e afetividade, destinadas apenas ao consumo sem meta. Quando fazem do corpo-próprio um gadget os sujeitos abdicam da própria capacidade de agir e, por conseguinte, nivelam-se a condição de mercadorias supérfluas. Não há mais “laço social” propriamente dito entre estes sujeitos, apenas relação de consumo.
A vinda ao consultório destes sujeitos-mercadoria é para o clínico algo sempre muito decepcionante. Não se vê, nesses consulentes, nenhuma sorte de reflexão, menos ainda contato com o que possam estar repetindo (função id), ou desejando (função de ato). E não se trata de psicose; afinal, à diferença do que acontece nas psicoses, esses consulentes não usam a realidade para responder as demandas afetivas dos interlocutores. Tampouco se trata de neurose, pois a sujeição desses consulentes aos restos da cultura de massa é tão forte que não verificamos neles qualquer tipo de demanda, o que denunciaria a presença de um desejo, ainda que inibido. Ao contrário, os sujeitos declinam de desejar, como se os restos de objeto de consumo ou as geringonças (gadgets) com os quais criam um vínculo de “dependência” pudessem “substituir” o horizonte de desejos e o papel social demandado pelo Outro capitalista.
Dito de outro modo, os sujeitos-mercadoria não tentam responder (como nas psicoses), menos ainda manipular (como nas neuroses), ou pedir ajuda (como no sofrimento ético-político e antropológico). Eles simplesmente “substituem” a awareness pelo consumo supérfluo e inconseqüente, como se neste tipo de consumo estivessem desincumbidos de sentir (awareness sensorial), desejar (awareness deliberada) e assumir identidades sociais (awareness reflexiva). Parecem antes desertores da própria condição de sujeitos (de ato). Não querem sentir nada: tomam analgésicos para a dor, antidepressivos para a tristeza, reguladores de humor para a alegria, cafeína para o sono, indutores de sono para a vigília. Também não querem fazer nada: alienam-se na sorte e no azar em vez de trabalhar, consomem em vez de se divertir, usam jargões em vez de se comunicar, vestem-se com tecnologia – fones de ouvidos, telefones, games – para se conectarem a nada. Tampouco querem se refletir em representações sociais que lhes valessem identidades das quais se orgulhassem: mostram-se em restos de semblante – piercing, silicone, músculos “bombados”, tatuagens, tênis de marca (...) – para não serem vistos; fixam-se em imagens pelas quais não precisam responder – pois as comunidades virtuais não exigem “opinião”, “debate”, “reflexão” aos seus seguidores -; acompanham a vida alheia sem o risco de serem interpelados - pois, a vida do outro retratado em álbuns e filmes postados na internet não toma conhecimento de mim -; desprezam a família, a comunidade e a sociedade sem precisar se posicionar – como na anorexia -; posicionam-se de modo a que ninguém possa saber – como na bulimia. Nos restos da cultura ¬– sejam tais restos drogas, semblantes fragmentados, gadgets, jogos de azar ou identidades disruptivas (como no caso dos distúrbios alimentares) - resume-se toda a vida do consulente, que assim se dispensa de ter desejos ou identidades sociais pelas quais pudesse se responsabilizar. Ao contrário, a substituição dos desejos e papéis sociais por restos de cultura parece ser uma estratégia de banalização das demandas.
Eis por que, inspirados nos relatos da filósofa Hannah Arendt a respeito do julgamento do nazista Adolf Eichman, resolvemos denominar de banais a estes ajustamentos. Trata-se de sujeitos que, diante deste Outro muito poderoso, que é o Outro capitalista, abrem mão dos seus excitamentos e de suas autonomias criativas, mas nem por isso se submetem a ele, elegendo a banalização das demandas como forma de resistência.

Banalização como ajustamento

Já no subtítulo do livro “Eichmann em Jerusalém”, Hannah Arendt (1963) faz referência ao significante ‘banalidade’: “informe sobre a banalidade do mal”. O livro é uma compilação dos relatos produzidos pela autora enquanto trabalhou como correspondente do periódico americano The New Yorker na cobertura do julgamento do nazista Adolf Eichmann, ocorrido em Jerusalém e que culminou com o enforcamento do condenado em Tel Aviv no ano de 1962, sob a acusação de pertencer a um grupo organizado com fins criminosos e por promover, durante a Segunda Guerra Mundial, crimes de genocídio contra judeus e contra a humanidade. Eichmann – segundo as preciosas análises da autora a respeito da personalidade do condenado - não aparentava ser um homem doentio ou monstruoso. Sequer tinha um passado criminoso ou vinculação com o movimento antissemita.
Os atos eram monstruosos, mas o agente – pelo menos aquele mesmo que agora estava a ser julgado – era absolutamente vulgar, nem demoníaco nem monstruoso. Não havia nele nenhum sinal de convicções ideológicas firmes ou de motivos maldosos específicos, e a única característica notável que se podia detectar no seu comportamento durante o julgamento e durante todo o período de investigação policial anterior ao julgamento era algo inteiramente negativo: não era estupidez, mas irreflexão (Arendt, 1963, p. 87)

Eichmann tão somente queria ascender profissionalmente em sua carreira de funcionário público do Estado alemão e suas ações não correspondiam mais que à obediência às ordens superiores. Era um homem que cumpria suas obrigações com presteza e diligência. Razão pela qual, diferentemente da opinião majoritária da imprensa à época, Hannah Ardendt não consideraria Eichmann um ser de má índole. Tratava-se de um homem acometido de um “vazio de pensamento”. Se ele foi culpado e mereceu ser condenado tal tem relação com o fato de haver se alienado nas decisões de seus superiores sem levar em conta as consequências de seus atos. E eis aqui precisamente a banalidade do mal. Trata-se da qualidade daqueles que – como Eichmann - agem dentro das regras do sistema ou da ideologia a que estão subordinados sem refletir no sentido ético e nos sentimentos morais envolvidos. Ou, ainda, trata-se da qualidade dos sujeitos que não se preocupam com as consequências de seus atos, com o mal que possam provocar; só com o cumprimento das ordens, às quais acatam sem reflexão, como se tivessem acometidos por um “vazio de pensamento”. O que permitiu a Hannah Arendt falar de um “mal moral” compartilhado por boa parte do povo alemão à época do nazismo de Adolf Hitler:

Era como se a moralidade, no exato momento de seu total colapso dentro de uma nação antiga e altamente civilizada, se revelasse no significado original da palavra, como um conjunto de costumes, de usos e maneiras, que poderia ser trocado por outro conjunto sem dificuldade maior do que a enfrentada para mudar às maneiras à mesa de todo um povo (Arendt, 1970, p. 106).

De onde se seguiu uma reflexão de Hannah Arendt (1975) sobre o lugar ético dos cidadãos ante as ideologias e as leis de sua comunidade. A obediência civil não pode ser sinônima da alienação da reflexão em favor do Estado. Tal procedimento caracteriza uma sorte de banalização da consciência política.
Ora, diferentemente de Hannah Arendt, não cremos que a banalidade defina-se pela inconsequência dos atos, pelo mal que possam gerar. Tal forma de definir a banalidade é normativa, balizada por determinada teoria moral. O que significa que, não obstante se prestar à administração dos interesses que constituem o campo amplo da política, tal teoria dificilmente poderia se aplicar ao campo clínico, uma vez que, neste, as demandas morais poderiam limitar a disponibilidade do clínico para os diferentes modos de ajustamento. De onde se segue nossa decisão de apartar os significantes “banalidade” e “mal”. Mesmo concordando com Hannah Arendt que o “mal” designa o domínio das consequências pelas quais os sujeitos banais não se responsabilizam, mesmo concordando que os sujeitos banais, por sua inconsequência, podem gerar o “mal”, para nosso entendimento clínico, a banalidade tem um sentido e uma função que podem ser compreendidos independentemente do mal. Conforme pensamos, a banalidade é antes a atitude de rompimento com as demandas do Outro capitalista. Mesmo não fazendo caso das consequências que tal atitude pode acarretar, trata-se de um tipo de enfrentamento – quase subliminar – ao Outro capitalista. Este enfrentamento, a sua vez, não se dá pela via do desejo que o sujeito pudesse assumir, mas pela via da banalização das próprias demandas que a ele são dirigidas, sejam tais demandas exigências de alienação em papéis sociais, ideologias ou formas de consumo. O que significa dizer que Eichmann não é banal pelas consequências dos seus atos, antes pela forma como trata a ideologia nacional-socialista, a saber, sem implicação subjetiva (função personalidade). Ademais, não é por conta desta banalidade que ele devesse ser condenado. A banalidade era, talvez, a forma possível como ele e boa parte do povo alemão conseguiam enfrentar o nacional socialismo. Por outra parte, pelas consequências de seus atos, pelo mal que eles provocaram à humanidade, por nossa adesão deliberada a uma ética das consequências, Eichmann mereceu ser condenado.
De onde se segue que, se por um lado concordamos com Hannah Arendt em que os sujeitos devem poder ser responsabilizados pelas consequências de seus atos banais, por outro, eles devem poder ser ajudados. Afinal, ainda que se trate de atos injustificáveis, os atos banais podem ser reações face às injunções totalitárias do Outro Social. Por outras palavras, os atos banais – ainda que inconsistentes do ponto de vista do ideal que reconhece a autonomia e responsabilidade de cada ser humano – podem ser compreendidos como uma forma de resistência – ineficiente, sem sombra de dúvida – diante da exigência capitalista de que nos tornemos sujeitos consumidores a despeito de nossos excitamentos e de nossas identidades sociais. E nossa proposta gestáltica diante da banalidade consiste, por um lado, na responsabilização dos sujeitos envolvidos; mas, também, no encorajamento da capacidade de cada qual para enfrentar o Outro capitalista.

Gênese dos ajustamentos banais

É claro que o nivelamento dos sujeitos banais à condição de mercadoria não é uma falha moral que estejamos aqui a censurar. Não há para a clínica gestáltica um dever ser, a que os sujeitos devessem corresponder, por exemplo, como se todos devêssemos viver fluxos de awareness. Ao contrário, nossa postura como clínicos é poder acolher esta diferença, escutar o que aí se diz. E nossa hipótese para entender a banalidade é que: a deserção que estes sujeitos operam em relação as suas próprias capacidades de enfrentamento político é também ela um ajustamento criador, uma alternativa inventada diante da impossibilidade de fazer valer os próprios desejos ou desconstruir a demanda totalitária do Outro capitalista, segundo a qual, na identidade do sujeito consumidor, deveríamos poder sintetizar nossos desejos e nossa humanidade, como se o poder de consumo fosse, simultaneamente, uma forma de operar com excitamentos e com nossas identidades sociais. E à medida que não se pode operar com os próprios desejos, tampouco satisfazer às expectativas do Outro capitalista, promove-se a “substituição” dos desejos e identidades sociais por sobras sociais, como se esta atitude inconsequente pudesse lesar o Outro capitalista, sem que os sujeitos tivessem que enfrentá-lo a partir dos próprios desejos. Não se trata aqui de um quadro de sofrimento ético-político e antropológico. À diferença destes, os sujeitos não são aqui privados da sociabilidade. Eles não são propriamente excluídos (o que exigiria deles ajustamentos de inclusão). Eles são, sim, obrigados a assumir um papel específico, que é o papel de sujeito consumidor (de certos produtos, rituais, ideologias). O que significa que teriam de abrir mão não apenas dos outros papéis que pudessem desempenhar; eles também precisariam abrir mão dos excitamentos e dos desejos que, a partir dos excitamentos, pudessem realizar na mediação da realidade, agora dominada pela ideologia do consumo. A única forma de resistir é, paradoxalmente, fugir do conflito, alienando-se nas próprias mercadorias que devesse consumir, tornando-se uma delas ou, o que é a mesma coisa, banalizando-se.

A redução de danos como uma estratégia de enfrentamento ao Outro capitalista

O tratamento ao sujeito banal é uma demanda do próprio Outro capitalista. Afinal, porquanto se transformaram em sujeitos-mercadoria, os sujeitos (agora banalizados) deixaram de desejar, o que significa dizer, deixaram de consumir novas mercadorias e, assim, movimentar o mercado capitalista. Reabilitar o desejo por novas mercadorias: eis a expectativa do Outro Social capitalista em relação aos sujeitos banais. E, na contramão da expectativa capitalista, acreditamos que não devemos tirar de todo o objeto da alienação banal (a droga, a imagem, o vício...). Afinal, não podemos esquecer que este objeto seja, talvez, uma forma de resistência face ao Outro Social. De onde nossa simpatia pela política de “redução de danos”: ela é um acompanhamento que, ao mesmo tempo em que preserva as poucas formas de defesa construídas pelo sujeito banal, mobilizam nele alternativas de enfrentamento, porquanto, na redução de danos, não se trata de reabilitar um consumidor, mas de reabilitar um sujeito crítico em relação às causas de sua banalização.
Nas formas de banalização relacionadas ao escamoteamento do conflito, como é o caso das formações disruptivas, tais como a anorexia (em que o sujeito despreza a família, a comunidade e a sociedade sem precisar se posicionar) e a bulimia (em que o sujeito posiciona-se de modo a que ninguém possa saber), a estratégia de intervenção também consiste no encorajamento dos sujeitos. Eles devem poder ser mobilizados a assumir e a executar o desejo de enfrentamento ao Outro Social, geralmente representado por algum familiar, parente ou figura de poder, contra o qual não conseguem fazer valer os próprios desejos. É característico no atendimento aos sujeitos com “distúrbios alimentares” que venham acompanhados pelos representantes do Outro Social que não podem enfrentar, como se nos indicassem explicitamente a quem devemos ajudar-lhes a combater. Razão pela qual, no atendimento a anoréxicos, por exemplo, costuma dar muito resultado apartá-los dos acompanhantes (geralmente parentes cuidadores), autorizando a raiva que possa haver contra estes. Na bulimia, da mesma forma, costumam ter êxito as intervenções em que tentamos deslocar para o domínio da palavra a violência contida no ato de provocação do vômito. Certa vez atendemos uma consulente que, ao término de cada sessão, preocupava-se em fazer apontamentos para que nada fosse omitido para sua mãe. Este aparente bem-sucedido consórcio - justificado por uma incondicional admiração pela progenitora - valia para a consulente o financiamento de todos os caprichos cosméticos, mas também um espartano regime de educação corporal, moldado conforme as exigências estéticas da mãe. Até que a presença de uma lesão nas cordas vocais desesperou a consulente, porquanto jamais confessaria seu ritual bulímico. Por que ela omitiria para a mãe pan-óptica tal ação? Concluímos que no vômito noturno havia bem mais do que a tentativa de se livrar do excesso de calorias ingeridas. Havia também a raiva que a consulente não conseguia exprimir para a mãe. Em verdade, a consulente não conseguia sequer assumir para ela mesma que lhe parecia odiosa a convalescência do pai em decorrência das humilhações que sofrera da parte da mãe. E os vômitos só acabaram quando ela finalmente conseguiu tomar partido do pai.
De um modo geral, acreditamos que o trabalho de “restituição do lugar de protagonistas aos sujeitos que desistiram de sua capacidade ativa em favor de restos da cultura de massa” é a estratégia mais eficiente tanto para a redução dos danos advindos da alienação irresponsável, sem reflexão (como diria Hannah Arendt), quanto para o enfrentamento da verdadeira causa do esvaziamento da capacidade crítica destes sujeitos, precisamente, o totalitarismo do Outro capitalista, constitua-se ele na forma de uma demanda de consumo ou de uma demanda por adesão cega a uma ideologia. Resgatar, nos sujeitos banais, a revolta, indignação e capacidade reativa é o mesmo que fortalecer, em cada qual, a função de ato por cujo meio eles haverão de mobilizar desejos (políticos) a partir dos excitamentos disponíveis e identidades sociais críticas (face às demandas totalitárias).

Referências Bibliográficas

ARENDT, Hannah. 1963. Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
GRANZOTTO, M.J.M., GRANZOTTO R.L. Psicose e Sofrimento. São Paulo. Summus, 2012
[PHG] PERLS, Frederick; HEFFERLINE, Ralph; GOODMAN, Paul. 1951. Gestalt
Therapy: excitement and growth in the human personality. Second Printing. New
York: Delta Book, 1965. Versão brasileira: Gestalt Terapia. Trad. Fernando Rosa Ribeiro.


Leitura gestáltica e intervenção nos ajustamentos psicóticos

Granzotto, R.L.; Müller, M.J.


Abstract:
O texto que ora propomos não é um artigo científico. Ele tem como base nossa experiência clínica de mais de três anos em acompanhamento terapêutico de pessoas que se ajustam psicoticamente e se destina a apresentar reflexões iniciais sobre uma possível leitura dos ajustamentos psicóticos à luz da teoria do self e de suas funções fenomenológicas apresentados por Perls, Hefferline e Goodman na obra Gestalt Therapy (1951). Conforme tal obra, a psicose é um tipo de ajustamento criativo em que a função de ego opera em proveito da suplência do fundo temporal de vivências que, espontaneamente, a função de id ou não retém ou não pode articular como base sensível para os processos de contato. O trabalho de intervenção gestáltica que estabelecemos procurou assegurar, aos pacientes terapeuticamente acompanhados, suporte para a constituição de laços sociais necessários às elaborações alucinatórias e delirantes, na forma das quais esses mesmos pacientes tentavam preencher e articular cada qual seu próprio fundo de excitamentos.

Palavras-chave:
Psicose – teoria do self – ajustamentos alucinatórios e delirantes


1. Psicose na literatura de base da Gestalt-terapia

No prefácio à edição de 1945 da Knox Publishing Company da obra Ego, Fome e Agressão, Perls anuncia que “no presente momento estou envolvido em um trabalho de pesquisa sobre o mal funcionamento do fenômeno figura-fundo nas psicoses em geral e na estrutura da esquizofrenia em particular. Ainda é cedo demais para dizer quais serão os resultados; parece que vai resultar em alguma coisa” (1942, p.32). E até os dias de hoje estamos no aguardo desses resultados que, entretanto, nunca se fizeram conhecer. Alguns anos mais tarde, pela pena de Paul Goodman, Perls e seus companheiros de fundação da Gestalt-terapia afirmaram, em trecho que tratava da “neurose como perda das funções de ego”, que, “como distúrbio da função de self, a neurose encontra-se a meio caminho entre o distúrbio do self espontâneo, que é a aflição, e o distúrbio das funções de id, que é a psicose” (1951, p. 235). Para eles, a psicose pode ser entendida como “a aniquilação de parte da concretude da experiência; por exemplo, as excitações perceptivas ou proprioceptivas. Na medida em que há alguma integração, o self preenche a experiência: ou está degradado por completo ou incomensuravelmente grandioso, o objeto de uma conspiração total, etc.” (1951, p. 235). Ora, o que os autores querem dizer quando se referem a aniquilação de parte da concretude da experiência? Em que sentido as excitações perceptivas e proprioceptivas constituem a concretude da experiência? Que ações são essas por cujo meio o self “preenche” a experiência, constitui um objeto de conspiração total, se “degrada” ou se “engrandece” incomensuravelmente? Trata-se de uma referência aos quadros clássicos da esquizofrenia, da paranóia, da melancolia e da mania? Nosso trabalho consiste numa tentativa de aprofundamento dessas “pistas” legadas pelos fundadores da Gestalt-terapia no sentido de pensar a psicose à luz da teoria do self.

2. Função id: uma leitura fenomenológica

Para Perls, Hefferline e Goodman (1951) a descrição do self – ou, o que é a mesma coisa, a descrição dos processos que constituem essa reedição criativa de nós mesmos no campo organismo/meio – é um trabalho fenomenológico. Afinal, trata-se da descrição do que há de essencial nessa experiência. Por essa razão, propõem, não uma teoria da personalidade ou uma metapsicologia, mas uma psicologia formal, que não é senão uma descrição fenomenológica desse processo de apercepção da própria unidade no mundo – processo esse a que denominaram de self. Trata-se “da descrição e análise exaustivas de estruturas possíveis” (PHG, 1951, p. 184), por cujo meio poderíamos nos representar uma continuidade no processo de crescimento (retomada criadora) do organismo. Por meio dessa descrição, apartam o sistema self da visada naturalista do cientista e do homem comum – visada esta que não faz senão fragmentar o self em um número infinito de individualidades empíricas. Todavia, conservam a linguagem utilizada, por um lado, pela teoria organísmica de Goldstein e, por outro, pela psicanálise freudiana. Afinal, tais linguagens são capazes de remarcar (ainda que precariamente) o caráter eminentemente holístico das funções por cujo meio o self se manifesta, muito embora nem Goldstein nem Freud compreendessem o self de forma transcendental.
Baseados nessa forma peculiar de se fazer fenomenologia, Perls, Hefferline e Goodman (1951) propõem a discriminação entre, pelo menos, três funções ou operações básicas do self, que eles denominaram de “estruturas” (p. 184) ou “sistemas parciais do self” (p. 177), a saber: a função id, a função de ego e a função personalidade. Elas não são três partes do sistema self, ou três etapas que eu poderia observar numa sucessão cronológica. Ao contrário, as três funções são apenas três pontos de vista diferentes que eu posso ter de uma mesma experiência, que é o sistema self em funcionamento. O que significa que, em cada experiência vivida (ou seja, na qual há um fluxo de awareness), eu tenho concomitantemente as três funções. A visada de uma ou de outra é uma escolha teórica de quem está a descrever a experiência. A frase “Sou eu que estou respirando neste momento” designa, simultaneamente: i) uma personalidade, uma réplica verbal de uma identidade objetiva (marcada pelo pronome reto “eu”); ii) uma função de ego, que é a ação mesma de emitir a frase em questão; iii) quanto uma função id, que é a necessidade ou excitamento mais além dos valores semânticos fixados pela frase supra. Falemos um pouco da função id, a cujo comprometimento Perls, Hefferline e Goodman atribuem a gênese dos ajustamentos psicóticos.
Por função id, Perls, Hefferline e Goodman (1951, p. 154) compreendem:

o fundo determinado que se dissolve em suas possibilidades, incluindo as excitações orgânicas e as situações passadas inacabadas que se tornam conscientes, o ambiente percebido de maneira vaga e os sentimentos incipientes que conectam o organismo e o ambiente.

Por um lado, a função id é a “retenção” de algo que não se inscreve como conteúdo, apenas como hábito: forma impessoal e genérica, presença anônima do mundo em mim. Por outro, id é a “repetição” desse hábito, sua reedição como orientação tácita de nossa vida atual. Em ambos os casos, id significa a “impossibilidade” de eu me desligar do mundo, a manifestação “invisível” do mundo em mim, a “generalidade” de minha inserção na vida dos semelhantes e das coisas, a “ambigüidade” permanente de minha existência. Trata-se daquilo que, justamente, Perls, Hefferline e Goodman denominaram de “concretude de nossa experiência”, à qual, uma vez retida, oferece-se como fundo de preteridade para a experiência de contato.
Para nossos propósitos atuais, interessa-nos tão somente remarcar essas duas operações fenomenológicas fundamentais implícitas à função id, que é a retenção e a repetição do retido junto aos novos dados na fronteira de contato entre o passado e o futuro.
A retenção não é diferente da formação do hábito. Ou, o que é a mesma coisa, a retenção não é diferente da assimilação de parte da experiência de contato, precisamente, daquela parte denominada de “forma”. Tal forma pode ser fixada como sentimento, padrão motor ou articulação verbal. Trata-se do conjunto de elementos que constituem aquilo que Perls, Hefferline e Goodman denominaram de awareness sensorial.
Já a repetição, a qual sempre depende do surgimento de um dado novo na fronteira de contato, não é diferente da configuração das formas retidas enquanto um fundo disponível para o novo dado que se apresenta. Ela corresponde ao primeiro passo para a formação de uma gestalt, de um todo indeterminado em torno do dado na fronteira de contato.
E, conforme nosso entendimento, quando Perls, Hefferline e Goodman afirmam ser a psicose a “aniquilação de parte da concretude da experiência” é ao comprometimento das operações elementares da função de id que eles se referem.


3. Psicose como um ajustamento

A psicose é uma forma de ajustamento do sistema self em que os dados vivenciados (na fronteira de contato entre o passado e o futuro desse mesmo sistema): i) ou não são assimilados e, nesse sentido, retidos como fundo de excitamento de novas vivências, ii) ou, uma vez assimilados, não se integram entre si, de modo a também não se constituírem como fundo para os novos dados na fronteira de contato. De certa maneira, é como se as experiências de contato: i) ou não pudessem ser “esquecidas” e, nesse sentido, inscritas como uma estrutura histórico-afetiva, ii) ou não pudessem estabelecer, depois de retidas, uma relação espontânea capaz de servir de alavanca para as novas experiências de contato. Por esse motivo, as novas experiências aconteceriam privadas de uma intencionalidade específica ou, conforme a linguagem própria da Gestalt-terapia, desprovidas de awareness sensorial. Em rigor, nessa forma de ajustamento, a função id (que justamente se caracteriza pela formação e mobilização do fundo de excitamentos) não cumpriria seu papel, razão pela qual a função de ego (caracterizada pela ação motora e linguageira) estaria desprovida dos meios para lidar com o dado na fronteira de contato. O sistema self seria, então, acometido de uma espécie de “rigidez (fixação)” (1951, p. 34), tal como aquela observável nos comportamentos por vezes descritos pela psiquiatria.
Aqui é preciso introduzir um parêntesis. Afinal, de um modo geral, a psiquiatria se ocupa mais do malogro de nossas tentativas de elaboração social daquilo que em nós não se retém ou se articula espontaneamente; e menos de nosso esforço para estabelecer um ajustamento capaz de preencher ou articular, junto aos dados na fronteira de contato, o fundo (id) que deveria poder se repetir. Por outras palavras: a psiquiatria não descreve o ajustamento psicótico propriamente dito, mas a falência social dele. Por isso, é importante não confundir o “surto” psicótico com o “ajustamento” psicótico. O surto psicótico consiste no estado aflitivo que acomete aqueles que não encontram, nos diversos laços sociais dos quais participam, condições para estabelecer ajustamentos psicóticos. Os ajustamentos psicóticos, a sua vez, são tentativas socialmente integradas de organização do fundo de excitamentos espontâneos.
Nesse sentido, quando se diz que, nos ajustamentos psicóticos, percebemos uma espécie de rigidez, tal não tem relação com aquelas respostas comportamentais totalmente desorganizadas, com os quais, nas mais das vezes, costumamos caracterizar a psicose como uma sorte de “doença”. A rigidez tem antes relação com a “repetição” das tentativas de preenchimento e articulação daquilo que, espontaneamente, não se organiza em alguns momentos de nossa vida, a saber, nosso próprio desejo, nossos próprios excitamentos. Na ausência deles, alucinamos, deliramos e identificamos, nos dados materiais presentes em nosso campo de relações, possíveis representantes daquilo que nossos excitamentos haveriam de ser. Muitos consulentes , por exemplo, insistem em perguntar, ao terapeuta, se o que eles estão fazendo é certo ou errado, adequado ou não adequado. Os terapeutas podem nem desconfiar que, nessas solicitações, possa estar acontecendo um ajustamento psicótico. É verdade que, algumas vezes, os consulentes fazem essas perguntas por que tentam manipular o clínico, atribuindo a este uma responsabilidade da qual querem se desincumbir, o que poderia perfeitamente bem ser entendido pelo clínico como um ajustamento neurótico. Mas, outras vezes, os consulentes fazem-nas porque simplesmente não conseguem compreender o que lhes é solicitado no dia-a-dia, ou organizar o que sentem ante as solicitações. E é possível que possam “identificar” na palavra do terapeuta uma forma de preencher ou organizar o fundo de excitamentos que, para eles, não se define.
Razão pela qual, por mais rígidos que sejam, nos ajustamentos psicóticos, há um intenso trabalho de criação na fronteira de contato. O ajustamento psicótico não é uma doença. Ele também é um ajustamento criador, para usar a letra de Jean-Marie Robine . É uma forma de viver face às condições de campo que a ele se impõem e que tem relação com um funcionamento atípico da função id. Nos ajustamentos psicóticos, o self inventa - junto aos dados na fronteira de contato - a história que ele não pode reter ou espontaneamente arranjar. Quando bem sucedida, essa invenção vem substituir os excitamentos que, diante do dado, i) ou não se apresentaram, ii) ou se apresentaram de modo falhado ou, ainda, iii) se apresentaram de modo desarticulado.

3. Ações da função de ego nos ajustamentos psicóticos

O agente dessa invenção é o aspecto do self denominada de função de ego. A função de ego, entretanto, não opera do mesmo modo como ela operaria se tivesse a sua disposição um fundo espontaneamente articulado. Não se trata de encontrar, no dado, possibilidades de expansão do fundo de excitamentos disponível. Afinal, nos ajustamentos psicóticos, esse fundo não está disponível, ao menos como um todo organizado, como uma orientação intencional para a ação do ego. Ou, o que é a mesma coisa, nos ajustamentos psicóticos, a awareness sensorial está comprometida (ausente, falhada ou desarticulada) e, conseqüentemente, ela não se constitui como base, como motivo para a ação da função de ego junto aos dados na fronteira. Ao ego resta então operar de um modo diferente. Em vez de buscar, nos dados, possibilidades de expansão do excitamento (awareness sensorial), ele procura no dado (seja este o corpo próprio, o corpo de outrem, uma palavra ou uma coisa mundana) o excitamento que a função id ela própria não forneceu, ou forneceu a maior, como um elemento desarticulado. Tudo se passa como se o dado pudesse preencher aquilo que, espontaneamente, não se apresentou; ou, como se o dado pudesse dar um limite à angústia proveniente de múltiplos excitamentos que, por conta própria, não se distinguiram quanto a sua relevância ou emergência.
Até o presente momento, nossa pesquisa pôde identificar três tipos fundamentais de ação do ego nos ajustamentos psicóticos: os ajustamentos psicóticos autistas, os ajustamentos psicóticos de preenchimento do fundo e os ajustamentos de articulação de fundo. A diferença nessas ações tem relação com o modo como o fundo se caracteriza no momento da vivência do contato.

3.1 Ajustamentos psicóticos autistas

Nesse tipo de ajustamento, a função de ego quase não dispõe de um fundo de co-dados retidos. Afinal, a função de id apresenta-se severamente comprometida. Há uma falha na operação de retenção de formas relativas às vivências primitivas de interação intercorporal da criança no meio. Por outras palavras, a intersubjetividade primária, nos termos da qual o infante inicia seu processo de constituição de uma identidade especular, não se deixa fixar como um fundo assimilado. Tudo se passa como se os gestos desempenhados pelo infante na fronteira de contato não visassem coisa alguma, tampouco respondessem aos apelos vindos dos semelhantes.
Esse é o caso, por exemplo, dos quadros tradicionalmente descritos a partir dos critérios diagnósticos do Dr. Kanner. A função de ego é refratária aos apelos ou necessidades advindas dos semelhantes, razão pela qual sua ação parece acontecer sem meta, como se fosse acometida de uma desorientação. O isolamento, concretizado na forma de um mutismo, parece oferecer um tipo de satisfação sem objeto, sem corpo.
Há, além desses quadros, aqueles classificados como síndrome de Asperger. Diferentemente dos primeiros, os segundos conseguem circular muito bem em determinados contextos produzidos de maneira simbólica. Ainda assim, nesses casos, o sofredor não consegue agregar, a essa produção cultural, um fundo emocional. Mesmo dispondo de um verbalismo, trata-se de um verbalismo abstrato que raramente é capaz de acompanhar as sutilezas do emprego cotidiano, como o emprego metafórico, por exemplo. Ainda assim, podemos identificar uma forma metonímica de produzir ligações entre determinadas classes de abstração, onde se deixa verificar uma certa satisfação.
Nesse ponto é importante esclarecer que, diferentemente daqueles que defendem que o autismo é primordialmente uma patologia orgânica ou uma síndrome invasiva, sem traços tipicamente psicóticos, como a alucinação e o delírio, acreditamos se tratar de um ajustamento que partilha, com as outras formas de psicose, um traço comportamental comum, precisamente, a inexistência de um fundo habitual e afetivo que, espontaneamente, oferecesse às ações da função de ego uma orientação intencional. Tanto nas esquizofrenias quanto no autismo, por exemplo, podemos testemunhar ações desprovidas de metas que pudessem ser reconhecidas no laço social.
De todo modo, mesmo no caso dos ajustamentos mais graves, como os de Kanner, podemos observar uma tolerância a intervenções terapêuticas que buscam estabelecer uma espécie de inclusão pedagógica das crianças que estejam vivendo essa situação. A proposta de intervenção é que: o terapeuta possa colaborar para a ampliação do corpo, o que significa, da função de ego em seu extrato mais elementar. Dessa forma, o autista terá a chance de “responder”, não a partir de um fundo de excitamentos afetivos, certamente, mas a partir do que foi fabricado, produzido pedagogicamente como linguagem. Aliás, é importante frisar que, nesses ajustamentos, dificilmente essas fabricações pedagógicas conseguem agregar algum valor afetivo. Ainda assim, cria-se uma chance para que ele possa fazer um laço social, ainda que aleatório.

3.2 Ajustamento psicótico de preenchimento de fundo

Nesses casos, a função de ego atua como se estivesse a preencher, por meio de alucinações de toda ordem (auditivas, visuais, cinestésicas e verbais, como as logolalias), a inexistência dos excitamentos com os quais poderia responder ao apelo do semelhante na fronteira de contato. A demanda do semelhante, na fronteira de contato, desencadeia em mim a compreensão de que, nessa experiência especificamente (nesse sistema self, particularmente), não tenho como responder, não tenho como fazer cessar o apelo que a mim é dirigido. Diferentemente do que acontece, caso me ajustasse de modo autista, compreendo que se quer algo de mim, disponho de um fundo intercorporal que me permite compreender estar havendo, entre eu e o semelhante, uma situação de contato. Ainda assim, a função de ego – que estabelece nesse momento minha singularidade no campo - não dispõe de parâmetro para interagir com esse apelo que, de alguma maneira, solicita o que não sei de forma alguma. Compreendo que algo é pedido, mas não sei o que se pede. A palavra, o gesto, a ação demandada são incompreensíveis. Tudo se passa como se a função de ego na qual estou polarizado não fizesse parte da comunidade lingüística do demandante, não participasse do mesmo mundo, do mesmo sistema self.
Ora, aqui, como nos ajustamentos autistas, a função de ego está às voltas com a ausência de um vivido (co-dado) que não foi retido. Porém, diferentemente dos ajustamentos autistas, os vividos não retidos não dizem respeito às experiências intercorporais que constituem nossa intersubjetividade primária (a percepção do olhar, da voz, do gesto do semelhante e assim por diante). Dessa vez, o não retido tem relação com as vivências de contato instituídas pela linguagem, especificamente com as vivências culturais em que se procura deslocar, para o campo simbólico, os excitamentos primitivos originalmente vividos de maneira corporal. Por outras palavras, o que não se retém é o simbolismo na forma da qual transformamos em “valor” social o afeto, a agressividade, a curiosidade, enfim, toda ordem de experiência até então vivida como uma intersubjetividade primária, intercorporal.
Ora, diante de um símbolo que demanda um fundo de outros símbolos investidos de um valor afetivo, se estes outros símbolos não estiverem retidos, a função de ego precisa produzi-los ou, o que é a mesma coisa, a função de ego necessita aluciná-los. Nesse sentido, é freqüente observarmos ações em que o agente do contato parece abandonar o dado na fronteira para se ocupar de algo que parece não estar acontecendo, parece não estar ali localizado no espaço. É como se ele abandonasse os dados na fronteira em proveito de um irreal que, entretanto, não está anunciado como uma possibilidade a partir dos dados, mas consiste em algo estranho, não disponível, precisamente, o excitamento que deveria dar sentido ou tornar o dado na fronteira algo desejável. Um consulente relata seu grande desconforto ao cruzar por homens mais velhos onde quer que esteja. Se, por um instante, um desses homens lhe dirige a palavra, ele sente seu pescoço formigar, como se a resposta estivesse presa na garganta. Ele produz com a garganta a resposta que não encontra em sua linguagem, não porque não domine o idioma, ou esteja acometido de qualquer distúrbio fonológico ou cognitivo. Não há em seu fundo de pensamentos uma representação que possa ser repetida naquele instante. A alternativa do ego, naquele momento, foi responder por meio de uma alucinação sinestésica. O comportamento que aqui – como em todos os ajustamentos de preenchimento de fundo - podemos observar parece algo dividido, o que justifica o emprego do termo clássico “esquizofrenia” para designá-los. E, a partir da fenomenologia clássica dos comportamentos esquizofrênicos, podemos distinguir entre dois tipos fundamentais de ajustamento promovidos pela função de ego: a esquizofrenia paranóide e a esquizofrenia catatônica.

3.2.1 Esquizofrenia paranóide

No caso da esquizofrenia paranóide, o que fundamentalmente caracteriza a ação da função de ego é a ostensiva tentativa de utilização do dado na fronteira como um meio para preencher a ausência de fundo cultural, o qual não se inscreveu. Esse dado, nas mais das vezes, é o próprio corpo no qual se verifica a presença de uma função de ego. Esta usa o corpo (o próprio e o do semelhante) para fazer às vezes daquelas palavras, daquelas instituições culturais que tornariam desejáveis as outras palavras, as outras instituições produzidas na fronteira. Assim, o corpo não só é empregado de modo a buscar algo ausente, mas, sobretudo, para representar uma ausência cultural. O corpo, nesses termos, assume o valor de um corpo-palavra, tal como naqueles episódios em que o esquizofrênico, para responder a uma demanda sobre o quanto ele “gosta” do calor, põe sua mão numa chama. Ou, então, para responder à questão: “você está com medo?”, ele “literalmente vê” uma figura bizarra (a qual, entretanto, nunca é definida, investida de predicados socialmente aceitos, como no caso da paranóia, sobre a qual falaremos mais à frente).
A reação imediata às demandas sociais, entretanto, é precedida por um uso do corpo para fazer eco. É o caso das ecolalias, logolalias e todas as formas de repetição, por meio das quais a função de ego, nesses ajustamentos, faz duplo aos semelhantes no laço social. As alucinações produzidas a partir do corpo parecem oferecer, nesse tipo de ajustamento, uma sorte de satisfação, porquanto detém, por um instante, a demanda simbólica que vem do semelhante.
A intervenção terapêutica, nesses casos, consiste em colaborar para que a função de ego no consulente possa “alucinar” o fundo de que não dispõe. O terapeuta, em algum sentido, “empresta” sua percepção e sua linguagem para que os consulentes possam, num primeiro momento, se apropriar das formas com as quais criam respostas. Trata-se de um trabalho de pontuação dos movimentos, repetições, logolalias, enfim, quaisquer alucinações que estejam sendo produzidas. A idéia é ampliar essas alucinações e tratar delas como se fossem um “jogo”, uma “atividade” da qual o próprio terapeuta pudesse participar. Essa estratégia não só valida a função de ego no consulente como amplia enormemente a contratualidade social dos ajustamentos por ela produzidos. Não se deve, em hipótese alguma, desqualificar, ou mesmo interpretar a alucinação produzida, como se ela tivesse um sentido, algo por se descobrir. Ao contrário, é preciso perceber que a alucinação é indício da autonomia da função de ego no consulente, autonomia essa que deve ser secretariada, protegida e, na medida do possível, ampliada.


3.2.1 Esquizofrenia catatônica

A esquizofrenia catatônica é um desdobramento da esquizofrenia paranóide. Trata-se de um ajustamento em que a função de ego, em vez de continuar produzindo novas alucinações que pudessem deter as demandas sociais na fronteira de contato, procura então se fixar naquelas já produzidas. Trata-se de uma cronificação das alucinações paranóides, que ficam parcialmente fixadas. Aliás, a fixação da função de ego em alucinações corporais já estabelecidas é a forma típica da esquizofrenia catatônica. Se, na paranóide, o corpo era, simultaneamente, um corpo-palavra, agora ele aparece como um resto de palavra, um vestígio de uma alucinação que outrora talvez tivesse funcionado. Nesse sentido, testemunhamos na fronteira comportamentos repetitivos, como se fossem rituais. Em verdade, trata-se de expedientes que, alguma vez, obtiveram algum êxito. Mas, depois disso, não foram assimilados como fundo de novas criações. Eles permanecem apenas como vestígio de um conteúdo remoto; e não como uma forma, como um hábito que pudesse ser retomado enquanto fundo de novas criações. Razão pela qual observamos, no decurso dos anos, uma deterioração das alucinações, que ficam reduzidas a um conteúdo mínimo, a um gesto mínimo.
Essa deterioração se agrava ao ponto de alcançarmos o ostracismo, a desistência ou abandono da palavra-corpo. Nesses casos, o embotamento e o isolamento social são constantes. O quadro evolui para um estado de mutismo, que muito se assemelha ao mutismo do autismo. Mas, diferentemente deste, em que não há resposta aos apelos elementares constituídos no campo de nossa intersubjetivdade primária (olhar, gestualidade...), o mutismo das esquizofrenias catatônicas é sempre uma deliberação, uma resposta aos apelos sociais. A função de ego efetivamente delibera em favor do isolamento e do mutismo, razão pela qual empregamos o termo “mutismo secundário” para designá-lo.
A intervenção aqui não é diferente daquela recomendada no caso dos ajustamentos esquizofrênicos paranóides. Ela consiste na ampliação do vigor criativo da função de ego no consulente. Aqui, entretanto, o terapeuta dispõe de um fragmento de simbolização, o qual justifica não uma interpretação, mas uma sorte de trabalho “arqueológico”, como se a alucinação original pudesse ser resgatada. Esse trabalho é importante na medida em pode favorecer a assimilação dos ajustamentos anteriores. Tudo se passa como se, ao emprestar sua “memória” ao consulente, o terapeuta favorecesse a transformação da alucinação em hábito e, nesse sentido, em fundo assimilado.

3.3 – Ajustamento psicótico de articulação de fundo

Nos ajustamentos psicóticos de articulação de fundo, o que se passa é algo bem diferente do que acontece nos dois anteriores. Isso porque, há retenção. As vivências de contato anteriormente estabelecidas são assimiladas, sejam elas intercorporais ou culturais. Acontece, entretanto, que a falha agora repousa no processo de repetição desse fundo junto aos novos dados na fronteira de contato. Ou, mais precisamente, os dados retidos não comparecem, junto ao dado, como um fundo de excitamento articulado, integrado entre si. É como se os muitos co-dados retidos se apresentassem como fundos diferentes, havendo não apenas um fundo, mas muitos. Em decorrência dessa desarticulação, também aqui o sistema self não dispõe de uma orientação intencional espontânea (awareness sensorial), ao menos de uma orientação unificada. Conseqüentemente, a função de ego não sabe com qual fundo operar, a partir de qual parâmetro considerar o dado. Em decorrência disso, não se forma, para a função de ego, uma figura definida. A função de ego precisa antes se ocupar do fundo, articulá-lo, estabelecer para os muitos co-dados uma organização que, espontaneamente eles não têm.
O que nós podemos observar no modo como a função de ego opera nesses casos é que ela estabelece ao menos duas estratégias de organização. Por um lado, temos a estratégia que consiste em articular os vários co-dados como se se tratasse de algo que não pertencesse ao self. Os co-dados que chegam até a fronteira de contato, o self não os reconhece como seus. Para tanto, ou a função de ego i) fragmenta, de maneira delirante, o dado em múltiplas partes, de modo a poder atribuir a cada uma delas os múltiplos co-dados que se apresentam (caso em que temos a paranóia dissociativa) ou ii) procura unificá-los, junto ao dado que se apresenta, enquanto um semelhante ameaçador e que, nesse sentido, deve ser excluído (paranóia persecutória).
Por outro lado, a função de ego pode tentar se “identificar” com esses co-dados. Para tanto, ou a função de ego identifica, nessa desarticulação, a perda da unidade, a perda da integração espontânea do self ou, o que é a mesma coisa, a morte do excitamento (caso em que temos a melancolia), ou a função de ego identifica, nessa desarticulação, uma sorte de ampliação ao infinito do sistema self (caso em que temos a mania). Nesses dois casos, o que a função de ego está tentando fazer é estabelecer um limite para esse fundo desarticulado. Por meio desse limite (de perda ou de posse absoluta), a função de ego torna esse fundo algo suportável e, em alguma medida, parâmetro para que se possa assumir ou rejeitar as novas possibilidades abertas pelos dados na fronteira de contato.

3.3.1 Paranóia dissociativa

A principal característica desse tipo de ajustamento é a fragmentação do dado na fronteira em múltiplas partes desconectadas entre si. Trata-se de um delírio dissociativo que permite ao ego atribuir, a cada parte, um dos co-dados que esteja a sentir de maneira desarticulada. Trata-se de uma estratégia delirante, em que o dado, seja ele o corpo próprio, uma coisa ou o corpo do semelhante, são decompostos em tantas partes quantas forem necessárias para que os múltiplos co-dados (excitamentos) possam ser dissipados.
Em decorrência desse expediente, é freqüente testemunharmos tentativas de ajustamento em que alguém, por exemplo, fragmente seu corpo em várias partes isoladas, como se se tratasse de uma comunidade de sujeitos separados. Ele trata os braços, o cabelo, as pernas, os pulmões, o coração, como se fossem entidades diferentes. Cada órgão tem a sua doença, convalesce de um excitamento diferente. Aliás, a doença é sempre algo buscado, pois é uma forma de decretar que o excitamento está se esvaindo, indo embora. Nesse sentido, podemos falar aqui de uma dissociação hipocondríaca.
Ainda nesse tipo de ajustamento, podemos freqüentemente observar a errância comportamental. A pessoa, a cada momento, está assumindo uma atividade nova, deixando para trás as outras e assim sucessivamente. Ele desliza metonimicamente de uma tarefa a outra, de uma direção a outra, de uma dívida a outra, de uma relação a outra, de um trabalho a outro. Não porque ele quer tudo, mas para poder se livrar do anterior e, um por um, de todos. Afinal, cada via, cada dado que se apresenta é uma ocasião para ele eliminar isso que ele sente, mas não consegue compreender como seu, precisamente, o fundo de excitamentos.
Em certa medida, esses delírios de fragmentação dão ao sistema self um certo alívio, uma dissipação dos excitamentos, o que nos permite falar do delírio dissociativo como a satisfação possível desse tipo de ajustamento.
A intervenção nesses casos consiste em assegurar, ao consulente, que ele possa desfrutar de muitas alternativas. O terapeuta zela para que o consulente possa continuar “caminhando”, possa continuar buscando novas formas de alienação de seus excitamentos. Não se trata de fazer com que o consulente se responsabilize pelas suas escolhas, mas, ao contrário, que ele possa se desincumbir delas em proveito de novas. Dessa maneira, ele amplia as possibilidades de atenuar a angústia advinda da presença incessante de excitamentos que não se articulam segundo uma ordem de prioridade a cada instante de sua vida. O terapeuta deve poder fluir de um assunto a outro, de um lugar a outro, sem se preocupar em amarrar coisa alguma numa totalidade de sentido. O deslocamento metonímico não é, para esse tipo de ajustamento, uma dissimulação projetiva de excitamentos inibidos. É, ao contrário, uma tentativa de por limite nos excitamentos, que assim tornam-se suportáveis.

3.3.2 Paranóia persecutória

Nesse tipo de ajustamento, a estratégia assumida pela função de ego não é fragmentar o dado em múltiplas partes e distribuir entre elas os múltiplos excitamentos vividos de maneira desarticulada. Ao contrário, dessa vez, a função de ego passa a considerar o dado uma unidade estranha, um pólo estrangeiro que reúne em si todos os excitamentos desarticulados que estejam sendo sentidos na fronteira de contato.
Para isso, a função de ego precisa constituir o dado, que pode ser o próprio corpo, ou o corpo do semelhante, como esse estranho, diante do qual ela então passa a sentir pânico. Afinal, se a função de ego está acometida da presença de excitamentos estranhos, tais excitamentos têm relação com esse dado que, a sua vez, haveria de querer destruir a função de ego. Ou seja, a função de ego delira que os excitamentos que estão sendo sentidos em verdade são efeitos da ação persecutória de um dado ameaçador bem definido e claramente identificável na fronteira de contato.
Frente a esse semelhante ameaçador, a função de ego desencadeia uma reação de fuga e de conflito. Ela faz guerra. Tal guerra, enquanto um delírio persecutório, implica uma certa acomodação dos excitamentos desarticulados vividos pela função de ego. Por conseguinte, trata-se de uma certa satisfação possível.
A intervenção nesses casos também não se pauta pela desqualificação do delírio. Afinal, é somente depois de ter sido unificado como um perseguir conhecido que o fundo de excitamentos torna-se algo suportável para a função de ego. Ainda assim, o terapeuta deve poder caracterizar, para seu consulente, o valor de troca social que o deliro produzido representa. De posse desse saber sobre si, o consulente pode reivindicar “proteção”, “soluções”, enfim, contratos sociais que validem suas construções.

3.3.3 – Identificação depressiva

Nesse tipo de ajustamento, a função de ego procura organizar os co-dados (desarticulados entre si) em torno de um objeto com o qual, então, o self possa se “identificar”. Aqui, especificamente, o objeto deve poder representar a desarticulação dos co-dados como uma “articulação perdida”. Razão pela qual o objeto escolhido é sempre um “objeto perdido”. Mais do que isso, a função de ego trabalha no sentido de identificar o sistema self a esse objeto. A função de ego trabalha no sentido de promover a mortificação do self. O objeto perdido, por conseguinte, fixa essa mortificação e permite a vivência do luto, que é a satisfação possível alcançada nesses casos.
Diferentemente do que acontecia nas paranóias, a função de ego não se ocupa de dispersar ou alienar os excitamentos que não se apresentaram para ela de maneira articulada, o que quer dizer, segundo uma ordem de importância. A função de ego agora assume essa desarticulação e sua impotência frente a ela. Mas, para isso se tornar suportável, a função de ego precisa deprimir; ela precisa elaborar essa desarticulação e essa impotência como uma morte ou como um processo de morrer. É freqüente, nesse sentido, a função de ego operar com os excitamentos como se se tratasse de mortes efetivas, vivências aniquiladas e que, portanto, perderam a energia e a capacidade de se repetirem. Ou, ainda, nesses casos, é freqüente a função de ego buscar, nos dados na fronteira de contato, a confirmação de que: “já não há o que fazer”, como se o sistema self tivesse se transformado em um projeto malogrado, fracassado, ou, então, que não fosse mais merecedor de novas oportunidades. De todo modo, a função de ego se “fixa” nessas perdas, como se as carregasse no próprio corpo ou, o que pode ser muito grave, como se fosse essa perda, casos em que a função de ego deixa de operar, porquanto considera o self um sistema morto, a própria experiência da morte.
A estratégia de intervenção, nesses casos, consiste ajudar o consulente a fazer o “luto” das experiências em que ele malogrou, em que os excitamentos não puderam ser articulados como um todo de sentido, como uma personalidade na qual ele pudesse se identificar. A despedida em relação a essas experiências é de fundamental importância, uma vez que somente depois de abandoná-las a função de ego torna-se disponível aos novos dados e aos excitamentos de que ela dispõe, apesar da desarticulação.

3.3.4 – Identificação Maníaca

Na via inversa do que se passa na melancolia depressiva, na mania, a função de ego opera no sentido de negar a desarticulação dos co-dados. Em vez de celebrar a perda, agora a função de ego nega qualquer tipo de perda. Para tanto, a função de ego lê, nas possibilidades abertas pelo dado na fronteira de contato, a infinitude de sua capacidade para articular e, conseqüentemente, a articulação daquilo que até então não se articulava, precisamente, o fundo de excitamentos. Essa identificação megalomaníaca com as possibilidades abertas pelo dado constitui o que na tradição fenomenológica da psiquiatria chamamos de “foliex à deux”. Tudo se passa como se a função de ego percebesse, nas possibilidades abertas pelos dados na fronteira de contato, uma parceria incondicional capaz de potencializar a capacidade da própria função de ego para articular o que não se articula de modo espontâneo. Aliás, a megalomania é a satisfação possível alcançada nesse ajustamento.
A intervenção terapêutica nesse tipo de ajustamento consiste no oferecimento de limites concretos às empresas estabelecidas pela função de ego no consulente. Trata-se de pontuar até onde a terapia e os laços sociais do próprio consulente suportam as ações propostas por este. A formulação desse limite atenua a angústia generalizada decorrente do fato de o consulente não vislumbrar para si uma meta. Não apenas isso, esse limite viabiliza, para o consulente, a discriminação entre quais excitamentos são seus e quais não são. Dessa maneira, o terapeuta viabiliza a passagem do consulente de ajustamentos de menor aceitação social para ajustamentos em que os riscos de rejeição sejam menores. Esse escopo, aliás, deve orientar o terapeuta em quaisquer ajustamentos psicóticos. Afinal, o malogro social consiste numa injunção cuja conseqüência pode ser o surto do ajustamento psicótico.

5. Clínico como acompanhante solitário

No trabalho clínico com consulentes que, por vezes ou na maioria delas, se ajustam psicoticamente, os clíncos raramente identificam as categorias com as quais, até aqui, nos ocupamos de caracterizar as diferentes ações da função de ego (aprender, preencher, articular...). Os ajustamentos psicóticos, nas mais das vezes, são muito sutis e, sobretudo, não dirigem ao clínico uma demanda que os denunciasse, como no caso dos ajustamentos neuróticos. Nestes, os consulentes freqüentemente atribuem ao clínico a responsabilidade de lidar com a ansiedade advinda os excitamentos que estes mesmos consulentes inibem de maneira inconsciente. Nesse sentido, demandam ao clínico: seja meu modelo (confluência); seja minha lei (introjeção); seja meu réu (projeção); seja meu algoz, talvez, meu cuidador (retroflexão); seja meu fã (egotismo) e assim por diante . Nos ajustamentos psicóticos, a sua vez, os consulentes não demandam nada. Quando muito, “fazem uso” da imagem, das ações e das palavras do clínico, servindo-se delas para preencher ou articular algo que, de forma alguma, é uma tentativa de manipulação ou dissimulação. Os consulentes, quando se ajustam psicoticamente, estão tentando compreender algo que se passa com eles; o que é diferente de quando se ajustam neuroticamente, ocasião em que procuram fugir daquilo que estão sentindo (como ansiedade advinda do excitamento inibido). Por isso, nos ajustamentos psicóticos, o clínico quase não tem lugar. O que não apenas dificulta qualquer tentativa de classificação que o clínico nesse momento tentasse fazer, quanto também desencadeia, nesse mesmo clínico, um insuportável estado de angústia. Afinal, o clínico fica sem saber o que se passa e sem saber o que dele se quer. O clínico sente-se um acompanhante solitário.
A experiência clínica nos ensinou essa dura lição: somente quando alcançamos este estado de profunda insegurança e angústia ante os ajustamentos produzidos pelos nossos consulentes é que nos tornamos aptos a participar do esforço que estejam empreendendo para se ajustar. É fato que, depois de tanto tempo de acompanhamento e reflexão, nossa ação parece estar instruída por um fundo de pensamentos já estabelecido – e que este pequeno texto tenta tornar público. Mas a intervenção é mais intuitiva do que planejada; e consiste em ocupar um lugar de secretário, de auxiliar nas ações que a função de ego no consulente esteja desempenhando, sejam elas alucinatórias, delirantes ou identificatórias. Afinal, não conseguimos compreender o que o consulente elabora, onde ele quer chegar, o que ele está omitindo ou procurando. Ele não dá sinais disso, não percebemos nele traços ansiogênicos, que denunciariam para nós a presença de uma inibição inconsciente. Ao contrário, nos momentos em que se ajusta psicoticamente, o consulente age como se tivesse uma certeza impenetrável: a de que só ele pode dar conta da dúvida que o abate. Tentar afrontar essa condição ou roubar do consulente o lugar de protagonista redunda, nas mais das vezes, no fracasso da terapia; ocasionalmente, num pequeno surto.
Respeitar esse limite e, ao mesmo tempo, se fazer disponível para secretariar o ajustamento que, naquele momento, estiver acontecendo é algo muito difícil de fazer. Implica, para o clínico, uma suspensão das próprias expectativas. Em alguma medida, temos de ter a coragem de confiar nos consulentes e nos deixar levar para onde eles quiserem nos levar – até o limite em que os honorários justificarem essa disponibilidade. Mas não apenas isso. Precisamos compreender que o nosso limite, o limite que impomos aos nossos consulentes é um parâmetro de extrema relevância para que eles possam se certificar do êxito de seus ajustamentos. Nossa pontuação do término da sessão, a denúncia de nossa própria ignorância para acompanhar o delírio que estejam produzindo ou a declaração de nosso mal-estar frente ao contato físico muito intenso que procuram às vezes estabelecer: tudo isso ajuda os consulentes a se organizarem em seus ajustamentos, seja porque podem então compreender a finitude das solicitações que dirigimos a eles, seja porque podem enfim compreender que estamos acompanhando o que eles estão fazendo. De um modo geral, podemos dizer que a melhor intervenção em ajustamentos psicóticos é aquela em que o clínico aprende, alucina, delira e se identifica junto com seu consulente, de modo a poder estabelecer, “de dentro”, o limite do ajustamento que estiver acontecendo.

6. Considerações finais

Podemos dizer, em síntese, que a psicose é, por um lado, o comprometimento da função id ou, o que é a mesma coisa, da capacidade do sistema self para espontaneamente articular, quando não para disponibilizar, um fundo de co-dados (excitamentos ou intenções). Mas, por outro, a psicose é um ajustamento. Trata-se da efetiva capacidade da função de ego para aprender, preencher e articular seu próprio fundo, de modo a poder operar fluidamente com os dados na fronteira de contato. Cada uma dessas atividades da função de ego (aprender, preencher e articular) caracteriza um tipo de ajustamento (autista, de preenchimento ou de articulação), o qual sempre depende do laço social para poder se efetivar. O surto, a sua vez, é o malogro social desses ajustamentos e a conseqüente emergência de um estado aflitivo, no qual o sistema self não encontra força para operar com os dados e com os próprios excitamentos, caso eles se apresentem. A função do terapeuta é assegurar direito de cidadania aos ajustamentos psicóticos produzidos pelos consulentes – estejam estes ou não em surto. Para tanto, os terapeutas devem poder promover o deslocamento seguro dos ajustamentos com menor poder de contratualidade para ajustamentos com maior aceitação social; o que de forma alguma se confunde com a eliminação dos ajustamentos psicóticos em proveito de um padrão de comportamento adaptado, freqüentemente neurótico. Trata-se, ao contrário, de apoiar o consulente para que este possa fazer valer seu modo de vida, seus ajustamentos psicóticos nos contextos nos quais se insere. De onde se segue a dimensão também “política” do trabalho terapêutico.


Referências

MÜLLER-GRANZOTTO, M.J. & R.L. Fenomenologia e Gestalt-terapia. SP: Summus, 2007.

PERLS, Frederick 1942. “Ego, fome e agressão”. Trad. Georges Boris. São Paulo: Summus, 2002.

PERLS, Frederick; HEFFERLINE, Ralph; GOODMAN, Paul. 1951. Gestalt Therapy: excitement and growth in the human personality. Second Printing. New York: Delta Book, 1965.Tradução utilizada: Gestalt-Terapia. Trad. Fernando Rosa Ribeiro. São Paulo: Summus, 1997.

ROBINE, Jean-Marie. 2004. S’apparaître à l’occasion d’un autre – Etudes pur la psychothérapie. Bordeaux: L’Exprimerie, 2004.

Passividade, criação e subjetivação na arte e na clínica gestáltica

Rosane Lorena Granzotto

No ofício de clínica gestáltica, uma de minhas paixões, já experimentava, e talvez seja isto que me cativasse, algo que se impunha, um estranho, uma novidade, uma orientação tácita que se revelava nos corpos que ali estavam, seja em afetos inesperados, em gestos surpreendentes ou em palavras que escapavam e quebravam a linearidade do sentido. Aprendi, e não foi fácil, a abrir mão do controle, da previsibilidade, para dar lugar ao inesperado, a esta criação no aqui-agora, confiando apenas no “eu posso”, abertura de possibilidades que o presente com sua força concreta nos oferece para que façamos algo com aquilo para o qual somos passivos.
Em outra experiência mais recente, no contato com a arte, experimentei algo muito semelhante. Ao pintar algo ia acontecendo como se as pinceladas escoassem pelos meus gestos criando formas diferentes de minhas primeiras intenções. Era como se meus atos surgissem independentes de uma consciência reflexiva e pouco a pouco uma materialidade, uma obra, surgia e eu podia reconhecer ali os meus próprios gestos. Quis saber se os artistas também se sentiam desta forma e constatei que muitos se referem ao acaso, ao inconsciente, ao deixar-se levar, ao descrever a forma como se entregam à expressão artística.
Teoricamente já compreendia a co-presença deste outrem através da fenomenologia,
Já é de amplo conhecimento para nós gestalt-terapeutas que o ato criador é o ato de transcendência entre o conhecido e a novidade, coração da experiência e sinônimo de crescimento. A criação está presente em todo ato humano, seja nas experiências cotidianas, artísticas ou terapêuticas; criamos algo quando há uma cooperação entre o material externo e o fundo de excitamentos, mudamos os arranjos existentes da matéria, nossos atos se transformam em instrumentos de expressão e comunicação ampliado nossa própria vida.
Qualquer experiência poderia nos servir de guia em um mergulho no processo criativo, mas para nossa discussão farei uma eleição pela experiência artística por se constituir em uma espontaneidade não teleológica se aproximando muito da experiência terapêutica gestáltica. Segundo Dewey (1912) “na experiência estética, o que vem antes não é irrelevante para o que vem depois, mas também não determina rigidamente seu sucessor. A ligação deve ser de tal ordem que leve a experiência não meramente a um fim, mas a um desfecho” (p. 25). Isto significa que contamos com algo que nos orienta na criação, mas este algo só se concretiza no viver da experiência, mesclado com a materialidade que o mundo nos apresenta em cada aqui-agora. Merleau-Ponty (1964) nos diz que “por mais novas que sejam as iniciativas, elas nascem no coração do ser, elas são oriundas do tempo que irrompe dentro de nós” (p. 274). Ele está se referindo ao conjunto de vividos compartilhados com a humanidade e também àqueles constituídos historicamente na convivência familiar e comunitária que ao perder sua materialidade e conteúdo no presente que se foi, guarda a potencia de orientar novas experiências. A estes vividos chamamos de forma ou gestalt. Porém é importante ressaltar que as formas só têm realidade nas encarnações materiais, elas não têm existência separada da matéria, se fazem na matéria a cada nova experiência, assim como a caminhada se faz ao caminharmos. Assim podemos dizer que a matéria adquire forma à medida que a experiência se desdobra. Matéria e forma são inseparáveis e só existem na experiência, na atualidade. Desta maneira o passado se transpõe para o presente como co-presença, expandindo e aprofundando o que se apresenta como conteúdo e abrindo um futuro pleno de possibilidades.

Por outro lado a experiência também pode ser vista como arte, arte em estado germinal, como nos diz Dewey (1912): “Por ser a realização de um organismo em suas lutas e conquistas em um mundo de coisas, a experiência é a arte em estado germinal. Mesmo em suas formas rudimentares, contém a promessa da percepção prazerosa que é a experiência estética” (p. 84).

E a experiência é algo que muito nos interessa, como gestalt-terapeutas que somos nosso olhar está sempre voltado para o fluxo da experiência em que estamos inseridos, esteja ele fluindo sincreticamente ou sofrendo percalços e interrupções. Como o entendemos na Gestalt-terapia, o fluxo de experiência equivale ao próprio fluxo do sistema self e suas três funções, dimensões temporais que se abrem no aqui-agora a partir de uma demanda. Enquanto função id vivemos a passividade aos excitamentos, enquanto função de ato (ego) criamos, e enquanto função personalidade nos incluímos como seres sociais. Estas funções se desdobram na experiência alternando-se numa dinâmica figura e fundo onde os atos (função de ato) são orientados pelos excitamentos (função id) constituindo um fluxo que conserva uma unidade com a qual nos identificamos. Esta mesma dinâmica a vivemos na experiência clínica, espaço privilegiado para o acolhimento das vulnerabilidades das referidas funções.

Mas o que nos interessa aqui é aprofundar cada função do sistema self naquilo que mais a caracteriza, utilizando a experiência artística como base de reflexão.

Passividade
O que seria a passividade e a que somos passivos na experiência de criação? Ao pintar, por exemplo, o movimento que leva a tinta à tela não é planejado, simplesmente me escapa, ao faze-lo não sei quem faz pois há algo no processo de pintar que escapa ao sujeito reflexivo, à consciência em si. De repente percebo que entre um tempo e outro se cria um espaço: o quadro. E sou a portadora dos gestos que ali se encontram.
Podemos dizer que a passividade está nos movimentos que surgem antes que o artista defina suas intenções ou suas visadas e requer uma atitude de entrega à uma intencionalidade corporal. A passividade inscreve o trabalho artístico na operação não-teleológica (menos designado à priori a um fim), não se tratando porém de uma atitude negligente e nem de “deixar acontecer”.
Como podemos então entender a passividade? Em primeiro lugar como uma ausência de um “si” da reflexão. Há uma suspensão da consciência tética. (...) A passividade revela-se na dimensão surpreendente da forma ou orientação que toma a obra no decorrer do processo criativo. Não sabemos de antemão para onde a obra vai, pois a cada pincelada algo novo se revela e dialoga conosco estabelecendo uma relação, nos olhando lá do outro lado.
A passividade é portanto o fenômeno de escapamento de todos os atos, é a espontaneidade irrefletida e o consentimento a uma dimensão mundana e contingente da experiência.
Podemos observar diferentes formas de passividade na arte nas obras de Michaux, Dubuffet, Duchamp, nos esgarçamentos de Jean Arp, ou ainda nas decalcomanias de Max Ernest. Todos libertam a experiência ou se reportam a ela sob um olhar dinâmico. Estamos nos referindo à arte não-figurativa onde o ato criador teria por origem uma subjetividade criadora. Há criação, como há criação na natureza, ou seja, anônima. Esta possibilidade de uma não-intervenção racional torna possível uma arte liberta dos modelos acadêmicos e conduz os artistas a desenvolver o modo corporal da atividade e também de deixar uma parte ao contingente na elaboração da obra. A intervenção racional é substituída por uma intervenção corporal.
Jean Arp em Colagem segundo as leis do acaso, procura reduzir a intervenção da fantasia compreendida como manifestação da subjetividade no sentido de um individualismo ou de um particularismo. Vemos isto no papel que ele atribui ao “acaso”, seja quando rasga, seja quando coloca pedaços de madeira flutuantes ou ainda usando resíduos. A passividade pode ser traduzida aqui pela pesquisa de uma intervenção reduzida ao mínimo.
É também o caso de Kurt Schwitters (...)
Como já observamos a passividade se caracteriza pela ausência ou diminuição do trabalho reflexivo, vivida como um deixar-se guiar pela obra que está nascendo, o que pressupõe um princípio interno à obra, a sua maneira de aparecer. Rodin dizia que a forma já está no bloco de pedra ou de madeira, o papel do artista é estritamente o de extraí-la, de fazê-la aparecer, ele é o mediador, ou o daimon. Jean Arp esculpia como se cativasse uma nuvem. Os artistas vivem a possibilidade do deixar-se levar diante dos grandes formatos que requerem uma grande liberdade gestual, uma livre mobilidade. Observamos esta amplitude gestual nas obras de Zao Wou-Ki, Willem de Kooning e Joan Mitchell.
A passividade também pode caracterizar-se por um questionamento do papel da atenção. Dubuffet (1958) nos diz que “a atenção mata aquilo que ela toca”. Ela transforma o trabalho artístico em uma produção segundo uma relação de exterioridade entre o modo de ver e o objeto. Simon Hantaï (data) evoca a necessidade de um olhar flutuante. “Falta de atenção, distração, atenção espalhada, flutuante, periférica, descentrada, délocalisée. […] Pintar sem ver, olhando para outro lugar, vacante, ausência de valores, de conteúdo, desocupado, desabilitado, vago…”
A passividade opera nos e pelos gestos. Pollock pinta no chão e por vezes dança sobre a tela.
Certas vezes, não chegando a alcançar o efeito que procura, Francis Bacon perdendo o controle lança sua esponja. A respeito deste gesto descontrolado diz: “frequentemente, eu não sei na verdade o que vai fazer minha pintura e ela faz muitas coisas melhores do que eu poderia fazer”.
Em Nicolas Staël encontramos a idéia de que o quadro é um espaço de captação de certa ancoragem no mundo. O “ajustamento” não é uma decisão, mas o movimento no qual o artista “como não sei quem” é o meio, o agente. Não há decisão porque não há um sujeito estabelecido que projeta. O sujeito agente é subjetividade apenas a título do “eu posso” (atos). Porém estes atos são orientados por um fundo de passado, é o passado que torna possível a abertura. O sujeito aqui não é posição, mas integração de potencialidades e de experiências.
Há uma mudança do olhar lançado sobre a prática artística, de um olhar para o produto acabado ou inteiramente constituído (conteúdo) para um olhar para a maneira de proceder (forma). A presença de “manchas” manifesta este desejo em obra de uma abolição de uma forma de “fazer”, de gestos concordantes para um movimento de liberação dos gestos, de tal maneira que haja escapamento da obra como a vida em suas potencialidades. Neste sentido a obra surge através de uma experiência de desapego. A mancha parece o objeto que de maneira mais elementar faz tocar a possibilidade de um engendramento não concordante, faz aproximar do caráter inesperado, não premeditado ou predeterminado do engendrado, que se revela sem relação com aquilo que provocou o engendramento, surgindo como inarticulado, do obscuro. Sam Francis ilustra esta reflexão com suas manchas multicoloridas.

A passividade na filosofia de Merleau-Ponty
É no filósofo Merleau-Ponty que vamos buscar a reflexão que nos permite compreender a passividade e sua relação com a experiência criadora. Ele diz “não sou […] o autor deste oco que se faz em mim pela passagem do presente a retenção, não sou eu que me faz pensar, como não sou eu que faz bater meu coração” (Merleau-Ponty, 1964, p.275). Através do problema da passividade, Merleau-Ponty procura mostrar que o alargamento do campo é o próprio princípio de nossa experiência porque nós estamos no mundo no desvio. Consequentemente, pela passividade, ele funda a experiência como abertura. Abertura do novo, a campos de experiência insuspeitados, estranhos ou passados, tanto quanto a conhecimentos inéditos. Merleau-Ponty realiza este projeto ao recolocar a deiscência, o desvio, a opacidade, o lacunar, a espessura no coração do sujeito e da história.
É o sentido de “ter consciência” que o problema da passividade conduz à reformulação. Ter consciência, segundo Merleau-Ponty (1968), é “realizar um certo desvio, uma certa variante em um campo de experiência já instituído” (p. 67). Este desvio se faz no corpo sensível, motor ou linguageiro. Neste sentido o corpo ganha uma importância crucial em nossa discussão sobre a passividade. Ao pintar, o artista participa com seu corpo, enquanto corpo animado pelo movimento da vida, campo de experiência histórico-cultural. Seu trabalho é um trabalho do corpo ou de incorporação do movimento, uma maneira de emprestar seu corpo ao nascimento de um outro corpo.

Criação
É porque o sujeito é uma abertura de campo que a experiência do ser se faz como criação. Pintar ou qualquer outra atividade criadora significa produzir “um pedaço de mundo”, “abrir um campo, deslocar ou modificar uma configuração, uma percepção, transformar um pouco o mundo” (?), assim como ser transformado por ele.
Entre a passividade e a criação, não há oposição: a passividade se encontra, antes, do lado do movimento em obra, ela revela a modalidade do ato ou do processo e não dos efeitos deste ato sobre o mundo. Porém, a passividade longe de tornar impossível a liberdade, é o que funda o movimento: “minha liberdade, o poder fundamental que tenho de ser o sujeito de todas minhas experiências, não é distinto de minha inserção no mundo” (?).
A criação é menos solicitação do que consentimento ao inarticulado, ao indeterminado, ao irrefletido, investimento do lacunar. E mesmo procedendo metodicamente eu não saberia totalmente o que a obra vai se tornar durante a elaboração, porque não posso ver ou saber antes de ter feito. O fazer não se reduz ao querer. No fazer, há poder. Ser criador é ousar se afastar do que sabíamos, do já conhecido, do já percorrido. O sujeito enquanto “eu posso” e como corpo é o mediador da experiência nova. É assim que através do corpo eu persigo o “eu posso”.
A passividade obra em toda atividade humana, nada pode escapar dela e o escapamento é a própria experiência. A arte tal como a definimos, a saber, prática criadora que integra a experiência como abertura à passividade, exprime uma dimensão da realidade que é escapamento, que não se deixa apreender, um indomável, um ser selvagem. A criação seria o movimento que inscreve uma fratura, uma brecha, uma abertura.
A passividade e a atividade no seio da criação não se opõem, mas se completam. A passividade é um deixar ser. Ela requer uma potência a não ser nada ou antes nada além que um consentimento em trabalhar com o que se apresenta.

Passividade e subjetividade
Em cada expressão artística há uma forma ou um sentido particular da passividade, uma relação diferente da expressão, seja uma relação particular com o mundo ou com o sentido de ser no mundo. Porém, não podemos reduzir a expressão artística a quaisquer traços, já que se trata de uma criação, é antes a colocação em obra de um olhar particular do mundo, mas apesar disto um olhar do mundo. O mundo entendido como “aquilo sobre o qual se abre todas as perspectivas” (Merleau-Ponty, 2003, p. ).
Estamos diante de uma forma particular de subjetividade: onde o sujeito se manifesta em uma forma que o distingue da consciência soberana. Ele é sujeito a título de participante de uma experiência com certa capacidade de inventar outras modalidades ou outras maneiras de proceder, ou ainda, outros gestos: uma liberdade funcional.

Arte e Subjetivação
“Cada sujeito, ao construir um objeto, pintar uma tela, cantar uma música, faz algo mais que expor a si mesmo e o próprio sofrimento. Ele realiza um fato de cultura, no momento em que contribui para abrir uma fenda naquela espécie de muralha intransponível entre os que se exprimem de certa forma e os que nessa forma não encontram mais a si mesmos. Os produtos dessas experiências estéticas podem ser materiais e imateriais: obras, quase-obras, acontecimentos, efeitos sobre os corpos, novas subjetividades\" (Lima, 2012, p 49).
Deleuze (2006) nos diz que a arte repete todas as repetições, imprimindo, sempre a marca do novo, podendo aparecer de diversas maneiras. É no “fazer de novo” que o mais genuíno do sujeito pode aparecer, e uma produção original se dá a partir do estranhamento, induzindo a novos pensamentos, a novas reflexões, a novas criações. Através de um “ fazer repetitivo”, há possibilidade de se resgatar o lugar de sujeito, visto que o ato que se repete continuamente traz a dimensão da diferença, da criação, da possibilidade do novo e da transgressão.

Arte e Inclusão
Entretanto, o sujeito que se insere numa criação sustenta uma singularidade, produz mudanças em sua posição subjetiva pois sempre há a possibilidade do aparecimento do novo. A criação torna-se uma saída, representando um meio do sujeito restabelecer seus laços com o mundo e o que vai sendo tecido, a partir de constantes repetições durante o “fazer artístico”, conduz os envolvidos a se tornarem artistas da própria vida e do próprio discurso.

Referências

DELEUZE, G. (1968). Diferença e repetição. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006
DEWEY, J. Arte como Experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
HUSSERL, E. Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994.
LIMA, E. A. \"Artes menores: criação de si e de mundos nas ações em saúde mental\", in AMARANTE, P. NOCAM, F. (Org.), Saúde Mental e Arte, práticas, saberes e debates. São Paulo: Zagodoni, 2012.
MÉNASÉ, S. \"Passividade e criação: pintura e abertura, a partir de Merleau-Ponty\", in VALVERDE, M. (Org.), Merleau-Ponty em Salvador. Salvador: Arcádia, 2008.
MERLEAU-PONTY, M. Le visible et l’invisible. Paris: Gallimard, 1964
_____. Resumés de cours. Paris: Gallimard, 1968.
_____. “Le problème de la passivité: le sommeil, l’inconscient, la mémoire”, in MÉNASÉ, S. Institution – passivité, cours au Collège de France, 1954-1955. Paris, Berlim, 2003.


De la psicopatología a la analítica de la forma
Müller, M.J., Granzotto, R.L.

Resumen: Esta comunicación trata de una lectura del sufrimiento, no más como síntoma psicopatológico, sino como afecto característico de los ajustes creadores en que se intenta articular las diferentes dimensiones de la experiencia del contacto entre el clínico y el consultante.


Por más paradojal que esto pueda parecer, voy a comenzar diciendo que la clínica que hago y que me gustaría verla reconocida como una práctica Gestáltica no busca eliminar el sufrimiento. No porque no me interese por los fenómenos frecuentemente designados por el significante sufrimiento o, al contrario, porque tenga algún tipo de satisfacción sádica en ver mis consultantes sufriendo; lo que, evidentemente, es siempre algo a ser considerado. No me opongo a una clínica del sufrimiento, sino a las tentativas de eliminarlo. Al final, en tiempos de globalización, tales tentativas están al servicio de la ideología de la satisfacción sin límites, la cual, por ser inalcanzable, no hace más que girar la máquina del consumo. En el ideal de una vida sin sufrimiento, se esconde una demanda por consumo, cuya consecuencia es la alienación de nuestras vidas, incluyendo ahí nuestros sufrimientos, en provecho de la satisfacción ajena. Y lo peor en todo esto tal vez sea que la demanda por consumo nos impide percibir la satisfacción que hay en el sufrimiento. Al final, lo que a veces llamamos de sufrimiento no es sino el afecto envuelto en el trabajo de construcción de nuestra propia autonomía.
Como bien señalaron Perls, Hefferline y Goodman, comentando pasajes de la traumdeutung, Freud ya había comprendido la doble naturaleza del síntoma: en parte, el síntoma revela una defensa contra la vitalidad; y por otra parte, él es la propia expresión de la vitalidad (PHG, 1951, p. 93). Por cuenta de esto, no veo que las personas que me procuran quieran verdaderamente librarse de las confluencias, proyecciones, introyecciones, retroflexiones y formaciones egotistas, así como de las alucinaciones, de los delirios y de las identificaciones maniaco depresivas. Para citar algunos síntomas. En verdad, tengo la impresión de que ellas quieren antes un espacio en que puedan continuar realizando esos comportamientos, los cuales, hasta ahí, habían funcionado; pero que, ahora, nadie más quiere oír, pues todos quieren solamente divertirse. Es claro que hay, en estos comportamientos, conflictos no elaborados, limitaciones que proporcionan la ocasión de la creación y, de esta manera, algún tipo de satisfacción que ningún objeto de consumo puede ofrecer, porque se trata de una satisfacción originada de la acción, de la acción de la función de ego en cada cual. Y si ustedes preguntaran “?cuál es el beneficio que los consultantes alcanzan realizando sus síntomas en mi consultorio?”, puedo al menos responder que, después de cierto tiempo, ellos se vuelven tolerantes con ellos mismos o, parafraseando a Donald Winnicott, ellos aprender a sufrir.
Pero, para que los consultantes puedan, en algún momento, comprender en sus propios síntomas, en sus modos de sufrimiento, verdaderos ajustes creadores, es preciso mucho trabajo. Es necesario abandonar el lugar de quien pueda juzgar o diagnosticar las causas o las consecuencias de los síntomas para, efectivamente, participar de ellos. Esto significa decir, es necesario crear condiciones seguras para que el síntoma acontezca de nuevo, hasta que ese acontecimiento pueda ser señalado y tan solamente señalado; lo que significa decir, descrito como una dinámica de interacción social. Solamente así los consultantes tendrán condiciones de localizar y elaborar lo que ellos mismos hacen y decidir por un futuro. Evidentemente, el trabajo de soporte para la emergencia segura de un síntoma en régimen de terapia depende más del consultante de que de los clínicos. Pero sobre estos recae la tarea ética de identificar y actuar a partir del lugar sintomático al cual fueron conducidos por los consultantes: maestros, jueces, verdugos, cuidadores, fans, secretarios y así hacia el frente. Los clínicos pueden operar esa identificación y esa actuación a partir de diferentes mapas teóricos. Pero si el mapa no pudiera acoger las formulaciones del consultante, sí él no pudiera amoldarse a las construcciones del consultante, él no ayudará al clínico, menos aun al consultante. Es en este sentido que identifico en la teoría del self formulada por Perls, Hefferline y Goodman una poderosa cartografía clínica. Al final, al distinguir entre tres funciones de campo (función id, ego y personalidad), bien como al presentar esas funciones como operadores sociales, la teoría del self no excluye la producción social del consultante y del clínico en el aquí-ahora de la sesión. Al contrario, hace de ella el vector a partir del cual el clínico se posiciona como un interlocutor y no como un evaluador o defensor de un ideal de salud. El clínico ya no va a actuar a partir de sus ideales y de su saber sobre el síntoma. Él va a actuar a partir de los efectos que él mismo pudiera ver en la relación con su consultante.
En este sentido, si el clínico (a partir de lo que para él es un fondo de excitamientos o, simplemente, función id), se siente demandado a asumir la responsabilidad por la ansiedad que el consultante, desempeñando una función personalidad, afirma sentir o, desempeñando una función de ego, demuestra estar sucediendo, tal demanda puede indicar, para el clínico, un tipo específico de lazo social, que es el ajuste neurótico. En este ajuste, el clínico se siente como si él debiese dar una explicación sobre la ansiedad vivida por el consultante. O, entonces, se siente como si debiese confirmar el expediente de alienación de la ansiedad a favor de la ley del semejante; o, quien sabe, el clínico podría sentirse compelido a cuidar de las quejas retroflexivas de los consultantes. O, tal vez, obligado a aplaudir la astucia con la cual los consultantes afirman haber engañado la ansiedad, como sucede en los momentos egotistas. La tarea ética del clínico en este campo relacional, específicamente, es producir una especie de desvío (también llamado de frustración habilidosa) que restituya al consultante la responsabilidad por las acciones inhibitorias que , en la actualidad de la sesión, pueda estar evitando la emergencia de una novedad, de un horizonte de futuro en que la ansiedad pudiese ser disuelta. No interesa aquí encontrar una estructura o un padrón de comportamiento. Interesa solamente ayudar al consultante a comprender como, en la actualidad de una relación, la satisfacción originada de la repetición de comportamientos evitativos está en conflicto con las demandas y con las otras posibilidades de satisfacción abiertas por el medio social. El que hacer a partir de ahí es una decisión exclusiva del consultante.
Pero si el clínico se siente angustiado, si la función id en aquel campo aparece para él como un sentimiento incipiente de angustia, eso puede indicar que, en aquel campo, el fondo de excitamientos puede estar ausente, fallado o desarticulado. Esto significa decir que, la función de ego que se actualiza en las acciones del consultante tal vez esté desprovista de una orientación intencional a partir del fondo o, simplemente, desprovista de awareness sensorial. En consecuencia, el consultante no se va a ocupar de las demandas que el propio clínico pueda formular. Para aquel, lo más importante es la producción de un ajuste de busca, al cual también llamamos de ajustes psicóticos. Aquí el clínico no tiene exactamente un lugar. Cuando mucho él es invitado a secretariar las buscas que –en la forma de alucinaciones, delirios y deliberaciones identificatorias– los consultantes hacen por sí.

Incluso puede suceder que el clínico se sienta convocado a una acción solidaria, por cuanto el consultante se encuentra privado no de un afecto, sino de los medios sociales con los cuales pudiese desear un futuro, para lo cual está abierto, diferentemente del neurótico. Aquí, entonces, el clínico no es manipulado o ignorado. Él es investido en un lugar de ego auxiliar. Lo que abre, en el seno de la clínica, una dimensión ético-política, cuya meta es la producción de un soporte para que los consultantes puedan reivindicar inclusión social que les valga la reconstrucción de la función personalidad.
Ahora, más que diagnosticar una patología, menos que pretender erradicar un sufrimiento, mis intervenciones clínicas buscan desencadenar, en los consultantes, un efecto de apropiación de aquello que ellos mismos puedan producir en la relación que mantienen conmigo. Es por eso que declino de las categorías psicopatológicas a favor de la analítica de la forma, tal como nos proponen Perls, Hefferline y Goodman, en su definición de terapia gestáltica: “la terapia consiste en analizar la estructura interna de la experiencia concreta: no tanto lo que está siendo experienciado, recordado, hecho, dicho, etc.; sino la manera como lo que está siendo recordado es recordado, o como lo que es dicho es dicho…”. (PHG, 1951, p.46).



Referencias:
Müller-Granzotto, M.J. & Müller-Granzotto (2007), R.L. Fenomenología y Terapia Gestáltica. Santiago, Cuatro Vientos, 2009.
Perls, F.S., Hefferline, R.F., Goodman, P. (1951), Terapia Gestalt. Madrid, Sociedad de Cultura Valle-I

Estado de exceção na crítica agambeniana: uma leitura do sofrimento e possível intervenção à luz da Gestalt-terapia

Fabrício Siqueira Basso

Artigo de conclusão de curso de Especialização em Gestalt-terapia

Resumo:
O advento do Estado democrático de direito teve por finalidade abolir a vontade soberana das formas de governo dantes existentes. Entretanto, o que se vê é que a vontade soberana permaneceu no Estado de direito de maneira oculta e disponível, sempre que preciso, para ser utilizada como técnica biopolítica a grupos ditos perigosos ante o sistema. É diante da denúncia deste malogro que Agamben nos mostra, através do artifício jurídico do “estado de exceção”, a maneira pela qual o soberano ainda permanece na constituição dos Estados modernos. Faz-se necessário, portanto, haver estudos e pesquisas visando desmascarar as diversas metamorfoses da vontade soberana que ainda permanece (e sempre esteve) na constituição do direito ocidental. Seguindo esta orientação, busco na Gestalt-terapia (uma abordagem psicoterapêutica) desenvolver uma leitura do sofrimento destes, que se encontram como vítimas do totalitarismo soberano, bem como divulgar sua proposta de intervenção inclusiva.

1 INTRODUÇÃO

Nos tempos hodiernos, em que os Estados modernos se utilizam cada vez mais de exceções jurídicas (medidas provisórias e excepcionais) como técnicas políticas a fim de governar e amenizar grupos ditos perigosos – normalmente relacionados à defesa de interesses corporativos – faz-se necessário problematizar tal movimento da política contemporânea, bem como as formas de atuar junto àqueles que sofrem com tais técnicas políticas.
A política moderna em sua tentativa de articular zoé e bíos, ou, o que é o mesmo, voz e linguagem, assume uma forma biopolítica, destarte, “A vida nua continua presa a ela sob a forma da exceção, isto é, de alguma coisa que é incluída somente através de uma exclusão.”(AGAMBEN, 1995, p.18)
O estado de exceção virou norma na política moderna. É diante da denúncia de Giorgio Agamben de que o Estado de direito malogrou ao tentar cessar a vontade soberana, permanecendo esta oculta e em potencial naquele, que desenvolvo meu artigo.
Sob o esteio de Agamben, que reconhece a permanência dos campos nos quais impera a exceção no Estado de direito moderno em situações como áreas de espera de aeroportos, estruturas de planejamentos estatais aos migrantes e refugiados, certas periferias de nossas cidades, internações compulsórias e pacientes judiciários , sujeitos encarcerados, situações de violência racial e de gênero, enfim, campos que identificam as diversas formas de metamorfoses da exceção soberana moderna, que amparo meu trabalho. Todavia, não procuro me ater estritamente à denúncia, mas sim, e principalmente, ao sofrimento daquele que vive sob a forma da exceção, bem como, divulgar uma proposta de intervenção a estes que sofrem.
Afinal de contas, “A vida nua não está mais confinada a um lugar particular ou em uma categoria definida, mas habita o corpo biológico de cada ser vivente”. (AGAMBEN, 1995, p.135)
Neste artigo, não busco identificar a gênese deste sofrimento. Procuro, no entanto, abordar o tema sob um olhar específico do âmbito da saúde; a saber, na proposta da Gestalt-terapia que institui, em um conjunto de ideias e práticas psicoterapêuticas, uma leitura do sofrimento daqueles que se encontram nas formas de exceção.
Por fim, saliento a importância da Gestalt-terapia enquanto uma proposta de intervenção que viabiliza e fundamenta (no esteio da crítica de Agamben) uma prática profissional (ou não) de acolhimento ético junto àqueles que estão incluídos no bando fora dele; ou seja, àqueles que estão com a vida nua.

2 O PODER SOBERANO E A VIDA NUA

Na obra Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I, Giorgio Agamben (1995) propõe estudar e analisar - através da orientação deixada por Walter Benjamin acerca do nexo direito e violência – o modelo jurídico-institucional ocidental e seu modelo biopolítico de poder. Para tal, Agamben buscou conceitos em autores como Carl Schmitt, Michel Foucault, Hannah Arendt e Walter Benjamin.
Para iniciar suas análises, o autor em tela propõe desenvolver suas pesquisas a partir dos estudos de Michel Foucault e Hannah Arendt.
O primeiro desenvolveu estudos a cerca das técnicas políticas, ciência do policiamento na qual o Estado tem como poder e função cuidar da vida natural dos indivíduos; e das tecnologias do eu, entendida como o processo pelo qual ocorrem a subjetivação da vinculação da própria consciência e da identidade de modo conjunto ao poder de controle externo; já por outro lado, dentre as pesquisas do segundo autor, encontra-se a tendência totalizadora das sociedades modernas – como os domínios totalitários do nazismo e seus campos de concentração. O que fez com que Agamben (1995) unificasse de certa forma, ou melhor, lançasse um ponto de “[...] intersecção entre o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico de poder”, haja vista que “[...] as duas análises não podem ser separadas e que a vida nua na esfera política constitui o núcleo originário – ainda que encoberto – do poder soberano.” (p.14)
Do ponto de vista do autor, faz-se necessário remontar a interpretação que Foucault faz de dois termos gregos que Aristóteles fez uso, a saber, zoé (que significava o viver comum a todos os seres vivos) e bíos (que designava a maneira como cada indivíduo ou grupo vivia). Foucault utilizou estes termos, para descrever em seu livro Vontade de Saber, um limiar na Idade Moderna na qual o poder estatal começa a incluir mecanismos de controle da vida natural, transformando, assim, a política em biopolítica. Nos termos de Foucault:

“O homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão.” (FOUCAULT, 1988, p. 134)

Agamben propõe uma correção à interpretação de Foucault, justificando que este tolhimento à vida nua não seja delimitada na Idade Moderna, pois esta forma de dominação, ou exclusão-inclusão, já existia desde sempre na política ocidental. Segundo Agamben (1995), Aristóteles já dizia (em Política) que a pólis tem lugar próprio na passagem da voz à linguagem. Nas palavras de Agamben, “O vivente possui o lógos tolhendo e conservando nele a própria voz, assim como ele habita a pólis deixando excluir dela a própria vida nua” (p. 15).
A característica possível que diferenciaria a democracia moderna da democracia clássica nada mais é do que a reivindicação daquela à libertação da zoé (a vida nua); ou melhor, de encontrar o bíos da zoé. Uma difícil tarefa na qual coloca “a liberdade e a felicidade dos homens no próprio ponto – a “vida nua” – que indicava a sua submissão.” (AGAMBEN, 1995, p.17, grifo do autor)
Portanto, não somos apenas um animal em cuja política sua vida de ser vivo está em questão; mas também o contrário, cidadãos em cujo corpo biológico está em questão a sua própria política.
O autor salienta ainda que este paradoxo da democracia moderna, da qual fala, não visa depreciar suas conquistas, outro sim, denunciar o malogro do que seria o apogeu do triunfo democrático.
Ademais, aponta Agamben uma convergência no que Arendt e Foucault estudaram, - a saber, o estado totalizante, e as técnicas de policiamento bem como os meios de subjetivação do eu – mais do que isso, designou agora, não mais como separado (temporalmente como sugeriu Foucault, ou então, geograficamente como estudou Arendt), mas sim como aspectos do mesmo agente.

“Tudo ocorre como se, no mesmo passo do processo disciplinar através do qual o poder estatal faz do homem enquanto vivente o próprio objeto específico, entrasse em movimento um outro processo, que coincide grosso modo com o nascimento da democracia moderna, no qual o homem como vivente se apresenta não mais como objeto, mas como sujeito do poder político. Estes processos, sob muitos aspectos opostos e (ao menos em aparência) em conflito acerbo entre eles, convergem, porém, no fato de que em ambos o que está em questão é a vida nua do cidadão, o novo corpo biopolítico da humanidade.” (AGAMBEN, 1995, p. 16, 17)

Um dentre os autores inicialmente citados foi deveras importante para a construção de sua tese, se não o principal, Walter Benjamin. Seguindo as indicações que encontrou em Benjamin, a cerca do nexo entre violência e direito, e a sua diluição em uma terceira figura denominada como violência divina , Agamben equipara esta ultima à violência soberana e parte do ponto onde Benjamin citou ser o portador deste nexo, a saber, a vida nua (bloßen Leben).
Benjamin, ao denunciar este nexo, estabelece uma ligação entre vida nua e violência jurídica, de onde segue o ponto de partida de Agamben: analisar o estreito relacionamento entre vida nua e poder soberano.
No que tange o poder soberano, Agamben (1995) ampara-se nas definições de Carl Schmitt acerca da soberania, como “aquele que decide sobre o estado de exceção” (p.18), ou então, aquele que “[...] tendo o poder legal de suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei.” (p.22); e, mais à frente, no poeta grego Píndaro, que a define como “[...] o ponto de indiferença entre violência e direito, o limiar em que a violência transpassa em direito e o direito em violência”. (p.38)
O soberano, descreve Agamben, é o detentor do monopólio da decisão, a decisão definitiva do estado de normalidade, cuja finalidade última não é tanto pelo controle de instituições, riquezas, patrimômios, etc., mas antes pela vida humana (como Benjamin havia indicado, a vida nua como referente da violência soberana).
Em suas análises a cerca do poder soberano conexo com o direito ocidental e sua ordem política, é revelada uma estreita relação que o primeiro (denunciado pelo dispositivo político da exceção jurídica) têm com o segundo (a ordem jurídica do Estado de direito), que aliás, afirma ser a natureza constitutiva deste .
A tese de Agamben pode ser descrita como a falência do Estado de direito ao não conseguir cessar a vontade soberana, permanecendo esta última, oculta e em potencial para o Estado utilizar quando necessário (como uma técnica biopolítica). (RUIZ, 2011; MARTINS, 2010; DA CUNHA E SILVA, 2007; PONTEL, 2012)
De certa maneira, afirma Ruiz (2011c) que a vida humana está no Estado de direito sempre com uma ameaça em potencial, a saber, a ser ordenada vida nua. Logo, este que se apresenta como protetor da vida humana, a protege apenas parcialmente, visto que a cuida parcialmente (de alguns, ameaçando outros).
A estrutura da exceção soberana designa uma forma de pertencimento sem inclusão, “[...] a lei aplica-se-lhe desaplicando-se, o mantém em seu bando abandonando-o fora de si.” (AGAMBEN, 1995, p.55) A decisão soberana, em outras palavras, suspende a lei no estado de exceção e implica nele a vida nua, mantendo a vida humana dentro do bando (soberano) sob a seguinte condição: abandonando-o .
Agamben chama de relação de exceção esta forma radical que inclui algo excepcionalmente pelo meio de sua exclusão, em outras palavras, uma exclusão inclusiva, porém, funcionando como uma inclusão exclusiva. “[...] é aquilo que não pode ser incluído no todo ao qual faz parte, e não pode pertencer ao conjunto no qual já está desde sempre incluído.” (1995, p. 173)
Ruiz (2011) e Abdalla (2010) enfatizam que este tipo de relação encontrada no estado de exceção tem sempre um cunho biopolítico e policial, a fim de conseguir por meio desta relação – utilizada como uma técnica –, um controle de grupos sociais perigosos.
Nos termos de Ruiz,

“Cada vez que a ordem social estiver ameaçada por qualquer pessoa ou grupo social, poderá ser invocada a figura da exceção para suspender total o parcialmente o direito sobre essas pessoas. [...] tornando-os vulnerável e como consequência facilmente governável” (2011)

Ao denunciar as características da biopolítica moderna, Agamben nos alerta a reconhecer as metamorfoses deste paradigma nos modelos que pensam e organizam os espaços públicos das cidades: as ciências humanas, a sociologia, a urbanística, e a arquitetura; metamorfoses estas, na qual o soberano está cada vez mais em simbiose com o jurista, o médico, o cientista, o perito e o sacerdote.
Não obstante, a união entre medicina e política é uma das características essenciais da biopolítica (ou tanatopolítica?) moderna. Ruiz (2010, 2011 e 2011b) nos faz refletir sobre a realidade brasileira, realidade esta, na qual, por exemplo, médicos decidem pelo valor e desvalor de vidas de pacientes diante da falta de leitos em hospitais.
Mais ainda, além desta realidade - na qual pessoas morrem na fila de hospitais à espera de leitos -, milhares de pessoas no Brasil vivem privados de seus direitos básicos. Vivem a exceção como norma de diversas formas, algumas com falta de alimentação digna e suficiente, outras sem moradias ou condições infra-humanas, certas periferias que encontramos com alta vulnerabilidade expostos à violência – seja de traficantes ou policiais -, encarcerados (imputáveis ou inimputáveis) sob condições de vida desumana, déficits na educação básica e digna é a realidade de muitos outros.
Sem dúvida nenhuma, toda e qualquer forma de exceção provoca um efeito sobre a subjetividade daquele que a sofre. Mas, diante da problematização que Agamben nos colocou – e que não nos deixou um método, se não o de pensar que o primeiro passo seria questionar estes modelos jurídicos-institucionais e suas formas de poder biopolítico -, como pensar uma prática diante destes grilhões que nos encontramos?
Assim como relatado, a exceção soberana encontra-se metamorfoseada nos diversos ambitos sociais, tais quais jurídicos, científicos, etc. Todavia, busco neste artigo focar no âmbito da saúde, especificamente dentre tantos deste âmbito, busco na psicologia o escopo de meu labor problemático.
Mas afinal, como fazer algo diante do soberano que exclui e inclui confundindo-se e sendo ele mesmo, simultaneamente, aquele que pode nos ajudar? É possível fazer frente à soberania e cuidar do sofrimento daquele que vive a exceção como norma sem coadunar com a mesma?
É a partir destes questionamentos que recorro à Gestalt-terapia (amparada na critica agambeniana), na qual lança mão de uma leitura e prática em prol destes que estão em sofrimento com a vida nua.

2.1 A LEITURA GESTÁLTICA E SUA RELAÇÃO COM A CRÍTICA AGAMBENIANA

Gestalt-terapia é o nome de uma abordagem clínica psicoterapêutica balizada por ideias e práticas desenvolvidas por Fritz Perls, Laura Perls, Ralf Hefferline, Paul Goodman, entre outros colaboradores, nos idos de 1951 nos Estado Unidos. Suas ideias são apresentadas na obra cujo título é o mesmo da abordagem, Gestalt-terapia, e cuja peculiaridade se dá no fato de tentar repensar a clínica psicanalítica freudiana e seus desdobramentos para além da palavra e do afeto a ela associada, buscando situá-las sob um olhar fenomenológico, como ocorrências de campo. (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2007)
Para tal feito, os criadores desta abordagem, apoiados pela fenomenologia Hursseliana, desenvolvem sua teoria na qual chamam de: teoria do self. Esta, basicamente pode ser designada não como uma instância psíquica, mas como uma função do contatar o presente, que por sua vez é transiente. Self é um processo temporal, na qual cada contato é experienciado como unidade transitória, marcada relativamente por todas as outras experiências de contato, ou seja, com a co-presença de nossa historicidade e possibilidades (fundo de vividos e horizonte de possibilidades, respectivamente).
No que tange às funções do sistema self, os autores discriminam 3 funções ou operações básicas de contatos com o presente: função id, função de ego, e a função personalidade. A função id corresponde aos excitamentos (formas habituais; passado); a função ego está relacionada à atualidade na qual se encontra nossas necessidades fisiológicas e as demandas sociais através da linguagem; e a função personalidade corresponde ao horizonte de futuro, sinteticamente, aos nossos desejos.
Nas palavras de Müller-Granzotto e Müller-Granzoto:

“A função id diz respeito aos hábitos motores e linguageiros formados no passado e que retornam, na atualidade, como excitamento, como orientação afetiva para as novas ações. A função de ego é a ação mesma, desempenhada por nosso corpo atual, de ajustamento criador do passado junto às possibilidades de futuro abertas pela atualidade material do meio em que estamos inseridos. A função personalidade é a representação verbal das criações estabelecidas pela função de ego e que assim restam não apenas como hábito (função id), mas como conteúdo psíquico, como representação imaginária das experiências de contato anteriores.” (s/d)

Estas funções, também chamadas de dimensões, nada têm de cronológico - que, aliás, ocorrem simultaneamente -, são apenas pontos de vistas diferentes da mesma experiência.
Para PHG , a função que encontramos uma representação, uma função social, ou o que também é chamado de “outro social”, corresponde à personalidade. Esta é definida pelos autores como

“[...] o sistema de atitudes adotadas nas relações interpessoais; é a admissão do que somos, que serve de fundamento pelo qual poderíamos explicar nosso comportamento, se nos pedissem uma explicação. [...] a Personalidade é essencialmente uma réplica verbal do self; é o que responde a uma indagação ou a uma auto-indagação.” (1951, p.187 e 188)

Para MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO (2012a, 2012b e 2007), a função personalidade é um aprendizado que se repete, se reescreve no campo social, e que serve ao mesmo tempo como medida e parâmetro racional de valores éticos, morais, biográficos, institucionais ou de modos de conhecimento: científico, filosófico ou religioso . Ou seja, é na função personalidade onde adquirimos o status “humano”, reflexivo, consciencioso de uma consciência.

“Dizendo de outro modo, a função personalidade (entendida como outro social) é este terceiro compartilhado por uma comunidade de atos. À medida que se encontra, neste terceiro, um espelho de suas próprias condições ativas, vive-se aí uma reflexão, a qual pode acontecer como um pensamento, uma norma, um valor ou como a fruição de um sentimento. Noutras palavras, à medida que encontram o outro social, as funções de ato passam a dispor de uma consistência imaginária.” (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012b, p. 286)

Logo, cada função de ato corresponde à constituição e re-inscrição da função personalidade, sendo aquela, ao mesmo tempo, mediada por esta que também pode ser representada por valores, pensamentos e instituições, etc.
A respeito da gênese deste outro social, os autores em tela afirmam ser derivado dos desejos e fantasias de outrora, mas que

“agora continuam disponíveis como futuro do pretérito, horizonte de aprendizado necessário à vivencia da identificação, da responsabilização e do raciocínio atuais. [...] são os projetos, os ideais, as ficções, as produções virtuais que, no passado, ainda não tinham um sentido estabilizado, mas agora, na dimensão presente, estão disponíveis como referência, biografia, história, racionalidade perante qual podemos nos regozijar e exercer a crítica, orgulharmo-nos e sentir vergonha[...].”(p.287 e 288)

Podemos dizer, que o outro social também é nosso amor próprio, o valor que damos a nós mesmos ou para alguém. Enquanto participante desse espelho social, é aqui onde se encontra a sensação de prazer e desprazer.
Também chamada de dimensão antropológica , o outro social está presente na acolhida ética de nossos excitamentos e nos espaços políticos que ocupamos (lugar na qual manejamos os nossos desejos). (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a e 2012b)
Quando não há constituição do outro social, ou a fluidez desse sistema de contatos (sistema self) por algum motivo - seja por ordem social ou biológica - malogra, procede então um sentimento de aflição – ou “misery”, conforme utilizado no original por PHG. (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012b)
Conforme os autores descrevem, existem três formas pela qual a função personalidade é malograda: através da “[...] falência antropológica (causada pela imposição de uma condição natural), a falência política (por conta dos dispositivos de poder) e a falência ética (em virtude dos estados de exceção).” (2012b, p. 295)
“Misery” ou aflição é o termo que PHG utilizam para descrever o sofrimento do sistema self ao não encontrar um lugar ético para estabelecer relações políticas e antropológicas. Sofrimento é a falência da função personalidade – do outro social -, seja por não formação, perda, ou aniquilação destas representações na qual o indivíduo construiu historicamente e na qual está identificado.
Nos termos do sistema self, este, sofre quando ao ser atravessado pelo fundo de excitamentos (função id), a função de ato se vê impossibilitada de agir diante da ausência de dados (material e sociolinguística), o que malogra a função personalidade, e junto com isso, a possível identificação a um valor ou identidade objetiva.
Dito de outro modo, é a experiência do impedimento à identificação de determinada personalidade (laços sociais como instituições, valores, identidades) que provoca sofrimento ao sujeito.
Entretanto, interessa-nos abordar neste artigo - dentre as falências apresentadas pelos autores – o sofrimento daqueles que estão privados de um lugar ético, lugar este que lhe impossibilita o fluxo natural do sistema self. Destarte, definem os autores como sofrimento ético

“ [...] a presença de um desejo soberano que, mais radicalmente do que dominar o outro social, mais radicalmente do que transformar as representações sociais em dispositivos de satisfação do desejo de poder, agora aniquilaria as representações sociais, para assim dispor da nudez dos atos e respectivos hábitos. Assim despidos de suas representações, os sujeitos de atos não seriam mais que corpos sem lugar social, sem possibilidade de reconhecimento e interlocução. Viveriam em estado de sofrimento ético.” (2012b, 316)

Vítimas de violência de gênero, preconceitos, ou conflitos ideológicos; excluídos do mercado de trabalho, ou aqueles que se submetem a trabalhos com condições escravistas, para citar alguns exemplos, encontram-se em estado de sofrimento ético por estarem com a vida nua presa sob a forma da exceção soberana, acarretando por consequência, a não constituição de uma representação social (outro social) bem como a impossibilidade de exercer sua capacidade política. O lugar que estes sujeitos ocupam é identificado por representações sociais indesejáveis, banais, sem valor, seja por uma exigência dominadora ou por uma aniquilação do desejo totalitário do outro soberano.
Mas, diante de tais acontecimentos e situações, o que há para se fazer àquele que está em sofrimento ético, ocupando lugares indesejável provocado por diversos conflitos sociológicos? O que estes autores da Gestalt-terapia podem nos oferecer fazer diante do desejo totalitário do poder do outro soberano, e de que forma podemos ajudar aquele que está vivendo sob a norma da exceção soberana?

2.2 A PROPOSTA DE INTERVENÇÃO INCLUSIVA DA GESTALT-TERAPIA

Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012a e 2012b) nos alerta para o pedido de socorro, o clamor daquele que está em sofrimento ético, com a vida nua diante do semelhante. Este pedido, do ponto de vista do excluído, está representado neste outro (o semelhante) como aquele portador da possibilidade política, da possibilidade deste que está sob o regime de exceção, uma oportunidade de reconstituir sua inclusão nas identificações sociais.
Os autores em tela denominam este apelo por ajuda como um pedido de inclusão - um ajustamento de inclusão -, um clamor de um corpo impessoal despido dos meios e representações antropológicas (sociais) nas quais lhe permitiriam constituir uma identidade social, étnica, bem como a possibilidade política de exercer tais constituições.

“O clamor, conforme acreditamos, é sempre um pedido de inclusão; e a inclusão de que se trata é sempre uma inclusão em um plano antropológico, em uma representação social (valor, pensamento, instituição) que valha como proteção (acolhedora, solidária e gratuita).” (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012b, p. 351)

Noutras palavras, este pedido de inclusão, designa especificamente uma inclusão no meio antropológico (acolhida), na política (através da solidariedade) e no meio ético (pela gratuidade, como modo de doação ao outro) da qual carecem. Haja vista, a impossibilidade destes sujeitos – desnudados - de agirem (se defenderem) diante deste outro soberano que os exclui – porém, incluindo-lhes a vida nua - radicalmente de tais meios.
Tal é a situações destes sujeitos em sofrimento ético, que a única coisa na qual dispõem é o pedido de proteção, abrigo, acolhida ou ajuda solidária, contando apenas com a gratuidade alheia. Mesmo que de forma desconfiada, insegura e arredia, este pedido nos arrebata, e então nos sentimos impelidos a ajudar, de tal maneira gratuita, que não sabemos bem ao certo o que dar, bem como não se sabe exatamente o que está sendo pedido.
“O sofredor não sabe sequer o que lhe falta. Seu pedido é para que ele possa voltar a pedir. Trata-se de um ajustamento cuja meta é encontrar “suporte” para voltar a criar [...]” (2012b, p. 355)
É diante deste pedido de inclusão que Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012a e 2012b) laçam mão de uma proposta de intervenção junto àqueles que se encontra em tais situações. Uma proposta na qual visa sobreviver à exceção soberana, buscando re-estabelecer a fluidez da capacidade política e antropológica (privadas) dos sujeitos desnudados. Destarte, encontraram no acolhimento ético e gratuito (inspirados por Bataille) e na posição cínica (do cinismo grego) uma forma pela qual possam auxiliar.
Explicam os autores, que este acolhimento ético e gratuito, “não se trata de combater o outro soberano a céu aberto, tampouco de ignorá-lo mediante uma redescrição estética ou gozosa de nós mesmos” (2012b, p.328) conforme Foucault e Lacan respectivamente orientaram. Outro sim, de modo a possibilitar a criação de associações, laços e sociedades por aqueles – e não para aqueles – que se encontram como vítimas da exceção soberana.
Os autores salientam ainda que este fazer gratuito se dá de forma a não reclamar adesão a qualquer significante político de nossos desejos, aliás, neste fazer gratuito “[...] não operamos com desejo (político) algum, apenas com a gratuidade da experiência do contato (sem awareness)” (2012b, p. 328)
Sob a inspiração da obra O erotismo de Georges Bataille, os autores fundamentam esta gratuidade afirmando ser ela uma doação em proveito do outro, na qual este outro – ser que nos ultrapassa e que jamais nos coincidiremos - recebe em forma de crescimento.
Nas palavras dos autores, entende-se por gratuidade,

“[...] esse crescimento que opera como doação. [...] é uma forma de se dirigir ao outro que não carece de teleologia, dado que não tem necessidade de afirmar algo como um fim a ser alcançado, seja isso a justiça política, o poder ou a recompensa.” (MÜLLER-GRANZOTTO E MÜLLER-GRANZOTTO, 2012b, p. 329)

Destarte, através desta gratuidade indicada pelos autores como forma de enfrentamento à exceção soberana, justificam eles, que ambos os sujeitos em questão, tanto àquele que doa quanto aquele que recebe a doação, não ficam maculados por uma dívida (condição, promessa, expectativa, cobrança e matabilidade), mas sim, com a possibilidade de haver surpresa e gratidão, doação e presente.
Sobre esta estratégia, salienta os autores, sugere uma forma vincular gratuita - tal quais as relações vinculares de amizade e de cuidado - na qual não necessita da justiça de um estado de direito, pois não há direitos em questão. Portanto, não há relações de modo que possa ter efeitos de um poder soberano, mesmo que, de certa maneira, não se pode garantir que ambas as partes – doador e receptor – em algum momento possam reclamar um representante, e assim, restituir as relações políticas de poder.
Aliás, isto – a restituição das relações políticas de poder, caracterizada pelo protagonismo do sujeito -, é o que se espera em um segundo momento após a acolhida de uma identificação antropológica.
Müller-Granzotto e Müller-Granzotto definem sua estratégia de sobrevivência à exceção soberana como “cínica”. Cínico, aqui designado para descrever o modo como àquele que opera por fora das relações de valores, pensamentos, instituições e desejos na qual lhe proporcionariam identidade e poder, para possibilitar espaço – ou doar gratuitamente – ao desconhecido, ao inesperado, uma forma de acolher e autorizar um desejo e, ou uma participação em nalguma identificação social compartilhada – o que consequentemente lhes dariam certo prazer.
Noutras palavras, a posição cínica empregada aqui, diz respeito à busca pela prática de um direito político dos cidadãos gregos e latinos na qual exercitavam a expressão do dizer verdadeiro, sem com isso romper com sua organização social, dito “parresia”. (MÜLLER-GRANZOTTO E MÜLLER-GRANZOTTO, 2012B)
A práxis da parresia sob a ótica dos autores designa uma maneira de sobrevivência, de acolhimento ao outro, ao mesmo tempo em que enfrenta a soberania biopolítica. Afinal de contas, sem romper com as relações políticas – representações sociais e desejos - o cínico sabe que nalgum momento há de autorizar em si e no outro “[...] o carnaval, a festa, a piada e o luto.” (2012b, p. 336)
Conforme os autores, o clínico gestáltico, é aquele que pode acompanhar e cuidar ao dar suporte e escutar o sofrimento dos sujeitos sob a forma da exceção. Nas suas palavras, “O clínico é aquele que cuida da autonomia dos sujeitos (funções de ato) envolvidos nas situações de exclusão social e privação natural” (2012b, p. 356)
Sua intervenção pode ser desde um acesso a uma consulta, por exemplo – à um médico, um advogado, assistente social, psicólogo, etc -, como dar-lhe uma orientação – uma informação sobre legislação, sem lhe endividar -, ou até mesmo uma escuta gratuita, um espaço para poder praticar seu dizer verdadeiro – seja individualmente ou através de formações de grupos -, e assim dispor do corpo de atos dos semelhantes para ser reconhecido, re-estabelecido e criado suas identificações e valores de cunho sociais e desejantes.
Trata-se, portanto, de dar cidadania (compartilhar com) a este semelhante que pede por socorro. Não somente d(o)ar cidadania – identificações sociais -, mas, e principalmente, possibilitar de maneira gratuita - sem dívidas - o protagonismo do fazer político e criador deste semelhante.
Em fim, nas situações de exceção, a estratégia, basicamente, é procurar resgatar aquilo de humano que lhe foi privado - mesmo nos casos de surtos psicóticos denunciados por Emerim (2012) e Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012a e 2012b) -, trata-se de buscar restituir a humanidade antropológica, as identificações sociais privadas, que assim, consequentemente, o sujeito em questão se apropriará de sua capacidade política.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

É diante da denúncia de Agamben, do malogro do Estado de direito moderno ao tentar cessar a vontade soberana, e as diversas metamorfoses que este aplica vida nua aos corpos capturados pelo seu totalitarismo, que os autores da Gestalt-terapia: Müller-Granzotto e Müller-Granzotto inauguram uma estratégia possível de sobrevivência e enfrentamento (não esteticista) ao outro soberano.
O cinismo grego apresentado e utilizado pelos autores, identificado através da forma da solidariedade gratuita, é entendida como uma identificação especial personalista. Uma “[...] posição cínica de renúncia ao poder em favor do crescimento do outro” (MÜLLER GRANZOTTO & MÜLLER GRANZOTTO, 2012b, p. 337)
Trata-se de uma posição na qual se busca doar ao outro, independentemente de quaisquer que sejam seus valores ou projetos políticos das quais esteja submetido, sem que assim ainda, não se rompa com tais valores e projetos.
Esta estratégia de intervenção inclusiva, pelo meio da solidariedade gratuita, é representada em nós (políticos) por um fazer ao possibilitarmos um espaço favorável ao crescimento desta alteridade que pede por apelo à margem do bando. Afinal de contas, “[...] a solidariedade dos iguais sempre inaugura uma forma de resistência.” (2012b, p. 388) Ao passo que “[...] pela gratuidade, sempre podemos escapar daquilo que justificaria a matabilidade, ou seja, da justificativa do “direito” em decorrência de uma “dívida” devida ou cobrada ao outro.” (2012b, p. 330 e 331)
É possível observar, mesmo não sendo explicitado pelos autores, que esta estratégia não se limita somente ao clínico gestáltico, pois cada e qualquer sujeito podem intervir à sua maneira junto àquele que está com suas representações sociais destruídas, aniquiladas, bem como impossibilitados de atuar politicamente.
Seja através de formações de grupos que compartilham de um mesmo estado, ou colaborar para o fortalecimento das organizações já existentes que cumprem o papel, de alguma forma, de acolher e ajudar os sujeitos a se protegerem; ou então pelos trabalhos gratuitos individuais, que tal qual, e não menos importantes que as organizações, buscam restituir a dignidade ética, política e antropológica dos sujeitos em sofrimento; é a estratégia possível – e perigosa por assim desafiar os dispositivos do soberano - proposta pelos autores em tela.
Orientados pelo alerta de Agamben (1995), a ideia central é a de propor meios de inclusão pelos quais não incluam a relação de poder. Como se pudéssemos repetir a forma da exceção soberana – incluir excluindo -, porém abrindo mão do poder que esta forma pudesse nos favorecer.
Esta forma de exceção não acaba por ser soberana, pois, não visa aniquilar o outro semelhante - não há metas a conquistar -, busca, portanto, dissolver as relações da exceção soberana ao possibilitar esta acolhida ética, re-estabelecer as identidades antropológicas e a capacidade política dos sujeitos.
Para concluir, considero a proposta dos autores em tela, deveras importante para a construção de estratégias de sobrevivência diante deste outro soberano que encontramos em diversos lugares e de diversas formas em nossa vida.
Afinal de contas, conforme nos mostrou Agamben, a exceção soberana é a forma originária da política constituinte do direito ocidental. Além disso, nos tempos hodiernos, o totalitarismo soberano que mantém capturado a vida nua encontra-se metamorfoseado nos diversos tipos de saberes, necessitando por isto, continuidade de pesquisas e estudos sobre o referido tema.
No mais, termino com o apelo de Agamben, cuja proposta (atual) se dá exatamente na motivação de pesquisar/fazer o meu trabalho.

“A nossa política não conhece hoje outro valor (e, consequentemente, outro desvalor) que a vida, e até que as contradições que isto implica não forem solucionadas, nazismo e fascismo, que haviam feito da decisão sobre a vida nua o critério político supremo, permanecerão desgraçadamente atuais.” (1995, p. 17)


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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As relações de poder e a Gestalt-terapia: um diálogo possível

Israel Ferraz de Souza

Artigo de conclusão de curso de Especialização em Gestalt-terapia

Resumo
A noção de indivíduo e sociedade está correlacionada de tal forma que se torna impossível ensaiar qualquer aproximação sem a consideração de ambos. Assim como a teoria do self da Gestalt-terapia propõe uma análise adicotomizada entre o organismo e o seu ambiente, a proposta foucaultiana de análise das relações sociais enquanto relações de poder possibilita a concepção de como os corpos são influenciados pela rede de poder e também a influenciam. O estabelecimento de uma intersecção entre os estratégicos dispositivos biopolíticos e o dinâmico sistema self permite a problematização da maneira pela qual a produção do saber, da noção de outro social e de indivíduo se dá nas relações. A neurose aparece como uma forma de ajustamento social político, tanto de submissão, quanto de resistência ao biopoder; a proposta de intervenção gestalt-terapêutica surge como possibilidade de acolhimento dos \\\"contradiscursos\\\" que se dão no sistema self e, consequentemente, nas relações de poder.

1. INTRODUÇÃO
É indispensável, sempre que se ensaia qualquer aproximação da concepção de indivíduo, para que a totalidade do que é visado não se restrinja à abstração empírica atual, partir da concepção adicotomizada do que aparece como figura (indivíduo aqui e agora) sendo sustentado por um fundo (“sociedade atual” enquanto campo e “sociedade inatual” enquanto vivências intersubjetivas passadas) enquanto o que cria a possibilidade da emergência da figura.
Por esse motivo a Gestalt-Terapia enquanto uma proposta clínica trabalha com o conceito de um sistema self que considera a primazia relacional do organismo e seu ambiente, o que permite a concepção abstrata de indivíduo em sua espontaneidade processual sempre engajada na totalidade da experiência transcendental do campo organismo-ambiente.
A proposta foucaultiana em analisar todas as relações sociais, os saberes constituídos e até a própria concepção de indivíduo a partir da perspectiva do poder enquanto ação, abre a possibilidade de um diálogo entre a compreensão clínica gestalt- terapêutica e sua percepção das relações de poder que perpassam a rede social.
Apesar dessa possibilidade de diálogo, este ainda é pouco explorado na Gestalt-Terapia talvez pelas incongruências teóricas que um encontro, sem os necessários ajustes, entre a genealogia foucaultiana e a fenomenologia gestáltica poderia acarretar; a construção deste cenário mostra-se, portanto, como uma possibilidade válida e enriquecedora no que diz respeito à ampliação da compreensão da dinâmica indivíduo/sociedade.
Este artigo se propõe a ser uma revisão bibliográfica de autores e obras que viabilizam a exploração da possibilidade de um diálogo coerente, para que a intersecção entre a compreensão gestalt-terapêutica da teoria do self com a noção das relações intersubjetivas enquanto relações de poder na rede social seja possível a partir de uma perspectiva fenomenológica. Para que esse objetivo seja atingido pretende-se problematizar as relações de poder com a produção do saber e com a produção da noção de indivíduo; considerar a biopolítica e sua relação com o aliciamento do outro social; o próprio processo de reificação do outro social à noção de indivíduo; a neurose como um ajustamento de articulação política e a proposta gestalt-terapêutica de acolhimento do que, tanto na dimensão macro (rede social), quanto na dimensão micro (sistema self) aparece enquanto “contra-discurso”, “estranho”.

2. NOÇÃO DE CAMPO ORGANISMO-AMBIENTE COMO UMA TOTALIDADE
O conceito de figura/fundo de Rubin do qual a Gestalt-Terapia se serviu entende “figura” como o dado material que, no ato de visar, aparece como uma unidade de sentido; e “fundo” como a ocorrência intuitiva de um campo de presença de perfis sustentadores da unidade de sentido que não são experimentados materialmente (MULLER-GRANZOTTO e MULLER-GRANZOTTO, 2007). Quando visualizo um cubo, por exemplo, caso a figura pudesse ser dada de maneira desconectada de seu fundo, teria apenas o dado atual; ou seja, a percepção visual de uma superfície retangular ou, no máximo, de três superfícies retangulares articuladas; porém, junto com a percepção meramente visual, co-dados inatuais, ou seja, dados retidos de outras experiências se doam de maneira a me permitir formar uma unidade presuntiva e, mesmo sem poder ver suas seis faces ao mesmo tempo, posso intuir o cubo em sua totalidade.
Toda investigação, independente de qual seja o objeto, deve partir da premissa de que a unidade de sentido formada por aquilo que é visado não se resume puramente à informação empírica atual, mas a uma infinidade de co-dados inatuais que, mesmo não aparecendo na atualidade, possibilitam que o objeto-todo não seja reduzido a uma de suas partes (ao que se vê). Por esse motivo Perls (et al., 1997) atentam-se à divisão neurótica entre indivíduo e sociedade e apontam a necessidade de que toda análise biológica, psicológica ou sociológica considere a primazia relacional do organismo e seu ambiente formando algo uno que chamam de campo organismo-ambiente. Em um exemplo simplificado, quando se martela o dedo, o dedo dolorido obviamente não é meramente organismo, mas um todo dinâmico atual resultado da interação indissociável do organismo (dedo) e ambiente (martelo).
A verdade é que nas aproximações científicas em que se tem o organismo como figura como, por exemplo, nas clínicas psicológicas de maneira geral, pode-se tornar tentador perder a awareness do que de ambiental se tem como fundo na constituição do organismo enquanto tal. Da mesma forma, nas aproximações científicas em que se tem o social como figura como, por exemplo, na sociologia, pode-se tornar tentador perder a awareness do que de “individual” se tem como fundo na constituição da sociedade enquanto tal.
Ora, em uma investigação gestáltica não reducionista não poderia ser diferente; seja ela uma análise do campo organismo-ambiente ou do campo indivíduo-sociedade não se pode perder de vista a existência, não de duas unidades em relação, embora possa ser considerada a partir de dois pontos de vista diferentes, mas de uma configuração indivisível.
Entende-se, sob a orientação dos criadores da Gestalt-Terapia Perls (et al., 1997, p. 48), que contato é “achar e fazer a solução vindoura”; ou seja, toda a experiência de contato é um ajustamento criativo, uma totalidade processual em que uma figura de interesse é formada/elegida sustentada pelo fundo campo organismo- ambiente ou campo de presença que engloba um horizonte de passado (achar), um horizonte atual (fazer) e um horizonte de futuro (solução vindoura). A fronteira de contato seria onde o contato acontece, ou seja, na interação organismo-ambiente.
É importante, para podermos articular a interação organismo-ambiente e a análise da dimensão social e da dimensão individual que aqui pretendemos apresentar sob uma perspectiva não dicotomizada, ou seja, gestáltica, entendermos o que Perls (et al., 1997) vislumbraram quando criaram a teoria do self sob uma orientação fenomenológica.

3 TEORIA DO SELF
O sistema self que aqui se apresenta não está reduzido ao organismo; é justamente a unidade sintética do campo organismo-ambiente, o sistema de contatos, “a fronteira de contato em funcionamento; sua atividade é formar figuras e fundos” (PERLS et al., 1997, p. 49). Este, orientado pela compreensão fenomenológica de Husserl, não se resume a uma relação indissociável entre um organismo e um campo físico/natural, mas envolve a consideração de um “campo transcendental”.
O sistema self é visto “como a função de contatar o presente transiente concreto” (PERLS et al., 1997, p. 177). É um processo temporal e existe onde quer que haja uma interação de fronteira; e os autores Müller-Granzotto (e MÜLLER- GRANZOTTO, 2007) entendem que é graças à apreensão da temporalidade imanente aos processos intencionais que se pode compreender o fundamento dinâmico das totalidades de experiência enquanto estruturas unificadas em constante transformação nas experiências de contato.
O sistema self é um processo espontâneo que não é abarcado pela consciência estabelecida de si próprio, pois um “si próprio” particular para o sistema self é apenas uma abstração (PERLS et al., 1997); o que se entende como Eu é apenas uma parcialidade de uma configuração maior. Embora seja eu quem “acho” e “faço a solução vindoura”, quando o contato acontece, os co-dados que se doam como “solução vindoura” e como o que “acho” são campo, dados públicos, generalidades, inatualidades que só parecem se individualizar na atualização metabólica desse pretenso eu; essa atualização de uma generalidade em uma particularidade é pura abstração de um complexo processo de assimilação e crescimento que nunca deixa de acontecer no campo organismo-ambiente. Este campo organismo-ambiente onde se articula o sistema self não se resume, portanto, a um domínio puramente físico, mas o transcende a ponto de a noção de “consciência transcendental” de Husserl e a noção de self serem vistas pelos autores Perls (et al., 1997; MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2007) como equivalentes.
O self é, portanto, a espontaneidade de nós mesmos sempre engajados na totalidade da experiência campo organismo-ambiente. Nele podemos nos experimentar de três formas: como seres anônimos (na awareness sensorial), como indivíduos (na awareness motora) e como realidades objetivas (na awareness reflexiva) (MÜLLER- GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2007, 2012a).
Essa três formas de aproximação da totalidade experiencial são vistas como estruturas parciais, funções em constante dinamismo no presente transiente.
A função id é a dimensão sensitiva; abarca aquilo que não se representa como conteúdo, mas como hábito. É um fundo de excitamentos, “sentimentos incipientes que conectam o organismo e o ambiente” (PERLS et al., 1997, p. 184). É por meio desta função que se podem atualizar as formas retidas das experiências anteriores no aqui e agora. Apresenta-se como uma generalidade indeterminada e impessoal que não comporta interpretações, pois só se inscreve como uma ausência, um vazio co-presente. É a integração sensorial do sistema self no campo organismo-ambiente (MÜLLER- GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2007).
A função ego é a que lida com as identificações e alienações do que se apresenta como possibilidade. É considerando esta função que se tem a impressão de que existe um agente essencial extrínseco ao campo; o que só acontece quando se considera abstratamente o ego como dimensão introspectiva, estática e destacada das outras duas funções do self (PERLS et al., 1997). Tomando um exemplo de Perls (2002), a função dos pulmões é a troca de gases entre o organismo e o ambiente; embora tanto os pulmões quanto os gases sejam concretos, a função é abstrata (o que não atenua sua realidade). Da mesma forma o ego (que é insubstancial) é a função “ato” do sistema self; e, enquanto vivência de contato, quando descobre por meio de um ato de consciência a diferença entre o agente e o meio, é o próprio “ego quem descobre e inventa a diferença” (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2007, p. 218).
“A função personalidade é o sistema de atitudes adotadas nas relações interpessoais” (PERLS et al., 1997, p. 187); é a função capaz de representar as vivências de contato e, a partir destas representações, lograr uma identidade objetiva. Como essas representações sempre se engendram na relação, é uma generalidade determinada que vale intersubjetivamente. É a integração linguisticamente representada do sistema self no campo organismo-ambiente (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2007); a “réplica verbal do self” (PERLS et al., 1997, p. 188). É essa dimensão que abarca os valores morais e éticos, os conhecimentos científicos, a linguagem; ou seja, tudo o que pode ser representado reflexivamente diz respeito a essa função do self.
O sistema self é, portanto, uma dinâmica configuração criadora sempre aqui e agora que abarca horizontes inatuais; ou seja, o dado atual (figura) sempre em processo de transcendência pela atualização dos co-dados (fundo). Sua indivisibilidade é anterior à dicotomia organismo/ambiente; por isso, a unidade interna desta totalidade subjetiva não se restringe à noção de psiquismo (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER- GRANZOTTO, 2007).
Mas qual seria a gênese dos elementos de que a função id e personalidade se “nutrem”? Por que motivo o sistema self pode atualizar, no corpo de atos (ego), formas/hábitos (id) e conteúdos/saberes (personalidade)?
Se fosse possível analisar a relação do organismo vinculado a um ambiente que abrangesse somente objetos, poderia se tornar tentador entender o processo de transcendência do movimento de ajustamento criador desse organismo como fruto das doações inatuais de suas próprias vivências individuais dissolvidas no presente transiente. Acontece que as relações são sempre entre semelhantes e a ação, conforme a concepção de ação de Arendt (2010, p. 26), com a qual concordamos, “[...] não pode sequer ser imaginada fora da sociedade dos homens”. Logo, mesmo que não haja duas pessoas engajadas na atualidade, o próprio fundo que se atualiza na relação traz os rastros e os saberes produzidos nas relações intersubjetivas passadas e coloca em suspenso a individualidade desses fundos. A esse respeito, Foucault (2008, p. 34) coloca que o que tentamos reunir sob a forma de uma identidade individual “é apenas uma paródia: o plural a habita”.
Os processos que suprem tanto a função personalidade quanto a função id são, portanto, intersubjetivos. Nessa intersubjetividade da experiência, quando a situação “A” dá lugar à situação “B”, a “aura” da primeira situação aqui e agora se desfaz (aura enquanto um tecido fino de espaço e tempo de aparição única que, quando se desfaz, perde sua totalidade (BENJAMIN, 2012a)). Forma e conteúdo da situação A se desprendem; o que é retido da experiência como forma retorna à função id enquanto hábitos sensomotores ou linguageiros, como uma forma de orientação autônoma, desencadeando o efeito de excitamento. Não tem um sentido justamente por ser o que resta do desligamento deste; é uma espécie de falta que, ao se atualizar é sentida como uma presença. O que é retido da experiência como conteúdo retorna à função personalidade enquanto dados linguísticos relacionados à cultura, protocolos sociais, identidades, valores e tudo mais que tenha sentido linguisticamente exprimível como a verdade do “outro social” (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2007, 2012a).

4. AS RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS ENQUANTO RELAÇÕES DE PODER
Com a compreensão de que a dinamização do sistema self se dá nas relações intersubjetivas, abordemos como essas relações poderiam ser entendidas sob um ponto de vista político.
Para Foucault (2008), todas as relações são sempre relações de poder. Este não é algo que se possui, mas que se exerce; não é um objeto que se concentra nas mãos de uma pessoa ou de uma instituição, mas se dá na função dinâmica do encontro de heterogeneidades; não se aplica aos indivíduos como se fossem alvos inertes, mas passa por eles como centros de transmissão envolvendo-os em uma espécie de teia social, uma rede fluida por onde a multiplicidade das relações de força escoa. Arendt (2010) igualmente só admite a existência do poder quando os homens agem juntos e entende que ele desaparece assim que se dispersam. Logo, para que o poder exista só é necessário que haja convivência contínua entre os homens.
É importante ressaltar que essa rede de relações, proposta por Foucault (2008), na qual o poder se exerce, não é um desencadeamento que tem sua gênese no aparelho do estado, na lógica capitalista ou nas infra e superestruturas sociais. Ou seja, não existe um centro específico do qual emana todo o poder. Pelo contrário, o poder é exercido de forma muito mais sutil, ramificada e ambígua do que se possa parecer, já que cada sujeito sempre opera certo poder e, por isso, o veicula na rede.
Como qualquer ação se dá entre seres capazes de reação, esta, além de ser uma resposta, é sempre outra ação que segue seu curso na rede, afetando os que nela se articulam (ARENDT, 2010). Há, portanto, a necessidade de uma análise ascendente do poder; ou seja, de como este se dá nas extremidades, onde as intenções são pontuais. Nessas relações capilares é que acontece o chamado processo de “sobredeterminação funcional”, no qual “cada efeito, positivo ou negativo, desejado ou não, estabelece uma relação de ressonância ou de contradição com os outros, e exige uma rearticulação, um reajustamento dos elementos heterogêneos que surgem dispersamente” (FOUCAULT, 2008, p. 245).
Essa espécie de governo de ninguém (anônimo), ainda assim evidencia certa generalização de algumas lógicas sociais que traria a noção de um suposto interesse único. Este não denunciaria, entretanto, a existência de uma mão invisível que teria toda a rede de poder sob controle (invenção que advém mais de uma perplexidade mental do que de qualquer experiência real); mas demonstraria como, pela transmissão que se dá nas relações de força, os interesses se impõem e transitam, reificando-se em inter-esses. Ou seja, o poder, da forma como aqui apresentamos, não deixa de governar por ter perdido sua personalidade (ARENDT, 2010; FOUCAULT, 2008).

5 RELAÇÕES DE PODER E A PRODUÇÃO DO SABER
Não há verdade sem poder assim como não há saber neutro. Todo saber é político e toda produção de verdade se dá nas relações de poder (FOUCAULT, 2008). Quando se olha para o passado, ou melhor, para o que foi contado dele, Benjamin (2012b) denuncia a tendência que os historiadores têm de reconstruir os eventos a partir da ótica do vencedor e de silenciar a dos vencidos. Isso aconteceria porque os “detentores do poder” seriam os sucessores dos vencedores de outrora.
O discurso científico é um dos que mais se investe de uma suposta neutralidade na busca da verdade imaculada; segundo Foucault (2008) o cientista produtor da verdade toma os cuidados necessários para que o seu “desaparecimento” na estrutura de conhecimento seja possível. Contudo, o cientista, ao produzir qualquer saber, não pode desnudar-se de suas pulsões (função id) e dos saberes pré-concebidos (função personalidade) ambos politicamente (intersubjetivamente) engendrados.
Ao analisarmos discursos científicos de saberes como o da medicina e da psiquiatria que, ao longo da história, tem produzido a verdade da doença e da loucura, é importante verificar que, enquanto prática, eles estiveram sempre vinculados “a uma série de instituições, de exigências econômicas imediatas e de urgências políticas de regulamentações sociais” (FOUCAULT, 2008, p. 1). Por motivos como esse Foucault (2008, p. 118) “interroga as relações entre as estruturas econômicas e políticas de nossa sociedade e o conhecimento, não em seus conteúdos falsos ou verdadeiros, mas em suas funções de poder-saber”.
O saber da psiquiatria sobre os “transtornos mentais”, por exemplo, tem sido produzido através de inúmeras pesquisas científicas, direta ou indiretamente vinculadas à indústria farmacêutica, que têm estudado os transtornos mentais e comprovado a eficácia do tratamento farmacológico de cada um deles. A medicalização dos sentimentos, principalmente dos negativos, entretanto, além de possibilitar o estabelecimento de um rentável mercado consumidor, denuncia a estratégia de reparação das “máquinas quebradas” para que possam voltar o mais rápido possível a cumprir o seu papel social (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).
Benjamin (1987) aborda, talvez sem dar-se conta, a questão de o saber ser sempre político quando ressalta que o escritor burguês, mesmo sem perceber, trabalha a serviço de certos interesses de classe; da mesma forma, o escritor progressista teria sua atividade orientada pelo que fosse útil ao proletariado.
Embora se deva reconhecer a impossibilidade da apreensão da verdade como algo dado e desvelado, mas sempre como algo comprometido com a realidade política na qual foi concebida, Foucault (2008) se atenta ao fato de que a verdade é sempre deste mundo e que cada sociedade gera seu regime de verdade, acolhe determinados tipos de discursos e os faz funcionar como verdadeiros; Logo, “o homem pode, pelo menos, conhecer o que ele próprio faz” (ARENDT, 2010, p. 353).
Impõe-se uma necessidade de migração das questões sobre “o que” e “por que” para a questão de “como” determinada verdade veio a existir. “no lugar do conceito do Ser, encontramos o conceito de Processo” (ARENDT, 2010, p. 370).
As verdades políticas que se apresentam como possibilidades socialmente funcionais são os dados de realidade a partir dos quais se constituem a função personalidade (FOUCAULT, 2008; MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER- GRANZOTTO, 2012a). Ninguém, em seu isolamento, produz valores ou se importa com eles (ARENDT, 2010). Os dados sociais formam, portanto, uma configuração valorativa à qual nos alienamos no intuito de nos definirmos como seres sociais, lograr uma identidade e um lugar social. Esse processo nos possibilita o confortável sentimento de pertencimento, dá um “chão”, ampara, reconhece e incumbe responsabilidades ao que se aliena (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER- GRANZOTTO, 2007, 2012a, 2012b). É só por meio desse espaço de convivência (político/intersubjetivo) que se pode estabelecer a realidade tanto do mundo circundante, quanto do “si-mesmo próprio”, de uma individualidade (ARENDT, 2010).
6 A NOÇÃO DE INDIVÍDUO COMO UMA PRODUÇÃO DO PODER E DO SABER
É comum considerar o poder, principalmente o que reflete os ideais capitalistas, como algo que descaracteriza e massifica, de forma que a singularidade anterior de cada indivíduo seria de alguma forma dominada e sufocada. Foucault (2008,p. 161-162) acredita que “o indivíduo, com suas características, sua identidade, fixado a si mesmo, é o produto de uma relação de poder que se exerce sobre os corpos, multiplicidades, movimentos, desejos, forças.
Arendt (2010), assim como Foucault (2008), traz a noção de uma “teia social” de onde a percepção de individualidade se tornaria possível. Ela nos atenta ao fato de que quando nos perguntam “quem” alguém é, acabamos por apresentar uma descrição das características que a pessoa compartilha com seus semelhantes; descrevemos um personagem.
Os autores da teoria do self Perls (et al., 1997) buscam a análise de um sistema não dicotomizado em que a ideia de um indivíduo anterior se dissolveria na implicação da totalidade da experiência transcendental do campo organismo-ambiente. A noção que temos de nós mesmos é sempre uma abstração parcial encontrada e produzida pela função ato (ego) na atualidade das relações de poder e disponibilizada à dimensão reflexiva do self (função personalidade) como a representação linguística do outro social assimilado à noção de “eu mesmo” (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER- GRANZOTTO, 2007, 2012a).
Arendt (2010, p. 233) diz que “tanto o conteúdo específico como o significado geral da ação e do discurso podem assumir várias formas de reificação”. Assim sendo, a função personalidade pode ser vista como uma espécie de reificação da ação e do discurso.
A atualidade da ação assim como a do discurso, que nada mais é que uma forma de ação que faz uso de códigos linguísticos, nunca se dão no isolamento. É por meio da qualidade reveladora da ação (poder) e do discurso (saber), sempre no “espaço- entre”, que o “quem” (o agente) vai se desvelando (FOUCAULT, 2008; ARENDT, 2010). O agente nunca conhece de antemão a quem revela, pois essa identidade individual “está tão indissoluvelmente vinculada ao fluxo vivo do agir e do falar que só pode ser representada e ‘reificada’ mediante uma espécie de repetição” (ARENDT, 2010, p. 234).
Nas relações políticas, de acordo com Foucault (2008), se dá o nascimento de tudo aquilo que existe e tem valor para nós; na raiz do que conhecemos e somos está o poder . Portanto, da mesma forma que não há saber desconectado das relações de poder, não há individualidade que não seja social, ou subjetividade que não seja intersubjetiva, sendo assim, politicamente engendrada.

7 O BIOPODER E O ALICIAMENTO DO OUTRO SOCIAL
Se há relações de força é porque essas relações não são unilaterais, ou seja, envolvem inúmeras vontades e intenções conflitantes (ARENDT, 2010). Existem divergências e lutas dentro da própria rede de poder (FOUCAULT, 2008). Mas se o exercício deste se resumisse a acidentes aleatórios ou descontinuidades provenientes das tensões nas relações díspares, viveríamos apenas em um entremeado de emergências sociais caóticas. Ao contrário, a teia social dinamiza-se em mecanismos de exercício de poder de forma a atingir uma generalização de determinadas formas disciplinares de controle que visam à produção/utilização de comportamentos e discursos claramente econômica e politicamente nutritivos. Ou seja, embora as tensões sejam resultado do encontro de interesses divergentes, ainda assim, parece que a forma como as relações sociais se articulam acabam se mostrando, segundo Benjamim (1987), comprometidas com as relações de produção ou, de acordo com Müller-Granzotto (e MÜLLER- GRANZOTTO, 2012a), alienadas no produtivismo consumista.
Essa biopolítica, ou seja, o controle que a sociedade capitalista investiu nos corpos não se dá porque o poder está concentrado em uma instituição, classe ou pessoa (FOUCAULT, 2008); pelo contrário, o poder está tão “des-concentrado” que, na busca de um lugar social, os corpos acabam por se sujeitar a interesses de um outro: o “outro social”. Essas sujeições, que se dão nas relações de poder, acabam por denunciar a forma com que esses padrões sociais aparentemente se cristalizam. Ora, mas quem seria esse outro social? Poderia ele ser comparado a uma mão invisível na história, conceito acolhido por Benjamim (1987, 2012a, 2012b), no entanto tão criticado por Foucault (2008; ARENDT, 2010)?
Se entendermos a função personalidade como sempre socialmente determinada, portanto, valendo intersubjetivamente como um “espelho social”, pode-se dizer que a definição de outro social é análoga à de função personalidade (MÜLLER- GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012b). As relações de força, possibilitadas pela própria rede de poder, são as ações que viabilizam a criação de uma função personalidade de validade intersubjetiva, ou seja, a própria existência do outro social. Este não como uma generalidade estática de orientação das relações sociais, mas como generalidade dinâmica que condiciona e é condicionado por elas; tanto abrange o processo de “sobredeterminação funcional”, quanto viabiliza o “preenchimento estratégico” nas próximas relações de poder (FOUCAULT, 2008; MÜLLER- GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012b).
Isso só é possível porque a biopolítica não se limita à sua função repressiva. Se ela tivesse como estratégia agir somente por meio da censura, da exclusão, do recalque; se fosse um “Super-ego” que se impusesse somente de forma proibitiva, seria muito frágil. O que faz com que o poder enquanto disciplina seja aceito e se regulamente através da rede social é o fato de que ele não se restringe a dizer não, mas produz coisas, discursos, proporciona prazer e também viabiliza efeitos positivos tanto ao nível do saber quanto ao nível do desejo (FOUCAULT, 2008).
O biopoder, portanto, é uma realidade estratégica que não tem interesse em expulsar os homens da vida social ou de impedi-los de exercitar suas atividades, mas sim de geri-las; controlar os corpos em suas ações, aperfeiçoando-os e potencializando suas capacidades para utilizá-los ao máximo (FOUCAULT, 2008). Benjamin (2012b, p. 15) já havia denunciado a estratégia de aliciamento do outro social, que para ele era mera ferramenta cruel voltada aos interesses da burguesia, ao dizer que “nada corrompeu mais as classes trabalhadoras alemãs do que a ideia de que elas estavam integradas na corrente dominante”.
Quanto mais os indivíduos se veem inseridos nos mecanismos de poder disciplinares (alienados ao outro social), por deverem a própria condição de indivíduos à biopolítica, menor é a capacidade de ações espontâneas (desvios, resitência ou revolta) e maior sua docilidade e utilidade econômica e política. Isso posto, a biopolítica não é somente a ação de reprimir os comportamentos, mas a de produzi-los e normalizá-los; não tem o objetivo de descaracterizar o indivíduo, mas justamente de o fabricar e se apresentar como possibilidade de articulação dos hábitos, representações e desejos do indivíduo sempre socialmente engendrados, comprometidos, portanto, com os interesses do outro social (FOUCAULT, 2008; ARENDT, 2010; MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012b).

8 O OUTRO SOCIAL E SUA REIFICAÇÃO À NOÇA DE “EU MESMO”
Foucault aproveitou a noção do panopticon para explicar a forma com que os mecanismos do poder disciplinar penetram nos corpos e nos comportamentos. O panopticon, construção de estrutura circular e visível na periferia com uma torre central que tudo vê, que poderia ser usado em prisões, hospícios, escolas, etc., foi visto como uma inovação disciplinar. O objetivo era que nem houvesse a necessidade de punição, mas que as pessoas sequer pudessem agir mal de tão mergulhadas num “campo de visibilidade total em que a opinião dos outros, o olhar dos outros, o discurso dos outros os impediria de fazer o mal nocivo” (FOUCAULT, 2008, p. 215-216). Acabava que o olhar constante fazia com que cada prisioneiro, louco ou aluno “internalizasse” a disciplina ou, a partir de uma perspectiva mais fenomenológica, se identificasse com ela a ponto de observar a si mesmo; desse modo, cada um exerce a vigilância sobre e contra si mesmo.
O olhar invisível exercido através da “internalização”, como no exemplo do panopticon, interessa muito aos dispositivos disciplinares biopolíticos, segundo Foucault (2008), pois permite que a disciplina seja articulada de maneira contínua, com um custo relativamente baixo e suprime a possibilidade de revoluções; o corpo que adquiriu a visão de quem olha já não pode mais reconhecê-la somente no outro, pois o outro social agora é também “eu mesmo”.
É a disciplina biopolítica, sempre no “espaço-entre”, que produz o que “inter- essa” (FOUCAULT, 2008; ARENDT, 2010). Não há como responsabilizar alguém por uma emergência que sempre se produz no interstício; e são essas estratégias anônimas que fazem com que não haja diferença de natureza entre o poder exercido por um simples policial e pelo primeiro ministro (FOUCAULT, 2008).
Por meio dessa discreta reificação do outro social à noção do eu mesmo não é mais somente o outro que quer que eu me aliene ao produtivismo consumista; sou eu que entendo que tenho o direito de ser feliz e “livremente” decido me alienar ao que me aparece como possibilidade. Para isso me disciplino, administro meu tempo e meus comportamentos para que possa ser socialmente bem sucedido, ou seja, estar satisfatoriamente apto a produzir e a consumir (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER- GRANZOTTO, 2012a). O próprio “lugar social” se torna um bem de consumo; o status, a admiração pública satisfazem as novas necessidades do corpo, são consumidos pela vaidade assim como o alimento é consumido pela fome (ARENDT, 2010).

9. NEUROSE COMO UM AJUSTAMENTO DE ARTICULAÇÃO POLÍTICA
As repercussões das relações de poder no sistema self são muitas. Entende-se que nos ajustamentos de articulação política, onde a vulnerabilidade se encontra na função ato (ego), diante da demanda por alienação do outro social o self pode se ajustar de maneira antissocial – suprimindo o outro social (função personalidade) e dando voz ao excitamento (função id) que se atualiza enquanto hábito claramente confrontador ao outro demandante; pode se ajustar de maneira banal – se omitindo tanto do que se apresenta enquanto excitamento (id) quanto da demanda do outro social (personalidade), por exemplo, nas adicções; ou pode se ajustar de maneira evitativa (neurose) – inibindo o que se apresenta enquanto hábito (id) em favor das representações sociais/demandas do outro social (personalidade) (MÜLLER- GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2007, 2012a). O que nos interessa nesse caso são os ajustamentos evitativos, pois são eles que permitem que o poder transite “fluidamente” pela rede social e que seus mecanismos biopolíticos se consolidem.

9.1 EVITAÇÃO COMO FORMA DE SUJEIÇÃO AOS MECANISMOS DISCIPLINARES
Os hábitos (id), assim como as representações (personalidade), são sempre de valência intersubjetiva; ou seja, as ações dos corpos de atos (ego) estão sempre apoiadas na transitividade dos hábitos sociais. A partir da vivência dos processos de imitação e aprendizagem, as ações podem herdar dos hábitos compartilhados intersubjetivamente uma orientação afetiva (id). Deve-se ficar claro, portanto, que a neurose não descreve uma pessoa, um comportamento individual ou uma identidade (ninguém é neurótico a não ser em uma “relação” em que a evitação seja demandada) (MÜLLER- GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a). A neurose é um ajustamento, uma forma de lidar com a ambiguidade social, a ação de se evitar algo (hábito socialmente engendrado) em favor da manutenção de um laço social (representação socialmente engendrada) e, como coloca Arendt (2010, p. 235), a “ação jamais é possível no isolamento”.
A neurose é a perda das funções de ato (ego) para uma fisiologia secundária (id); “é a evitação do excitamento espontâneo e a limitação das excitações” (PERLS et al., 1997, p.235). A neurose aparece sempre como uma forma de apego a um evento ou eventos passados; de forma que a inibição deliberada (ego) de um hábito (id), ao se repetir, acaba tornando-se ela própria, um hábito, a saber, uma inibição reprimida (id).
Independentemente da gênese de um hábito inibitório (evento passado) estar aparentemente desconectada do evento atual, esse hábito não se apresenta desvinculado da demanda atual por alienação à verdade do outro social. (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2007, 2012a).
As relações heterogêneas não nos permitem o reconhecimento/reencontro de nós mesmos como totalidades coerentes, mas “introduzem” suas ambiguidades no sistema self. A história, enquanto sequência de encontros ambíguos, “dividirá nossos sentimentos; dramatizará nossos instintos; multiplicará nosso corpo e o oporá a si mesmo [...] É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar” (FOUCAULT, 2008, p. 27-28).
A ambiguidade dos múltiplos elementos distintos, que nenhum poder de síntese domina, sempre presente nas relações de poder, faz com que a luta não seja, de forma imediata, entre o proletariado e a burguesia, por exemplo. A luta se dá em toda relação de poder e é o que constitui a noção de indivíduo. Na neurose, a noção de indivíduo, que é forjada no conflito, produz a impressão de algo que Foucault (2008, p. 257) chama de “sub-indivíduos” ao descrever que “existe sempre algo em nós que luta contra outra coisa em nós”. Analisando essa afirmação pode-se dizer que há sempre algo na função personalidade que é conflitante com algo na função id e essa é a origem de toda a ambiguidade neurótica (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).
No contexto das relações de poder, a sujeição (inibição deliberada do que se apresenta como excitamento/hábito em favor da fruição dos mecanismos disciplinares encarnados pelo outro social: o corte do saber) enquanto escolha da função ato é uma forma de ajustamento socialmente funcional e não pode ser considerada ainda neurose, embora não deixe de ser uma evitação. O que acontece é que, ao se repetir, a própria sujeição deliberada aos mecanismos disciplinares torna-se uma fisiologia secundária e começa a se apresentar como hábito (concorrente à autonomia da função ato dividindo a ação individual na atualidade). Ou seja, a função ato perde para a função id a capacidade de decidir quando é pertinente se sujeitar. A disciplina enquanto forma de orientação anônima não é mais uma escolha da minha individualidade enquanto ato (ego), nem do outro social (personalidade), mas de “outrem” (id), e acaba, quando demandada, impedindo que o hábito espontâneo se atualize; o que chega para a função ato é apenas o resultado desse conflito: a ansiedade; e é somente com esse resultado da sujeição habitual em detrimento ao hábito espontâneo que a função ato pode operar (PERLS et al., 1997; FOUCAULT, 2008; MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER- GRANZOTTO, 2012a).

9.2 A CRISTALIZAÇÃO DA FORMA DE SUJEIÇÃO COMO TENTATIVA DE RESISTÊNCIA AO BIOPODER
A noção de outro social enquanto função personalidade está continuamente se atualizando em cada relação de poder pelo processo de sobredeterminação funcional. Isso faz com que a própria ação de se sujeitar aos interesses do outro social, para continuar sendo formas de ajustamento funcionais, tenha de ser constantemente atualizada. Como já vimos que o ajustamento neurótico é não só uma forma de apego ao passado, mas um apego ao estilo de manter-se apegado, ele aparece também como uma forma sôfrega de resistência à demanda atual por alienação. O sujeito que se apresenta desorientado, dividido, inseguro, incapaz ou até doente diante do envolvimento em um laço social conflituoso na atualidade das relações de poder, tenta, embora muitas vezes inconscientemente, manipular os sujeitos que encarnam o outro social na relação a assumirem a responsabilidade/culpa pela sua ansiedade (FOUCAULT, 2008; MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).
Todos esses acontecimentos se inscrevem nos corpos envolvidos na situação conflituosa. Assim como Foucault (2008) coloca a história (sequência de ambíguas relações de poder) como algo que marca, divide e arruína o corpo (lugar de dissociação da noção eu), a ansiedade (atualização corporal da ambiguidade) que transita pelos corpos por meio da manipulação é o que os faz sofrer (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).
Entende-se que a partir do momento em que o sofrimento – decorrente da ação em um laço social ambíguo e da internalização dessa ambiguidade no sistema self – apresenta-se como uma função/utilidade manipulatória, ou seja, traz a possibilidade de suspensão temporária do peso das demandas do outro social por alienação, deve-se compreender a neurose também como uma forma de rebeldia, embora não efetiva (pois não consegue remover o outro social de sua posição de poder), ainda assim criativa (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).
As queixas neuróticas são sempre direcionadas a um “outro” que não conseguem satisfazer ou suportar. Sempre se queixam de personagens (pai, mãe, filhos, chefes, cônjuges, inclusive o “outro-ele-próprio”) que encarnam os interesses do outro social capitalista. Essa estratégia de transferência da ansiedade causada pela ambiguidade instaura uma espécie de jogo manipulatório onde os envolvidos na relação se veem enredados em um grande teatro e nele “atuam” como se, agindo assim, a existência da ambiguidade pudesse ser desconsiderada (FOUCAULT, 2008; MÜLLER- GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).
Acontece que, como Foucault (2008) coloca, a neurose é um dentre os muitos fenômenos já apropriados pelos mecanismos biopolíticos de controle. Não demora muito para o sujeito que manipula, atua e realmente sofre por conta desses conflitos (a ponto de conseguir suspender temporariamente a demanda do outro social) ser submetido a uma série de dispositivos de saber científicos e religiosos, por exemplo, que em última análise logram reinseri-lo na lógica que o adoeceu (realiená-lo aos interesses do outro social) (FOUCAULT, 2008; MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER- GRANZOTTO, 2012a).
Quando o ajustamento evitativo, enquanto forma sôfrega de resistência, não surte efeito e o sujeito é forçado a se submeter a dispositivos de saber aos quais não necessariamente se identifica, entende-se que este já não faz um ajustamento de articulação política, mas está em sofrimento político (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a, 2012b).

10. O GESTALT-TERAPEUTA COMO POSSIBILIDADE DE ACOLHIMENTO DOS “CONTRA-DISCURSOS” NO SISTEMA SELF
Foucault faz uma comparação entre o que ele chama de intelectual universal e o específico. O intelectual universal seria aquele que se vê no “direito de falar enquanto dono de verdade e de justiça” (FOUCAULT, 2008, p. 8); o escritor genial que direciona seu olhar claro, objetivo e neutro à obscura coletividade proletariada, por exemplo, e entende “que é portador de significações e de valores em que todos podem se reconhecer” (FOUCUALT, 2008, p. 11). O intelectual específico seria aquele que não se contenta em ficar atrás da “caneta” e seu engajamento o permite “uma consciência muito mais concreta e imediata das lutas” (FOUCAULT, 2008, p. 9); este não se propõe a aconselhar o proletariado ao que fazer; oferece apenas os instrumentos de análise, por entender que a “aura” da verdade está apenas no calor das relações de poder; portanto, “cabe àqueles que se batem e se debatem encontrar, eles mesmos, o projeto, as táticas, os alvos de que necessitam” (FOUCAULT, 2008, p. 151).
Foucault, ao repensar o papel do intelectual, entende que ele não deva ser o porta-voz ou o “veículo” da verdade, mas somente aquele que cria oportunidades para que os contra-discursos sejam ouvidos (FOUCAULT, 2008; MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012b).
Embora seja improvável que um gestalt-terapeuta, consciente das repercussões das relações de poder no sistema self, queira se intitular um intelectual específico (até pela denotação de saber/poder que a palavra “intelectual” traz) existe certa semelhança entre a postura do intelectual específico em relação à comunidade em que está engajado e a postura do gestalt-terapeuta em relação ao seu consulente.
Diante de tudo o que já foi discutido, já não faz mais sentido que o terapeuta gestáltico realize uma clínica enquanto administração de um saber (klinikós) impondo qualquer sentido ou verdade a respeito do que trouxe o consulente à terapia; não se propõe, como em muitas psicoterapias, a estabelecer uma prática sugestiva e reabilitadora orientada por metas ou ideais (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER- GRANZOTTO, 2012a).
Também não faz mais sentido que o terapeuta desenvolva um trabalho com um enfoque na “cura” ou na eliminação do sofrimento, pois por trás do ideal de vida sã e sem sofrimento está uma forte demanda de alienação no produtivismo consumista. O ideal introduz uma “falta” que impele à alienação das vidas, incluindo do próprio sofrimento, em interesses alheios; esses mecanismos, longe de preencherem a falta que introduzem, acabam apenas gerando mais sofrimento (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a). Ou seja, a demanda por felicidade e a disseminação da infelicidade “são alguns dos mais persuasivos sintomas de que já começamos a viver em uma sociedade de trabalho que não tem suficiente trabalho para mantê-la contente” (ARENDT, 2010, p. 166).
A teoria do self permite a identificação de pelo menos três formas de se aproximar de uma experiência intersubjetiva: uma dimensão antropológica (personalidade), que abarca os recursos sociais que se doam à experiência; uma dimensão ética (id), que leva em consideração uma gênese de orientação afetiva que também se doa à experiência; e uma dimensão política (ego) que diz respeito à própria atualização das dimensões anteriores no ato que se circunscreve nas relações de poder. Embora essas dimensões sejam inseparáveis, pois são apenas três pontos de vista diferentes de uma mesma experiência, não há uma síntese harmoniosa entre elas; ou seja, as dimensões implicam uma indivisão sem síntese e, justamente por isso, o sistema self não é estático, mas se dinamiza, ajustando-se criativamente a cada experiência de contato (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).
Entende-se que a mera internalização dos mecanismos disciplinares no sistema self não faz com que os elementos inibidos ou reprimidos desapareçam; a disciplina só os tira o direito de cidadania social, embora sejam socialmente engendrados. A biopolítica cria, transforma e dá lugar social aos elementos da função id segundo seus critérios de adequação/utilidade político-econômica. Há, segundo Arendt (2010), uma pré-indisposição da rede social em abrigar o irrelevante. A pertinência de que os excitamentos espontâneos tenham “voz” no sistema self, assim como a de que os contra- discursos sejam ouvidos na sociedade em que foram gerados – semelhante à legitimidade que Arendt (2010; BENJAMIN, 2012a) dão à fruição artística comprometida, não com uma utilidade política, mas apenas com o gozo do ritual – se exprime na possibilidade de um self mais integrado à sua impossibilidade de síntese e a possibilidade de uma sociedade mais implicada à impossibilidade de um discurso único legítimo.
Segundo o princípio de utilidade enquanto meio para um fim que, por também ser meio para outro fim, movimenta a teia social em prol de uma falta introduzida pela própria busca de preenchimento da falta anterior, não há lugar para a atualidade enquanto fim, mas sempre somente enquanto meio. O fenômeno de um self integrado à sua realidade de indivisão sem síntese encontra-se totalmente fora da categoria de meios e fins e poderia ser visto, assim como na fruição da expressão artística, como uma das poucas atualidades sociais cujo fim está em si mesmo; uma vez que “os meios de alcançar o fim já seriam o fim; e esse “fim”, por sua vez, não pode ser considerado como meio em outro contexto, pois nada há de mais elevado a atingir que essa própria atualidade” (ARENDT, 2010, p. 258).
A proposta da Gestalt-terapia está, portanto, em uma postura ética de clínica enquanto autorização/acolhimento daquilo que, no discurso e na ação, causa desvio ou estranhamento (clinamen); aquilo que, muitas vezes, é inibido por ser considerado socialmente irrelevante. É a prática de se permitir tanto o terapeuta quanto o consulente a transcender, ir mais além, ao que já é sabido. Deve poder acolher, por exemplo, “a rebeldia implícita às ações manipulatórias dos sujeitos que se apresentam divididos entre atender à demanda social e defender-se de algo que eles próprios parecem ignorar a respeito de si ou do meio em que estão inseridos” (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a, p. 186).
Não interessa ao terapeuta gestáltico determinar se o ajustamento neurótico é um fenômeno de características individuais ou sociais; o objeto de interesse é o laço social conflituoso. Somente por meio da pontuação das relações de poder que vão se estabelecendo no campo “terapeuta-consulente” – que é a única vivência cuja “aura”, por ser atual, existe – o consulente pode se apropriar daquilo que produziu na relação, da forma como vive o poder, da função e do estilo de suas ações de enfrentamento ao outro social; e, assim, ampliar suas formas em prol de um retorno à autonomia deliberativa quanto à conveniência do exercício do poder ou da sujeição a ele (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).
Foucault diz que sonha com o intelectual que derrubaria as evidências e as universalidades; que se engajaria sempre descompromissado de qualquer finalidade fixa; um intelectual:
[...] que localiza e indica nas inércias e coações do presente os pontos fracos, as brechas, as linhas de força; que sem cessar se desloca, não sabe exatamente onde estará ou o que pensará amanhã, por estar muito atento ao presente; que contribui, no lugar em que está, de passagem, a colocar a questão da revolução, se ela vale a pena e qual (quero dizer qual revolução e qual pena) (FOUCAULT, 2008, p. 242).
O terapeuta, portanto, deve se implicar na relação, considerando a primazia da experiência clínica em detrimento às suas pré-concepções teóricas, “o que envolve submeter suas concepções a uma espécie de capacidade de autorregulação que a própria experiência imporia” (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a, p. 181). Ele deve privilegiar a emergência da espontaneidade criativa, provocá-la e, mesmo sem saber até onde essa “permissividade” os levará, ou o porquê de ela acontecer assim, deve se submeter à condição que estabelece de tal maneira que, no fim das contas, não haja nenhum saber dado a não ser o de que todos os saberes devem poder estar sendo sempre recriados (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER- GRANZOTTO, 2012a).

11. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de tudo que foi exposto entende-se que é indispensável a consideração do sistema self segundo a primazia relacional de transcendência espaço/temporal no campo organismo-ambiente, relacionando-o – em sua totalidade sempre de valência intersubjetiva – com as relações de poder que permeiam a teia social.
A análise do poder, não como algo que se possui, mas como ação que se dá sempre no interstício de qualquer relação e que transita pela rede social produzindo, tanto os discursos que valem como verdade, quanto o próprio indivíduo segundo critérios de utilidade político-econômica, permite-nos compreender como, através da internalização no sistema self da ambiguidade sempre presente nas relações de poder, podemos testemunhar a neurose como um ajustamento criativo de articulação política. Embora as heterogeneidades existam, a biopolítica – que somente é “localizável” por meio da encarnação do outro social nas relações de poder – se estabelece como se pudesse produzir somente o relevante, preenchendo estrategicamente tanto os excitamentos espontâneos (analisando a experiência a partir da perspectiva do sistema self), quanto as ações espontâneas (analisando a experiência a partir da perspectiva da rede social), de forma a reificá-los em coisa útil (utilizando-os como meio para atingir fins outros).
Há, portanto, na proposta do gestalt-terapeuta uma postura ética de acolhimento ao que é socialmente estranho ou irrelevante como possibilidade de integração do sistema self à sua totalidade de indivisão sem síntese enquanto fim em si mesmo. Esse experimento descompromissado de suspensão das lógicas biopolíticas, ainda assim, atento às relações de poder que possam se estabelecer entre o terapeuta e consulente acaba por possibilitar uma ampliação das formas no que diz respeito a um retorno à autonomia deliberativa quanto à conveniência do exercício do poder ou da sujeição a ele. O fato da vivência gestáltica enquanto fim em si mesmo ter resultados posteriores não retira a legitimidade atual da experiência descompromissada, assim como um possível valor atribuído a uma obra de arte, posterior à sua execução, não retira a legitimidade da fruição, comprometida apenas com o gozo do ritual, que a produziu.
Finalmente, articular a teoria do self com as relações de poder que se dão na sociedade é tarefa complexa e delicada. O diálogo estabelecido neste trabalho logra contribuir para uma compreensão adicotomizada da noção de indivíduo/sociedade ao problematizar a intersecção da compreensão gestalt-terapêutica da teoria do self com a noção das relações intersubjetivas enquanto relações de poder; mas não se propõe, em nenhum momento, a esgotar as possibilidades abertas por essa intersecção. Pesquisas futuras deverão ampliar as inúmeras possibilidades de aproximação das relações de poder e suas repercussões no sistema self.

REFERÊNCIAS
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Universitária, 2010.
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BENJAMIN, WALTER. O AUTOR COMO PRODUTOR. In: _____. MAGIA E
TÉCNICA, ARTE E POLÍTICA. 3a ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 120-136. FOUCAULT, MICHEL. MICROFÍSICA DO PODER. 26a ed. Rio de Janeiro: Graal,
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MÜLLER-GRANZOTTO, M. J.; MÜLLER-GRANZOTTO, R. L.
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MÜLLER-GRANZOTTO, M. J.; MÜLLER-GRANZOTTO, R. L. CLÍNICAS GESTÁLTICAS: Sentido ético, político e antropológico da teoria do self. São Paulo: Summus, 2012a.
MÜLLER-GRANZOTTO, M. J.; MÜLLER-GRANZOTTO, R. L. SOFRIMENTO ÉTICO-POLÍTICO E ANTROPOLÓGICO E A CLÍNICA DA INCLUSÃO. In: _____. PSICOSE E SOFRIMENTO. São Paulo: Summus, 2012b. p. 281-315.
PERLS, F. S. et al. GESTALT-TERAPIA. 2a ed. São Paulo: Summus, 1997.
PERLS, F. S.. EGO COMO UMA FUNÇÃO DO ORGANISMO. In: PERLS, F. S.. EGO, FOME E AGRESSÃO: Uma revisão da teoria e do método de Freud. São Paulo: Summus, 2002. p. 205-214.

GRANZOTTO, R.L.; MÜLLER, M.J. \"Ética, política y antropología de la praxis clínica\\\". Cuadernos Gestalt. Castellón, Instituto de Terapia Gestalt de Castellón, n. 3, mayo 2013

DIFERENTES FORMAS DE PRAXIS CLÍNICA
El significante “clínica” es empleado en las más diferentes acepciones. Por esa razón, juzgamos pertinente, aun que se trate de un trabajo arbitrario, especular sobre un parámetro del cual pudiésemos diferenciar las prácticas clínicas en los días actuales, con la esperanza de así delimitar la singularidad de la propuesta clínica vehiculada por la teoría del self. Inspirados en el modo como Lacan (1964), Laplanche y Pontalis (1970), para citar algunos, buscan en la historia de la filosofía, matrices para comprender el uso freudiano de ciertas categorías metapsicológicas, recurrimos a los usos arcaicos de los significantes que definen las diferentes prácticas clínicas en los días de hoy. Pero, ¿Cuáles son las prácticas clínicas más expresivas en la contemporaneidad? ¿Qué matrices podemos asociar a ellas? Elegimos, como representantes de las prácticas más relevantes en la actualidad, la clínica dogmática, la clínica psicoterapeuta y la clínica psicoanalista, de la cual la terapia Gestalt es una versión crítica. La primera, más difundida y explícitamente asociada a la práctica médica, se remonta a Hipócrates (460 – 377 a. C., Isla de Kós). La segunda, no menos conocida, más relacionada a la práctica de los psicólogos, asistentes sociales y pedagogos, se remonta a los antiguos terapeutas de Alejandría en el primer siglo de nuestra era. La tercera, inventada por Freud (1905d), tiene como característica la puntuación de la presencia de un elemento desviante en las conductas y en los dichos de sus pacientes, lo que de alguna manera recupera —según admiten algunos psicoanalistas - la noción epicureista de clinamen. Y aun que nuestras articulaciones conceptuales no pasen de ficciones filogenéticas, ellas nos ayudarán a divisar la peculiaridad introducida por la teoría del self en la comprensión del sentido ético, político y antropológico de la práctica clínica como praxis del desvió en el interior de una Gestalt.

CLÍNICA DOGMÁTICA
Comencemos levantando algunos elementos sobre la clínica dogmática. Como sabemos, Hipócrates diferenciaba el Iatrós, o sea, el médico, del Klinikos, el médico que atiende junto al lecho (Kliné) los enfermos en cama, en una asistencia que se hace a partir de un Pharmakón, expresión que puede designar, conforme con Dutra (1998), tanto un remedio cuanto un veneno, o incluso, el lenguaje, en un sentido figurado (de acuerdo con Platón, 427 a 347 a. C. en la obra Fedro, trad. 1975). La clínica aquí concebida se define por el ejercicio de un saber, en beneficio de alguien pasivo o supeditado en virtud de una enfermedad o probación. El blanco de su intervención no es exactamente el sujeto —entendiéndose por sujeto, por ejemplo, al protagonista de un acto libre—, antes una parte o función implícita a un todo regular que, por una causa determinada, no responde como debería responder. En este sentido, el objeto de la intervención clínica no es la persona que siente dificultad respiratoria, sino el sistema respiratorio que en esta persona funciona de modo anormal. Tal implica, entre otras cosas, que el clínico actúa siempre con base en un concepto de normalidad, que cumple para él la función de dogma, y en relación al cual la enfermedad o molestia consiste en un desvío. La principal orientación de la clínica dogmática se fundamenta en la repetición de los protocolos que, en otras ocasiones, obtuvieron éxito para restablecer la normalidad, en especial la anatomofisiología. Y aun que esa clínica tenga su origen en la práctica médica, no está reducida a ella, pues, en la calidad de ejercicio de un saber en beneficio de quien de él está necesitando, es una metodología practicada por diferentes oficios además de la medicina, como la enfermería, la pedagogía, la abogacía, o la psicología. Y, como tal, se trata de una metodología de extrema importancia para la conservación de la normalidad y el perfeccionamiento de los sistemas funcionales, sean ellos vitales o espirituales.

CLÍNICA PSICOTERAPÉUTICA
Ya la clínica psicoterapéutica tiene otra procedencia. Si es verdad que está inspirada y tiene su base en la clínica dogmática, a diferencia de esta, ella se ocupa de acoger y resolver problemas de la vida práctica y sentimental de los sujetos, tengan ellos patologías orgánicas o no. Se cree que esa práctica surgió entre el lago Mareotis y el mar Mediterráneo, en Alejandría, en Egipto, en el primer siglo de nuestra era, donde vivía un grupo de judíos que se llamaban “terapeutas”. De acuerdo con el filósofo y rabino griego Filón de Alejandría (10 a.C. -39 d. C.), los terapeutas intentaban sintetizar la religión judaica en los principios de la filosofía estoica, fundamentada en la suspensión de los sentidos en provecho de la alegría formal. Practicaban un tipo de ascesis espiritual vuelta para el rescate y el cultivo de valores ancestrales, lo que se revela, incluso, en la etimología de los términos de ahí originados: therapeia = cuidado religioso; thérapeutris = religiosa; thérepeutikós = aquel que presta cuidados a un dios, que puede ser un maestro o el propio deseo. En las palabras de Filón de Alejandría, citadas por Leloup (1998), los terapeutas serían filósofos cuya profesión era superior a la de los médicos, pues la medicina que era común a las ciudades de aquella época “solo cuidaba del cuerpo, mientras la otra cuida también del psiquismo (psukas), preso por estas enfermedades penosas y difíciles de curar que son el apego al placer, la desorientación del deseo, la tristeza, las fobias, las envidias, la ignorancia, el desajuste a lo que es la multitud infinita de las otras patologías (pathon) y sufrimientos”. Los terapeutas, así, se proponían una medicina “superior”, orientada no por el cultivo al cuerpo o a las divinidades de madera o de piedra (como consideraban ser las divinidades egipcias y griegas), sino por el culto a un dios único, impersonal, tal como es descrito en las escrituras de la tradición judaica. Según Caldin (2010, p. 32), se dedicaban a tres tipos de actividades: a) cuidar de las patologías orgánicas (pathon); tratar del sufrimiento consecuencia del apego al placer y de la desorientación del deseo; c) cuidar de las fobias consecuencia de las persecuciones religiosas y políticas.
Rescatada siglos más tarde por el jasidismo judaico ¬—que, al contrario del judaísmo talmúdico, propio de los rabinos y de la esfera intelectual, busca promover la cara mística de la espiritualidad, diseminando entre los judíos la mística piadosa como un elemento esencial de su fe—, la práctica terapéutica fue paulatinamente asociada a las actividades místicas y artísticas promovidas por las comunidades judaicas. Esta asociación con el arte acabó por desvincular la terapia de las matrices religiosas, originándose de ahí la asociación de la práctica terapéutica; en los días de hoy, hay una serie de actividades laicas, también conocidas como existencialistas —complementarias a la clínica médica o dogmática—, y cuya meta final es ayudar a las personas a resolver conflictos sentimentales consecuencia de situaciones prácticas (como muertes, separaciones, desavenencias, etc.). Aunque la terapia no esté vinculada a un ideal (religión, doctrina filosófica o programa estético), es frecuente que los terapeutas se sirvan de los motivos (antropológicos, religiosos, filosóficos, políticos, entre otros) de los sujetos para, así, discriminar las soluciones sentimentales adecuadas.
A partir del momento en que pasó a ser reclamada por la psiquiatría y, sobre todo, por la psicología, la práctica clínica de los terapeutas mereció un tratamiento más dogmático. He ahí el nacimiento de la clínica propiamente “psicoterapéutica”. Los psiquiatras y psicólogos prestaron a la terapia una serie de modelos psicológicos relativos al comportamiento humano y a otras tantas funciones psíquicas, como si las intervenciones terapéuticas debiesen estar respaldadas en aquellos modelos. En cierta medida, con los psiquiatras y psicólogos, la clínica de los terapeutas se aproximó de la clínica dogmática, con la diferencia de que el dogma seguido por los psicoterapeutas no proviene prioritariamente de las ciencias biológicas. Aún así, tal como en la clínica dogmática, las intervenciones de la clínica psicoterapéutica objetivan restablecer aquellas funciones que, de modo dogmático, los modelos psicológicos juzgaron adecuados a los valores de la comunidad.

CLÍNICA PSICOANALÍTICA
La clínica psicoanalítica, a su vez, es una praxis pensada con base en el significante “desvío”, lo cual fue utilizado por Freud (1905d) para definir el principal objeto de sus investigaciones, la pulsión – si es que podemos considerarla un objeto. En otras palabras, la praxis clínica psicoanalítica está directamente relacionada a la forma como Freud (1905d) entendió la pulsión, como un desvío en relación a la naturaleza (o instinto), lo que vale decir que, en algún sentido, la clínica de Freud se caracterizaba por el escuchar a aquello que hace derivar, esto es, por escuchar la pulsión. Es por eso que los comentaristas de Freud atribuyen tanta importancia a la noción de desvío y, para entenderla muchos de ellos recurrieron a la historia de la filosofía, lo que los hizo depararse con el tratamiento epicureísta destinado a la noción de desvío como clinamen: átomo productor de desorden, desequilibrio y desconstrucción . En alguna medida, la pulsión sería como el clinamen, y la clínica psicoanalítica correspondería a la escucha al que hace derivar.
Fue Lucrecio (94-95 a.C.) quien introdujo el término clinamen para explicar la ocurrencia de una instancia ontogenética atómica que, en vez de firmar un principio, representa la negación de cualquier principio, la persistencia de un elemento desviante originario, productor de caos. Clinamen, para Lucrecio (trad. 1988), es una espontaneidad desviante que exige la recreación de todo; es lo que es extraño, idiosincrático, un tipo de conducta (habitual) que no se integra a la cultura dominante – noción esta que es casi sinónima de otra expresión, conocida como parenklesis, y también significa desvío, habiendo sido propuesta por el gran inspirador de Lucrecio, Epicuro (341-271 a. C.), para quien debemos admitir la existencia de una partícula desviante que explicaría la contingencia y la libertad . Según Epicuro, parenklesis es lo que viene a romper, en el plano de la física, con la idea de la regularidad mecánica, introduciendo la noción de contingencia; o romper, en el plano de la acción, con la noción de necesidad, introduciendo la noción de arbitrio. Diferentemente de la noción de parenklesis, la noción de clinamen no tiene la finalidad moral de explicar las conductas desviantes o la libertad en el interior del orden (lo que viene a dar en lo mismo) . Para Rosset (1989, p. 149), clinamen se refiere antes a la “casualidad como la llave de todas las ‘divisiones’ naturales. En la medida en que es el clinamen, principio de la casualidad (esto es: ausencia de principio), que hace posible todas las combinaciones de átomos, resulta que el mundo, en su conjunto y sin excepción es obra de la casualidad”. El clinamen, por lo tanto, no es un átomo que se salió de la plomada, sino la ausencia de plomo para el átomo originario.
Muchos siglos más tarde, al romper con la clínica médica y con la clínica psicoterapéutica, Freud (1895) propuso una práctica vuelta para la escucha e interpretación “de eso” que, tal cual clinamen, opera como ausencia de principio, desorden originario: pulsión. Y, ¿Qué es lo que debemos entender por pulsión? En el texto La pulsión y sus vicisitudes, Freud (1915b, p. 15) dice que la “teoría de las pulsiones es, por así decirlo, nuestra mitología. Las pulsiones son entidades míticas, magnificas en su impresión”. Y la definición más estable que Freud entrega respecto de ellas está basada en la noción de Gestalt aprendida de su profesor Franz Brentano (1874). Para este, Gestalt es un todo indeterminado que se forma espontáneamente en el umbral de lo somático y de lo mental como una especie de anticipación intuitiva al pensamiento y a la acción, posibilitando que lo consideremos un objeto legítimo de forma independiente de su ocurrencia física . Ese todo no puede ser conocido o controlado, solo reconocido a posteriori con los efectos que desencadenó. Luego, una atención clínica a las pulsiones no es otra cosa sino una escucha dirigida a los efectos que se dejan reconocer con relación a la co-presencia temporal de una Gestalt. Como ilustración de los efectos producidos por Gestalten, Freud menciona la presencia (imposible de interpretar) de la fórmula de la trimetilamina en el sueño que tuviera respecto de su paciente Irma (Freud 1900); la destructividad que caracteriza el par sadismo-masoquismo (Freud, 1924b), o la compulsión a la repetición, la cual “rememora del pasado experiencias que no incluyen posibilidad alguna de placer y que nunca, incluso de largo tiempo, trajeron satisfacción, inclusive para impulsos pulsionales que desde entonces fueron recalcados” (Freud, 1920, p. 34).

CLÍNICA GESTÁLTICA
En la evaluación de PHG , hay un gran mérito en la concepción de clínica formulada por Freud, que es el hecho de que ella privilegie la acogida al desviante pulsional (clinamen), y no al atendimiento a las expectativas de la sociedad formuladas en los dogmas y en las ideologías. Aun así, para PHG, Freud no consiguió mantenerse totalmente distante de las posturas dogmáticas. Y no por haberse servido de ellas como teorías de la personalidad o egologias formuladas en tercera persona, desvinculadas de la praxis de escucha a los sujetos en el diván, como fue acusado por George Politzer (1912) y, en la senda de él, casi todos los filósofos franceses de la década de 1940, como es el caso de Jean-Paul Sartre (1942) y Merleau-Ponty (1945) . PHG no comparten la evaluación según la cual Freud contaminara la noción de pulsión con las características de los objetos formulados por las teorías científicas de las cuales se sirviera, pues Freud sabía que la pulsión no es un objeto en el mismo sentido en que lo son las neuronas (sugeridos por Wilhelm Waldeyer en 1891) y las mediciones cuantitativas de los procesos de resonancia fisiológica (investigados por Herbart y Fechner alrededor de los años de 1820, como aclara Ernst Jones, 1960, p. 383-5). Si hay algo en Freud que pueda ser censurado, tal está relacionado al hecho de no haberse resistido a conferir a las pulsiones una especie de función ontogénica, capaz de explicar no solo los fenómenos clínicos (como los diferentes tipos de síntomas, los actos fallidos, los chistes), sino también los fenómenos civilizatorios más complejos (como el malestar de la humanidad en torno a temas como el tabú, el genocidio, la culpabilidad), así como algunas características culturales (como la estilística de ciertos artistas y escritores), como si el destino de las organizaciones y de las acciones humanas estuviese para siempre marcado por un elemento desviante que los haría malograr. En especial en sus textos de contracultura, Freud (1939) infló la noción de pulsión, como si tal contraprincipio desviante pudiese ser utilizado como llave interpretativa de los diferentes conflictos y vulnerabilidades vividos por la humanidad.
Contra esa forma de operar con las pulsiones, Fritz y Laura Perls proyectaron la consecución de una profunda reforma en la metapsicología freudiana, considerando el hecho de esta permanecer presa en un modelo —si no dogmático al menos escatológico— que no considera aquello que, en la evaluación de Fritz Perls, era el principal descubrimiento clínico de Freud, precisamente: la inalienabilidad de las pulsiones entendidas como esa orientación desviante que se manifiesta a partir de mi pasado, como mi paradojal forma de ligación con el mundo presente. En razón de esto, ya en 1942, Fritz y Laura Perls (Perls, p 44) sintieron la necesidad de ajustarse a los efectos presentes de las pulsiones, como si la “concentración” en el presente, en aquello que “obviamente” estuviese sucediendo, cumpliese mejor la tarea de acogida a la manifestación de lo que fuese extraño, de lo que fuese desviante. La consecuencia de esa praxis fue que Fritz y Laura Perls comprendieron que la pulsión no corresponde al todo de una Gestalt, sino apenas a un aspecto en un campo de diferenciación – y no la matriz de la cual todas las otras dimensiones se derivarían.
Así, no se trata, para tomar un ejemplo, de decir con Freud que lo desviante pulsional se desdobla en “yo” y, después, en “superyo”. Si el desviante pulsional es la forma radical de manifestarse el íntimo en las relaciones de campo, la percepción de la intimidad depende de que el desviante esté “apoyado” en otras dimensiones, de las cuales se diferencia, o junto a las cuales produce efectos. O, entonces, la pulsión solo puede mostrar sus efectos en las otras ocurrencias de las cuales se diferencia. Y, así, si es verdad que la clínica debe poder ser una acogida a lo que produce desvío, tal acogida solo es posible en la medida que podamos operar diferencias, operar desvíos en relación al propio desviante. Es en este punto que Fritz y Laura Perls, ahora amparados en la lectura fenomenológica-pragmatista establecida por Paul Goodman , desenvolvieron algo ya evidente en Yo, hambre y agresión, a saber, que las Gestalten son ocurrencias temporales, en las cuales podemos divisar tres direcciones, tres orientaciones intencionales: el fondo habitual, los actos presentes y el horizonte fantasmático . Y más importante que esa distinción fenomenológica —la cual PHG denominaron de teoría del self— es el reconocimiento de que, en la práctica clínica, importa el ejercicio del desvío de una orientación a otra. Además de que esa práctica facilita la visualización de los efectos de las pulsiones, cuando hubiese tales efectos, ella da derecho de ciudadanía clínica a las otras dimensiones, sin con eso inflar el trabajo del profesional, ahora sin obligación de inferirlas de la primera. De alguna manera, en los términos de la teoría del self, la clínica amplia su foco de atención volviéndose no solo al desviante (clinamen), sino también al carácter antropológico de las acciones presentes y al sentido político de los fantasmas con los cuales cada cuerpo busca simbolizar su posición en el flujo de una sesión a otra. No solo eso, PHG rehabilitan la idea epicurista del desvío como parenklesis, posibilitando que definamos la clínica gestáltica como la práctica de la transposición de una dimensión a otra, lo que incluye la dimensión eminentemente desviante, que es el fondo habitual como clinamen. Es así que podemos definir la clínica gestáltica como esa articulación entre una conducta desviante (parenklesis) y la tolerancia a lo que se desvía.
Pues bien, esa atención desviante (sea en la dirección de lo que hace desviar, en la dirección de nuestras identidades compartidas o en la dirección de nuestros deseos) recuerda, a su vez, la práctica de la parresia propuesta por los cínicos griegos. Conforme con Diógenes Laércio (trad. 1977), parresia dice relación a un derecho político del ciudadano griego y latino, semejante a la libertad de expresión, por medio de la cual él reclama una ocasión para expresar libre y simultáneamente su devoción a las leyes y sus idiosincrasias. Para los cínicos griegos, como Diógenes de Sinope (424 – 323 a. C.) , hay que admitir que todos nosotros, al mismo tiempo que nos favorecemos de las leyes, somos también ilícitos, motivo por el cual debemos poder reclamar los unos de los otros la tolerancia a la ambigüedad en cada uno. De esta noción se desprende que los cínicos, aun que admitiesen vivir en la ciudad y se propusiesen defenderla de los tiranos, buscaban desembarazarse de todas las convenciones e instituciones que tienden a rigidizar el pensamiento, o sea, a sofocar las idiosincrasias. Contra las posiciones radicales (como la del dogmático que cree que debemos someternos a las leyes de la ciudad, o la del escéptico que prefiere abandonarlas), la parresia cínica busca reclamar el derecho a la ambigüedad, a la posibilidad de que los ciudadanos comunes, en algún momento, puedan hacer carnaval.
He ahí, entonces la clínica gestáltica. Se trata de la atención no dogmática y no normativa a las diferentes posibilidades de desvío (parenklesis) que se presentan a un sujeto de actos en la actualidad de la situación, lo que incluye la manifestación de un desviante (clinamen), de una normalidad o legalidad antropológica y de un deseo político. Lo que hace de las intervenciones clínicas gestálticas una especie de denuncia reveladora (cual parresia cínica) de la ambigüedad fundamental inherente a nuestras relaciones complejas en la naturaleza y en el mundo humano.
Ha de mencionarse, como un uso relevante a la comprensión del estilo, la forma como Michel Foucault se ocupó de definir la función de la clínica médica después del siglo XIX. Él empleo el término “clínica” como producción capaz de ejercer la crítica de las prácticas y políticas terapéuticas vigentes. Más allá de los análisis de Canguilhem (1943) sobre las transformaciones sufridas por la práctica médica como consecuencia de la adhesión a las ciencias naturales, Foucault buscó mostrar, en la obra El nacimiento de la clínica (1963), la importancia crítica desempeñada por la clínica médica. Para él, hay una flagrante discontinuidad entre: a) el conocimiento médico de la Edad Clásica (siglos XVII y XVIII), el cual tenía como tónica la representación taxonómica y superficial de la enfermedad como ilustración de un saber dogmático; y b) la medicina clínica (practicada a partir del siglo XIX), cuya preocupación era localizar la enfermedad en el espacio corpóreo individual. Tal discontinuidad se explica, en parte, porque la medicina clínica se asoció a las diferentes disciplinas científicas. Pero no solo por eso. Al contraponer los discursos científicos al criterio del éxito en la terapéutica de los cuerpos tratados, la medicina clínica sometió aquellos discursos a un tipo de crítica que tiene antes un sentido ético de que epistémico. La clínica, en consecuencia, más que un espacio de aplicación de un saber, es un espacio de crítica de esos saberes.
En esta dirección, debemos ahora preguntarnos en qué medida la teoría del self responde a la exigencia de una clínica gestáltica, bien como hasta que punto ella es capaz de someterse a la crítica.

PRESENCIA Y FUNCIÓN DE LA TEORÍA DEL SELF EN LA PRÁCTICA CLÍNICA GESTÁLTICA
La teoría del self no es una producción que pueda ser considerada científica y, en este sentido, dogmática. Tampoco puede sustituir la experiencia de formación de un clínico gestáltico, la cual se hace por medio de un riguroso proceso clínico, suceda él en un grupo o en la clínica de a dos. ¿Cuál es, por lo tanto, la relevancia de la teoría del self para la clínica gestáltica en los días de hoy?
No se trata de una cuestión simple, al final, esta teoría pretende una elaboración en el límite de la práctica clínica y de la reflexión teórica. Por un lado, ella debe reconocer el primado de la vivencia del contacto en el contexto clínico. Por otro, debe poder elaborar la vivencia del contacto sin reducirla a la condición de ilustración de una teoría. Es por esta conjunción que surge nuestra comprensión de que la teoría del self, en verdad, es la ofrenda que el clínico, en cada sesión, da al sacrificio en provecho de las elaboraciones que el consultante pueda hacer respecto de su propia vida. Atento a las dimensiones inactuales que, en la actualidad de los contenidos (función personalidad), se anuncian como horizonte de pasado (función ello) y de futuro (función de acto), el clínico presume una dinámica temporal que consiste en la repetición de un hábito (excitación motora o lenguajera) en la forma de una creación fantasmática (deseo), frente a la cual él es invitado o no a ocupar un lugar. Ávido por encontrar ese lugar (que corresponde a su propio deseo), el clínico constantemente se ocupa de operar un desvío en la atención del consultante a fin de que este pueda migrar de los contenidos para la forma como él mismo busca repetir lo que ni siquiera él —tampoco el clínico— sabe lo que es. Esto significa decir que, después de la constatación, en sí mismo, de un sentimiento incipiente, de una movilización, placer o relajamiento, el clínico se ocupa de producir, en el consultante, algún efecto que este pueda elaborar más allá de las verdades a las cuales esté sometido, identificado o en conflicto. En última instancia, el terapeuta Gestalt nunca tiene control sobre la elaboración que el consultante pueda hacer respecto de lo que sucede consigo mismo durante el proceso clínico. El saldo de una sesión nunca es la ratificación de aquello que el clínico pudiese presumir a partir de su mirada para las funciones y dinámicas inherentes a la vivencia clínica. Aun así, las ocurrencias clínicas protagonizadas por los consultantes —¬mudanzas de postura, transformaciones en los contratos sociales, construcción y desconstrucción de teorías sobre sí mismo y, fundamentalmente, la repetición de significantes que no tienen el menor sentido¬— confirman al clínico que muchas cosas pueden estar sucediendo. O, incluso, confirman que las diferentes funciones (id, acto y personalidad) pueden estar operando. Y la tarea del clínico, en este momento, es dar condiciones para que las funciones puedan producir efectos, en sí y en el (los) consultante(s), objetivando favorecer los diferentes tipos de desvíos que puedan ser operados de una función a otra.
Por otra parte, la posibilidad de percibir el campo clínico bajo diferentes perspectivas, pudiendo desviarse de una a otra, es la principal virtud de la teoría del self para la práctica clínica en los días de hoy. Es tal posibilidad que faculta a la práctica clínica gestáltica a ofrecer algo distinto de la praxis dogmática o normativa, u ofrecer una alternativa a las prácticas ancladas en la transmisión de un saber o en el servicio a un ideal, como son las prácticas clínicas médicas y las practicas clínicas psicoterapéuticas (aun que consideremos que, en muchos contextos, estas dos sean extremadamente adecuadas, como lo es la clínica médica para quien convalece de hepatitis C, o como es la clínica psicoterapéutica para quien desea hacer una evaluación de competencia funcional). Por dirigirse a un sujeto distinto, que es el sujeto que opera con aquello que se manifiesta como un extraño, por considerar —amparada en la teoría del self— que la presencia del extraño se manifiesta en, por lo menos tres dimensiones no coincidentes, la clínica gestáltica no sigue protocolos ni busca alcanzar metas. Ella cree que podemos comprender cada acto (sea él, por ejemplo, una demanda, una formación reactiva, o un síntoma) de tres puntos de vista distintos, lo que puede favorecer la ampliación de la autonomía del consultante para decidir qué hacer o cómo entender lo que de extraño esté aconteciendo con él. De esta manera, en virtud de la teoría del self ser considerada tan solamente un marco teórico, el clínico puede puntuar, en un decir del consultante, tanto el afecto (que en este se expresa o no) cuanto a los proyectos (que aquel decir abre), bien como las identificaciones antropológicas implícitas a los contenidos semánticos formulados en aquel decir.
Y, por cuanto cada una de esas dimensiones es distinta, como entre ellas solo se pueden admitir relaciones de figura y fondo, jamás de causa y efecto, o de complementariedad, por cuanto las relaciones gestálticas son totalidades abiertas, irreductibles a una significación total, tal forma de apuntar las relaciones clínicas impide cualquier suerte de interpretación totalitaria o posición de verdad que el clínico pudiese reclamar frente al consultante. Por causa de la triple forma de mirar las vivencias en la actualidad de la situación, la teoría del self faculta a los clínicos a permanecer advertidos contra el dogmatismo y la normatividad, invitando a los consultantes al ejercicio del riesgo, al riesgo de la interpretación, del experimento, de la osadía, del equívoco, de la desorientación y de la tolerancia.

LA PRÁCTICA DEL DESVÍO SEGÚN LA TEORÍA DEL SELF
La práctica del desvío, concebida por medio de la teoría del self, es una dinámica figura/fondo. Usando un conjunto de representaciones sociales (función personalidad) compartidas por el clínico y por el consultante, cada uno puede tomar la decisión de permanecer encerrado en ese dominio, o desviarse rumbo a otra manera de considerar lo que esté sucediendo en el aquí y ahora de la relación clínica. Le puede ocurrir al clínico, por ejemplo, que las representaciones articuladas por el consultante tracen mucho más que una historia pasada, o sea, anuncien también una intención secreta, un proyecto tácito por el cual el consultante trabaja sin darse cuenta de él. Si acaso diese a conocer al consultante esa percepción, el clínico operaría un desvío rumbo a la función de acto, al dominio de las fantasías que, de modo irreflexivo, el cuerpo hablante del consultante articulara. Pero si al clínico le llamase más la atención la sorpresa, la rojez, la contracción postural del consultante ante las interpelaciones que le fueron dirigidas, si al clínico le interesase más amplificar el afecto que entonces se reveló, por cierto estaría operando un desvío rumbo a la función id. En cada uno de los casos, lo que está siempre en cuestión es la fuerza de la dimensión que se hace figura, sea al clínico o al consultante.
Una dimensión puede figurar por revelar una vulnerabilidad . Una vulnerabilidad antropológica, como el luto, la enfermedad somática, una emergencia, o desastre, por ejemplo, puede traer al primer plano la función personalidad; una vulnerabilidad política, como la incapacidad de hacer frente al deseo ajeno, puede sacar a la luz a una ansiedad implícita a la función de acto; o una vulnerabilidad ética, como la angustia frente a un requerimiento, puede revelar la ausencia de la función id. Pero también puede una dimensión figurar por revelar una intensificación del flujo de energía (awareness). Así, un acto fallido puede llevar al clínico al fondo de excitación (función id); la espontaneidad del habla puede traer al primer plano la efectividad de una acción (función de acto); o la luminosidad de la sonrisa puede remitir al clínico a un sentimiento (función personalidad). Y, si es verdad que la dimensión que venga a figurar ni siempre es resultado de una elección del clínico o del consultante —dado que las dimensiones pueden simplemente imponerse—, también es verdad que en cada una de ellas el clínico desempeña un papel diferente.
Como vimos más arriba, para la teoría del self la presencia de un afecto es siempre indicación de la presencia de una excitación. Dirigir nuestra atención a él, por medio del afecto, constituye la más elemental de las operaciones de desvío, el desvío rumbo a la función id. Se trata, en verdad, de una experiencia de desvío en dirección a aquello que de más extraño pueda estar sucediendo en la actualidad de la situación. O, incluso, se trata de la acogida al extraño, él mismo, se manifieste él como hábito motor o hábito lenguajero. Es ese el sentido ético de la práctica clínica gestáltica, el desvío rumbo a la/en favor de la manifestación del “otro”, de la manifestación de esa alteridad extraña en el umbral de las acciones del clínico y del consultante. Esa manifestación del otro, a su vez, despierta en los interlocutores, más allá del afecto desencadenado, un horizonte presuntivo de entendimiento, como si ambos fuesen convocados a producir, para el otro revelado, un sentido o finalidad (función de acto). De ahí en adelante todo pasa como si el clínico y el consultante compartiesen la tarea de encontrar, para ese misterioso sujeto revelado como afecto, una manera de domesticarlo, dominarlo, someterlo a un tipo de control, la que llamamos de fantasía. Se inaugura, en el seno de la experiencia clínica, la dimensión política. Ella no es más que un conjunto de creaciones por intermedio de las cuales el clínico y el consultante buscan un sentido para eso que no tiene sentido, esto es, lo otro. Y el trabajo de desvío en relación a lo que pueda dar sentido a las excitaciones no es sino un trabajo político, una tentativa compartida de ejercer un poder, un saber sobre lo extraño (lo otro) que se manifestó.
Y aunque ningún sentido pueda, de hecho, captar lo que surgió (entre el clínico y el consultante) como lo otro, aunque ninguna fantasía sea suficientemente poderosa para acoger y significar lo que haya desencadenado, en el umbral del contacto entre los interlocutores, un afecto, aún así, para las experiencias siguientes, los esfuerzos para entender generaran un tipo de patrimonio de significaciones, de las cuales los interlocutores siempre podrán servirse (función personalidad). A cada nueva sesión, los discursos de las sesiones anteriores restarán como “marcos”, como fortunas críticas siempre a disposición de los agentes que de ellas se servirán para producir, en el futuro presuntivo, nueva tentativa para entender eso que no para de mostrarse como lo que no podemos entender, esto es, lo otro como afecto. Pero no solo eso: los discursos de las sesiones anteriores y de tantos otros contextos en que el consultante se ocupó de ver si entregaban un sustento de convivencia, de humanidad, mediante el cual, clínico y consultante podrán comunicarse de modo horizontal y recíproco. He aquí, en fin, la dimensión antropológica, el histórico de las tentativas malogradas para aprehender, en el campo del sentido, lo que no se deja aprehender. No obstante no poder asegurar el entendimiento respecto al que es lo otro, el conjunto de tentativas antiguas entrega una especie de espejo social (otro social) frente al cual cada acción actual podrá encontrar una especie de doble, de identidad. Desviarse para esa dimensión humana es un trabajo de cuidado antropológico, cuidado dirigido a la humanidad compartida por el clínico y por el consultante.
De donde se sigue, en fin, que podemos vislumbrar, para cada tipo de desvío operado en el campo clínico, una tarea específica desempeñada por el profesional. En la acogida ética al extraño, en el trabajo de desvío rumbo a la función id, el clínico opera como analista – analista de la forma según PHG (1951, p. 46). Es la tarea ética de distinguir “lo otro” (como modo, como forma) de los contenidos ya determinados (de las historias contadas por los consultantes) y de los proyectos políticos (que los consultantes ostentan frente a aquellos con quienes conviven o en quien se reflejan), para así acogerlo tal como él se muestra, como una presencia anónima y misteriosa. En el trabajo político de acogida a aquel que opera maniobras en su deseo, en su modo de lidiar con lo otro frente a la comunidad, el clínico ocupa, a su turno, la función de terapeuta, de aquel que sirve y ayuda en la producción de una acción, de una transformación. Ya cuando el clínico se ocupa de acoger y valorizar las diferentes identificaciones de los consultantes a las construcciones que constituyen para estos sus historicidades biográficas, él desempeña un cuidado antropológico. O, entonces, el clínico es ahora un cuidador, un cuidador de los vínculos diversos que los consultantes producen en relación a las historias, a los valores, a los pensamientos y a las instituciones que configuran para cada cual una forma de ver la sociabilidad. Resumiendo, del punto de vista ético el clínico es el analista de las formas por las cuales lo otro se manifiesta; del punto de vista político, él es el terapeuta, el auxiliar en la construcción de los deseos con los cuales los consultantes operan con lo otro en el campo del deseo; del punto de vista antropológico, es el cuidador, el interlocutor solidario en el compartir de los sentimientos, de los valores, de los pensamientos y de las instituciones que constituyen la identidad social del consultante y de sus grupos de referencia.

EL DESVÍO ÉTICO Y EL CLÍNICO COMO “ANALISTA DE LA FORMA”
Ética, como comentamos en ocasiones anteriores (Müller-Granzotto y Müller-Granzotto, 2007, 2012), dice relación no solo a la posición que adoptamos frente a la leyes, normas y costumbres de una comunidad. En su uso más arcaico, ética también significa la morada o el abrigo que ofrecemos a aquel o a aquello que, de otra manera, no tendría lugar. Se trata de una actitud de acogida al extraño, independientemente del origen, del destino o de las convicciones que posea. Apoyándonos en la terminología empleada en la teoría del self, denominamos a ese extraño de función id (o lo otro trascendental, conforme a la terminología que pedimos prestada de Merleau-Ponty). Y, por función id, entendemos el fondo impersonal de hábitos compartidos de manera no representada por los diferentes cuerpos (o sujetos agentes) en un contexto específico, no relacionado a otros. Incluso, aunque el extraño sea frecuentemente exigido, a punto de manifestarse como dimensión afectiva de la experiencia, el reconocimiento de su presencia no es un trabajo simple. De modo general, el lo otro está pugnando con representaciones sociales, ceremoniales lingüísticos y comportamentales que lo intentan proteger, esconder o separar. O, incluso está disimulado en la propia dificultad (resistencia) que el clínico experimenta frente a determinados asuntos. Este es el motivo por que la atención al extraño exige un trabajo de desvío, de deriva, que nos haga perder la lógica de las representaciones sociales en provecho del fondo de hábitos y respectivos efectos afectivos que puedan provocar. A ese trabajo de desvío lo denominamos de “análisis de la forma” (PHG, 1951), cuando importa “no tanto lo que está siendo experimentado, recordado, hecho, dicho, con que expresión facial, tono de voz, sintaxis, postura, afecto, omisión, consideración o falta de consideración para con la otra persona, etc. (cursiva de los autores).
El lo otro que surge en las entrelíneas de los discursos y de las acciones del clínico y del consultante no es un pensamiento, una acción o un objeto empírico que podamos rápidamente identificar. En general, lo otro tiene relación con algo que no se deja identificar, ni siquiera por las categorías clínicas que el clínico emplea usualmente en las sesiones de supervisión clínica. Se trata antes de la presencia de hábitos, de estilos de actuar y de pensar que atraviesan la visibilidad de los comportamientos, revelando la copresencia de un fondo invisible, ora en beneficio de una creación, ora en provecho de la inhibición del contacto. Se trata, por lo tanto, de la propia presencia de la función id como aquello que exige, de nuestros actos, trascender lo que es del orden de la personalidad.
Como manifestación de la función id en el campo clínico, lo otro es, simultáneamente, inédito y repetido. Inédito porque el efecto es producido por el comportamiento actual, en el cual se inscribe como bruma misteriosa, anónima. Repetido porque su anonimato es tributario de algo que se perdió, que no se muestra en la actualidad del comportamiento, pero se muestra como horizonte de pasado, origen presumible, orientación heredada. En otras palabras, los consultantes producen en la sesión respuestas que, aunque nunca antes vistas por el clínico, al mismo tiempo, trazan relaciones inactuales, como si estuviesen omitiendo o requiriendo otros gestos, otras palabras, otros significantes que, por consiguiente, son “intuidos” como hablantes, copresentes, provenientes de un lugar anónimo. Lo inédito y lo repetido son aquí apenas dos perfiles de ese otro irreductible e inesperado al que podríamos describir sirviéndonos de las palabras de Jacques Derrida (2004, p. 331-2) para hablar de la iterabilidad:
[...] no hay incompatibilidad entre la repetición y la novedad de lo que difiere. […] una diferencia siempre hace con que la repetición se desvíe. Llamo eso de iterabilidad, o surgimiento de lo otro (itara) en la reiteración. Lo singular siempre inaugura, él llega de todas maneras, de modo imprevisible, como llegador mismo, por medio de la repetición. Recientemente me enamoré por la expresión francesa “une fois pour toutes” [de una vez por todas]. Ella expresa con bastante economía el acontecimiento singular e irreversible de lo que solo sucede una vez y, por lo tanto, no se repite más. Pero, al mismo tiempo, ella abre para todas las sustituciones metonímicas que la llevarán para otro lugar. Lo inédito surge, quiérase o no, en la multiplicidad de las repeticiones. He ahí lo que suspende la oposición ingenua entre tradición y renovación, memoria y porvenir, reforma y revolución. La lógica de la iterabilidad arruina de antemano las garantías de tantos discursos, filosofías, ideologías…
Del punto de vista de la tarea ética de la clínica gestáltica, que es el encuentro con ese lo otro (inédito y repetido) que se manifiesta con y para la elaboración del consultante, cada sesión es única. Cada sesión, en este sentido, caracteriza una clínica. Y una de las principales virtudes de la teoría del self reside justamente en señalar esa singularidad de las vivencias de contacto que caracterizan la experiencia clínica. Con todo, del punto de vista clínico, de aquel que desea, mediante esa manifestación de lo otro con y para el consultante, encontrar un “lugar”, la elaboración de ese “lugar” es algo muy importante. Evidente que no se trata de elaborar tal lugar para el consultante. Se trata, para el clínico, de elaborarlo para sí; lo que él va a hacer en régimen de supervisión. En última instancia, tal elaboración busca favorecer la fluidez en el proceso analítico con el consultante.
El saldo de esa elaboración, sin embargo, también tiene otros efectos. En primer lugar, él hace al clínico reencontrar los límites de su propio proceso como consultante, reencontrarse con lo que es lo otro para él mismo. Ese reencuentro es muy importante, al final, el proceso analítico del clínico es su mejor instrumento de trabajo. Reencontrarlo es siempre una oportunidad de profundizarlo. En segundo lugar, sin embargo, la elaboración del “lugar” que el clínico ocupa en la relación con el consultante tiene un efecto teórico, que es la producción de un saber sobre la práctica clínica, saber ese en relación al cual la teoría del self no es más que una formulación, siendo eso lo que explica en qué sentido, para nosotros, esta teoría es un efecto de la práctica clínica, la elaboración del lugar ético ocupado por el clínico en la relación analítica que lo vincula al consultante.

EL DESVÍO POLÍTICO Y EL CLÍNICO COMO TERAPEUTA
Conforme ya intentamos mostrar en la obra Psicosis y sufrimiento (Müller-Granzotto y Müller-Granzotto, 2012), para la teoría del self, el significante “política” se vincula a la acción establecida por los sujetos de acto a fin de sintetizar, en una unidad presuntiva y virtual, la que llamamos de deseo, las representaciones sociales disponibles y los hábitos (excitaciones) desencadenados por las contingencias sociales presentes (demandas por representación social y por excitación). Objetivamos, en tal unidad presuntiva y virtual, estabilizar como horizonte de futuro el efecto que los hábitos puedan desencadenar en las representaciones sociales a las que estábamos identificados. Por consiguiente, política se relaciona con la tentativa (siempre inminente y nunca realizada de hecho) de dominar al interlocutor, nuestras representaciones sociales, hábitos y afectos espontáneamente surgidos, en un todo presuntivo que llamamos de deseo.
El desvío hacia la función política tal vez sea la práctica más usual en los espacios de actuación (consultorios, grupos, clínica ampliada, etc.) de los terapeutas Gestalt, y eso se debe, en parte, porque las cuestiones políticas son las que con más frecuencia llevan a los consultantes a buscar atendimiento clínico. Vivimos en una cultura pautada, por encima de todo, por relaciones políticas, en que la producción de riqueza depende directa y proporcionalmente de la capacidad de los sujetos para alienar sus acciones en proyectos ajenos. En este proceso de alienación, inclusive, raras son las veces que podemos operar con nuestros proyectos políticos (de producción de riqueza) libremente. El otro social al lado de quien alienamos nuestra acción, cada vez más se articula en los términos de un deseo dominante, que no admite competencia. Si por un momento creemos en la armonía política de los intereses de los sujetos en las democracias liberales, tal se debe a que no miramos para aquellos que los partícipes privilegiados de las democracias liberales engañan, explotan y dominan. Es fácil vincular la libertad de expresión y el libre mercado al desarrollo económico en Estados Unidos, cuando olvidamos a las poblaciones periféricas, cuya mano de obra, materia prima y endeudamiento (en virtud de la transferencia desigual de tecnología) sirven de fuente de riqueza. Cada vez más nuestro tiempo —la forma más codiciada de nuestro cuerpo— es alienado en proyectos de crecimiento económico que, efectivamente, no nos benefician. Si nosotros logramos conseguir salario, se trata de valores que no compran lo que producimos para recibirlo. Si alcanzamos a comprar bienes muebles e inmuebles, luego rápidamente nos damos cuenta que pagamos por ellos mucho más de lo que podemos disfrutar. Peor que eso, luego nos damos cuenta que más rentable que el bien adquirido es la deuda que contrajimos en su nombre. Por más que intentemos organizarnos de manera alternativa, como si pudiésemos ostentar nuestros deseos políticos (de crecimiento económico autónomo), rápidamente notamos que el poder avasallador del otro capitalista nos obliga a hacer negocio con él. Y, si creemos que la dominación a que estamos sujetos se reduce al plano macroeconómico, luego nos deparamos con el poder mediático de los dispositivos de saber, que controlan nuestro cotidiano, como si debiésemos vestirnos, alimentarnos, votar, divertirnos, amar según los intereses de los representantes de la cultura dominante, en general hombres blancos normales heterosexuales. Y no es de extrañar que, a cierta altura, nosotros nos quedemos postrados, deprimidos, desanimados, porque el lugar que el otro nos promete nunca conseguimos alcanzar.
Lo más perverso, sin embargo, son las estrategias de presión o convencimiento creadas por el otro capitalista. Si no logramos crecer, es porque no trabajamos lo suficiente o porque estamos enfermos y necesitamos ser tratados. Nuestro cuerpo —en especial nuestro tiempo— se vuelve objeto de control biopolítico. Necesitamos continuar participando de la lógica del consumo y, cuando no lo conseguimos, tenemos que someternos a tratamientos de salud que mucho recuerdan talleres de reparación de máquinas. La medicalización de los sentimientos, sobre todo de los negativos —como si la tristeza fuese una grave patología¬¬—, además de fundar un rentable mercado consumidor, nos impide poner en cuestión el malestar que vivimos por estar sujetos al deseo dominante del otro capitalista. En vez de indignarnos contra las políticas de cobranza abusiva de intereses, nos sentimos fracasados, deudores, gastadores compulsivos. Y es lamentable, como no raro, las prácticas clínicas sirven de agente de cristalización de esta cultura de dominación. Los “pacientes” y “clientes” son muchas veces inducidos a pensar que el malestar que sienten puede ser resuelto mediante una investigación de las relaciones parentales arcaicas, o del entrenamiento en técnicas de refuerzo de la autoestima, como si decir “Yo soy yo…” fuese una estrategia de fortalecimiento frente al otro, lo que, evidentemente, es un equívoco, por cuanto al otro capitalista lo que más le interesa es que yo crea en mi libertad, en mi capacidad o derecho de consumo. Si es verdad que ya en las relaciones parentales, modos de dominación son experimentados, eso no significa que las relaciones de sujeción vividas en la actualidad de la situación se expliquen por aquellas. Y el trabajo clínico con las vulnerabilidades políticas debe poder ir mucho más allá de la mera aplicación de ficciones metapsicológicas a los conflictos descritos por los consultantes. Uno de los principales temas de la terapia Gestalt de PHG fue justamente alertar sobre el hecho de que, si una forma arcaica (como una evitación, por ejemplo) sobrevive en la situación actual, eso se debe a la presencia de una demanda que la exige. La intervención clínica jamás puede ignorar el papel de los demandantes, el papel de los dispositivos de saber vehiculados por la prensa, la astucia del otro capitalista en hacernos exigir, de nosotros mismos, que seamos individuos exitosos.
De hecho, el desvío rumbo a la función de acto, rumbo a las fantasías o formulaciones políticas con que cada uno busca operar con lo otro (con las excitaciones) junto con los semejantes (organizados como otro social), necesita considerar la temática del poder. Al final, el poder es la manera como cada cual sujeta al semejante o se sujeta a las posibilidades de acción ofrecidas por él. Por consiguiente, cabe al clínico, ahora como terapeuta, orientar las relaciones de poder sobre las cuales el consultante habla. No se trata, sin embargo, de un “hablar sobre”. La manera más efectiva de que un clínico ayude a un consultante a apropiarse del modo como entre ambos se establece una relación de poder. Y esa puntuación debe poder estar apoyada en la propia actualidad de la vivencia clínica. En cierta medida, en la condición de terapeuta, el clínico gestáltico es aquel que ayuda al consultante a apropiarse del modo como entre ambos se establece una relación de poder. Solamente así el clínico podrá ayudar al consultante a responsabilizarse e implicarse en los procesos de cambio y acomodación en relación a aquellos que representan oportunidades y vulnerabilidades en la construcción de proyectos políticos. No se trata, como hace el psicoterapeuta, de encontrar las causas por las cuales el consultante fue sujetado al poder ajeno. Menos aún de establecer metas, como si el consultante las debiese cumplir acaso quisiese cambiar su condición política. El clínico gestáltico, haciendo las veces de un terapeuta, o acompañante terapéutico, privilegia el advenimiento de la espontaneidad creativa, provócala, sin comprender exactamente a qué punto ella lo conducirá, o la razón de que ella suceda así. Se trata, en este sentido, de una clínica del acto, de la acción, del acontecimiento.

EL DESVÍO ANTROPOLÓGICO Y EL CLÍNICO COMO CUIDADOR DE LAS RELACIONES VINCULARES
Antes de discutir el sentido clínico del desvío rumbo a la función personalidad —desvío este que define el trabajo clínico como una especie de cuidado—, cumple aclarar como entendemos el significante “antropología”. Para nuestros propósitos, él tiene su uso orientado por la manera crítica como leemos la antropología de Jean-Paul Sartre (1942). Basado en la idea de una fuente insuperable e irreductible —que es su teoría de la conciencia—, Sartre aboga que la unidad de esa conciencia siempre se produce en la trascendencia, como una existencia humana en situación, en la praxis histórica. La antropología, para él —entendida como el objeto primero del filosofar—, es el estudio de esa praxis histórica. Se trata de una investigación del hombre y del humano como la realización (siempre parcial) de la unidad de la conciencia en la trascendencia. Según Sartre (1966, p. 95):
[...] en cuanto interrogación sobre la praxis, la filosofía es al mismo tiempo interrogación sobre el hombre, quiere decir, sobre el sujeto totalizador de la historia. Poco importa que ese sujeto sea o no descentrado. Lo esencial no es lo que hizo del hombre, sino lo que él hace de lo que hicieron de él. Lo que se hizo del hombre son las estructuras, los conjuntos significantes que las ciencias humanas estudian. Lo que el hombre hace es la propia historia, la superación real de esas estructuras en una praxis totalizadora. La filosofía se sitúa en el espejo. La praxis es, en su movimiento, una totalización completa; pero nunca alcanza sino totalizaciones parciales, que serán a su vez superadas.
Para nuestros propósitos, adherimos a la comprensión de que, en la trascendencia (entendida como actualidad de la situación concreta y social), el hombre se ocupa de superar las estructuras en que reflexiona la unidad de su propia praxis histórica, y de que eso es lo mismo que hacer historia. Adherimos a la comprensión de que la antropología es el estudio de esa praxis histórica y de la tentativa humana de superarla. Pero, ni por eso, necesitamos gravar a la antropología con la suposición de que tal praxis, así como las tentativas de comprenderla y superarla, estaría animada por una fuente insuperable e irreductible, que es la conciencia (en la calidad de acción nadificadora, acto de libertad en curso).
Que haya tal fuente, o que ella se imponga en la praxis histórica como una exigencia trascendental de unificación, eso es para nosotros una cuestión a discutir y no un principio, como parece ser para Sartre. He ahí en qué sentido nosotros conjeturamos, como un eventual motivo (ausente, por ejemplo, en las formaciones psicóticas) que justificase las acciones de superación de las identidades históricamente constituidas, la copresencia de una alteridad radical, cual lo otro (o función id). Si es verdad que, en la praxis histórica, nos ocupamos de operar síntesis del pasado en dirección al futuro, tales síntesis no parecen ser consecuencia de una exigencia interna o trascendental, antes un efecto de la presencia del extraño que se nos presenta según la demanda del semejante. Preferimos pensar que la praxis histórica está motivada mucho antes por la alteridad que por una supuesta unidad que nos antecedería.
El desvío clínico rumbo a una dimensión antropológica es, para nosotros, el desvío en la dirección de aquellos temas en que se expresa una praxis histórica por la cual el consultante siente orgullo, honra, desprecio, miedo, en fin, con la cual está identificado. Evidente que no es fuera de lo común que los consultantes repitan historias (cual habla hablada) sin darse cuenta de los sentimientos que nutren por ellas, así como es común que las personas no se den cuenta cuanto están vinculadas a determinadas representaciones frecuentes en sus discursos. Si tales representaciones movilizasen al clínico —porque sintiese admiración por las ideas, valores, instituciones o conquistas mencionadas por los consultantes—, el profesional podría perfectamente compartir su sentimiento, abriendo para ambos una línea de comunicación en torno de algo que les es común y además de que se sienten hermanados. De esta forma el clínico trabajaría para la construcción de un vínculo eminentemente antropológico, en que la humanidad de cada cual podría reflexionarse.
Es cierto que, en general, los consultantes traen a las consultas vivencias de desconstrucción de los valores antropológicos a los que estaban identificados. O, incluso, suelen venir a las sesiones para hablar de aquello que perdieron, o que todavía no recibieron. Son discursos sobre vulnerabilidades antropológicas que estén viviendo, como en las situaciones en que necesitan lidiar con los efectos de accidentes y desastres, enfermedades y lutos. En estas ocasiones los consultantes a veces necesitan pedir ayuda, aunque además no sepan cómo, a quien o por qué hacerlo. Es ahí entonces que los clínicos son requeridos para actuar como cuidadores, más que como terapeutas o analistas, pues, en situaciones de vulnerabilidad antropológica, los sujetos están desprovistos de las condiciones humanas que les permitirían una praxis ejercida de forma autónoma. He ahí porque los clínicos, en la función de cuidadores, necesitan ir mucho más allá del consultorio, participando efectivamente de las situaciones puntuales que lo exigieren cerca del consultante. Los clínicos van a hospitales, notarías, albergues, acompañan a sus consultantes donde ellos estuvieren para, así, ayudarlos en la reconstrucción de sus humanidades. En cierta medida, el trabajo de los clínicos incorpora aspectos del trabajo del clínico dogmático, como si representase para el consultante los saberes y poderes de los cuales este estaría necesitando. Sin embargo, diferentemente del clínico dogmático, el clínico gestáltico (en la función de cuidador de los vínculos antropológicos) no ejercería ese saber, ya que su interés no es resolver el problema antropológico del consultante, no es hacer por él, representarlo de hecho. Se trata tan solo de auxiliarlo a reencontrar en sí la disponibilidad para al menos pedir ayuda, enterarse de lo que quiere y puede hacer, sirviéndose del clínico como auxiliar.
Por fin, vale decir que, incluso actuando como cuidador de las relaciones vinculares que constituyen la dimensión antropológica (o función personalidad) vivida por el consultante, eso no significa que las otras funciones del self no se hagan presente al clínico. Ellas están todas allí, en el campo de presencia que él comparte con el consultante. Y la elección de una o de otra es una construcción colectiva en el aquí y ahora de la situación clínica. Lo más importante es que el clínico esté disponible para el ejercicio del desvío, del paso de una dimensión a otra, siempre que la situación en el campo así lo exija, buscando favorecer una tolerancia ante la ambigüedad de cada cual, especialmente del mismo. Al final, tal como el consultante, también el clínico es una totalidad abierta, dividida, al mismo tiempo identificada a determinadas representaciones vehiculadas por los consultantes, ocupado con proyectos políticos nacidos en la relación clínica, afectado por algo extraño, cual lo otro.

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1. Marcos José Müller es doctor en Filosofía, profesor, orientador e investigador en la Universidad Federal de Santa Catarina, Brasil, psicólogo clínico y terapeuta gestáltico, con especial dedicación a la clínica de los ajustes psicóticos. Autor del libro Merleau-Ponty acerca da expresão (Porto Alegre: Edipucrs, 2001) y coautor de Fenomenología y Terapia Gestalt (Santiago de Chile: Cuatro Vientos, 2009), Clínicas Gestálticas (São Paulo: Summus, 2012), Psicosis y Creación (São Paulo: Summus, 2013) y Biopoder, Totalitarismo y la Clínica del Sufrimeiento (São Paulo: Summus, 2013).

2. Rosane Lorena Granzotto es magíster en Filosofía, psicóloga clínica, terapeuta gestáltica, directora del Instituto Granzotto de Psicología Clínica Gestáltica en Florianópolis, Brasil, donde desarrolla la clínica con adultos y parejas e imparte cursos de Especialización en Terapia Gestalt. Coautora de Fenomenología y Terapia Gestalt (Santiago de Chile: Cuatro Vientos, 2009), Clínicas Gestálticas (São Paulo: Summus, 2012), Psicosis y Creación (São Paulo: Summus, 2013) y Biopoder, Totalitarismo y la Clínica del Sufrimiento (São Paulo: Summus, 2013).

3. Garcia-Roza (1995, p. 67), por ejemplo, recuerda que, en los Tres ensayos sobre la sexualidad (1905d), al definir la pulsión como “desvío”, Freud nos autoriza a recorrer la historia de la filosofía, en la cual encontraremos otros usos semejantes para la noción de “desvío”. Garcia-Roza (2003, p. 18) tiene aquí presente la noción de clinamen empleada por Lucrecio según Epicuro.

4. Garcia-Roza (1995, p. 69) dice que “no haría ninguna restricción para que se pensase la pulsión como desvío, siempre que se definiese previamente como ese desvío está siendo definido. Una cosa es que definamos el desvío como desvío del orden, esto es, como secundario en relación a un orden que es primero; otra cosa es que definamos el desvío como siendo primero, desvío original. La filosofía nos ofrece un excelente ejemplo de esa diferencia: la diferencia entre las filosofías de Epicuro y de Lucrecio. En ambas la noción de desvío es fundamental – parenklesis para Epicuro y clinamen para Lucrecio”. Para Garcia-Roza, la noción freudiana de pulsión está relacionada a la segunda acepción de desvío, como veremos a continuación.

5. Conforme Ilya Prigogine (2005, p. 9), Lacan, en su obra tardía, también se sirve del significante clinamen para designar una especie de emergencia flotante de la letra como aquello que produce desvío en la cadena simbólica. Pero otros pensadores, como Gilles Deleuze y Michel Serres, recurrieron a esa noción con propósitos y usos distintos. En un anexo de la Lógica del sentido, Deleuze (1969) emplea la noción de clinamen con el objetivo de subrayar que el pensamiento es tan veloz como el quantum mi- nimum de tiempo. Michel Serres (1977), a su vez, hace uso de esa misma noción para hacer frente a la hegemonía de la mecánica (de los sólidos) en la razón occidental, la cual es isomórfica a la violencia antropológica que caracteriza la historia. Interesa a Michel Serres mostrar que ya en Lucrecio podemos localizar la idea de un torbellino que, cual preorden, constituye el mundo de manera no teleológica.
Para Batista (2007), “Tito Lucrecio Caro (95-54 a.C.) es conocido por haber escrito aquel que es, tal vez, el mayor poema filosófico de la Antigüedad: el De rerum natura (Sobre la naturaleza de las cosas). A partir de una tradición de pensamiento que remonta a Leucipo y Demócrito y, sobre todo, a Epicuro, Lucrecio retoma y profundiza las tesis atomistas que colocan a la casualidad como fuerza creadora de todas las cosas. Así, el pensamiento de Lucrecio es, pues, un naturalismo ocupado en pensar la naturaleza no como una potencia exterior que informa la materia, sino como la naturaleza de las cosas (rerum) en su existencia dispersa. Pero el naturalismo de Lucrecio es también una ética que afirma al placer como bien máximo e identificado a la imperturbabilidad de los dioses (tranquilla pax; placida pax; summa pax). Es a través de ese camino que el tema del comportamiento regular de la naturaleza reaparece en el poema: el conocimiento de la naturaleza es la condición necesaria para la identificación de lo falso y de los temores que de él resultan. Vale decir, de este modo, que el pensamiento de Lucrecio no prescinde de la afirmación de un tipo de necesidad natural. Así, se puede afirmar que la articulación entre los temas aparentemente divergentes de una casualidad soberana y de una necesidad natural es el leitmotiv del De rerum natura. Lucrecio piensa la estabilidad y el equilibrio no como formas primeras que anteceden la fundación de la naturaleza de las cosas, sino como efectos solidarios de un movimiento universal que comporta en una misma medida lo inestable y el desequilibrio”.
Para algunos investigadores, como Motta Pessanha (1988), el término “desvío”/clinamen ya está presente en las formulaciones de Epicuro, no obstante tantos otros, como Rosset (1989) y Vernant (1986), defiendan que se trata de una lectura que Lucrecio hizo respecto del desvío/parenklesis, este, sí, presente en Epicuro. De todos modo, bajo la forma de clinamen o parenklesis, en Epicuro, la noción de “desvío” traduce la manera como en su física los átomos divergen de su propia orientación natural, lo que les propicia el encuentro y la aglomeración. Separándose del rígido mecanicismo de la física de los primeros atomistas, Epicuro (de acuerdo con Pessanha, 1988, p. XI) afirma que, sin ninguna razón mecánica, los átomos, en cualquier momento de sus trayectorias verticales, pueden desviarse y chocar. El desvío aparece, entonces, como la introducción del arbitrio y del imponderable en un juego de fuerzas estrictamente mecánico. Incluso conforme con

GRANZOTTO, R.L; MÜLLER, M.J. \"Rudimentos para una teoría de génesis social de las funciones del self y de los ajustes creadores en el universo infantil. Revista de Terapia Gestalt. Madrid, Asociación Española de Terapia Gestalt, n. 32 (Cambio Social), 2012.

1. Teoría del desarrollo infanto-juvenil en la literatura Gestáltica.

A pesar de los esfuerzos de Michel Vincent Miller (1999) y Gordon Wheeler (2002, 1998), en los Estados Unidos de América, en el sentido de producir una teoría Gestáltica del desarrollo infantil inspirada en categorías fenomenológicas, muy próxima de aquellas empleadas en la obra Terapia Gestalt (1951), no hay, en la literatura de la terapia gestáltica, una teoría del desarrollo infantil pensada a partir de la teoría del self; específicamente, en Brasil, se puede decir lo mismo. Tenemos excelentes profesionales y una tradición consolidada de intervención gestáltica en la clínica infanto-juvenil. Cometeríamos impagables injusticias si fuésemos a citar nombres, pues felizmente son muchos. Pero, infelizmente, en el campo de la producción bibliográfica, la cantidad de trabajos publicados no refleja la calidad de aquella tradición. En compensación, los trabajos efectivamente publicados son de altísimo nivel y demostraron la preocupación de los autores en el sentido de entregar, a los clínicos, una versión gestáltica de los procesos de desarrollo en el niño y en el adolescente. Nuestra propuesta aquí se limita a incrementar esa versión gestáltica introduciendo una lectura de los procesos de desarrollo en el niño y en el adolescente a la luz de la teoría del self.

En lo que se refiere a las publicaciones en nuestro vernáculo, vale destacar los artículos de Myriam Bove Fernandes (1998, 1996, 1995, 1992) y la disertación de Rosana Zanella (1992), los cuales postulan la necesidad de pensar la problemática del desarrollo a la luz del abordaje gestáltico, lo que significa decir, sin hacer concesiones a un tipo de lógica determinista, que haría de los primeros acontecimientos de la vida del niño el vector inquebrantable de lo que viniese a suceder después. Myriam y Rosana se valen de la obra Terapia Gestalt (1951) para elucidar una comprensión de desarrollo pensada a partir de la noción de auto regulación. Ninguna de ellas, sin embargo, incluye las categorías pertenecientes a la teoría del self, especialmente aquellas conocidas como funciones del self: función ello, función de acto (Yo) y función personalidad. Tal vez, porque el objetivo de sus trabajos consiste en pensar más la práctica clínica gestáltica y menos los temas metapsicológicos.
Aún en el campo de las publicaciones, debemos destacar el trabajo de Luciana Aguiar. A partir de su respetable práctica clínica, Luciana Aguiar lanzó, en 2005, una obra decisiva para el futuro de las investigaciones sobre la práctica clínica gestáltica en el universo infantil. Se trata del libro “Terapia Gestalt con niños: teoría y práctica” (2005), en el cual presenta, además de una detallada discusión sobre la sistemática de la clínica infantil y sobre las estrategias de intervención internacionalmente consagradas, una comprensión del desarrollo infantil a la luz de las categorías-clave de la terapia Gestáltica presentadas en las dos primeras partes de la obra Terapia Gestalt (1951), especialmente las nociones de awareness, contacto y ajuste creativo. Además, ella comprende un respetable esfuerzo de integración de las categorías diagnósticas empleadas por los renombrados terapeutas gestálticos en Brasil y el exterior, en el sentido de configurar una base de referencia para la actuación clínica con niños. No obstante ella citar, en el capítulo que se intitula “El desarrollo del ser humano bajo la perspectiva de la terapia Gestáltica”, la importancia de la noción gestáltica de self para comprender el desarrollo, ella tampoco utiliza las categorías específicas de la teoría del self, por ejemplo, las funciones elementales, cuyo génesis queremos ahora establecer.
En el ensayo que ahora presentamos, queremos unir fuerzas a las reflexiones de los colegas antes mencionados y de otros más, en el sentido de producir subsidios que puedan contribuir para la consolidación de una teoría gestáltica del desarrollo infanto-juvenil. No es nuestro interés por ahora reflexionar sobre la práctica clínica en el campo infantil, incluso por que tal trabajo ya fue magistralmente establecido por las autoras más arriba mencionadas. Nuestra modesta contribución pretende agregar, a las reflexiones hasta aquí establecidas, las categorías empleadas en la teoría del self. Se trata, en este primer ensayo, de comprender el génesis de las funciones de campo sobre las cuales estamos ocupándonos, precisamente, las funciones ello, función de acto (Yo), y función personalidad. Nuestra hipótesis es que ellas son adquisiciones del creciente proceso de socialización y de los conflictos que en él se establecen.
Así como Michel Vincent Miller, apoyaremos nuestra hipótesis en los cursos que Maurice Merleau-Ponty ofreció en La Sorbona, hasta 1949, en la cátedra de Psicología del Niño. Vamos a utilizar los interlocutores de Merleau-Ponty (especialmente Henri Wallon, Paul Guillaume, Elza Köller y Jacques Lacan) para conjeturar, en las diferentes regiones de desarrollo pensadas por los autores, el posible génesis de las funciones del self y los posibles ajustes que los niños puedan estar operando. Mientras tanto, no estaremos preocupados con la efectividad de esas regiones o de la cronología a ellas asociada. Ambas son hipótesis auxiliares que nos ayudarán a postular una ficción sobre como posiblemente el sistema-self se crea y se desarrolla como un emprendimiento social.

2. Incompletitud infantil, el semejante y los ajustes de llenado

Incluso siendo verdad que, hasta alrededor de los 6 meses después del nacimiento, cuando finalmente se completa el proceso de mielinización de las terminaciones nerviosas, el cuerpo humano todavía carece de un sistema consolidado de articulación entre el horizonte externo y el horizonte interno de sus vivencias perceptivas, él ya manifiesta los efectos de los procesos de socialización a los cuales está sometido. Lo que significa decir que, no obstante la indistinción entre el “interior” y el “exterior”, para el niño, el semejante es una dimensión notable y originaria, a partir y por medio de la cual produce ajustes creativos. Es verdad que esos ajustes todavía no caracterizan genuinas vivencias de contacto ente el pasado asimilado y el futuro de posibilidades. Incluso por que, a esa altura de la vida, el niño aún no tiene un fondo adquirido, no se presentó a él una función ello. Igualmente podemos comprender la vigencia de ciertas deliberaciones motoras, las cuales desde 1942 Fritz Perls reunía bajo el nombre de funciones de acto (Yo).
Conforme Merleau-Ponty (1949), Paul Guillaume se admira con los espasmos esbozados por un niño de 9 días cuando el campo visual del mismo es invadido por la fisonomía adulta. La diferencia en la intensidad de los movimientos esbozados ante el rostro humano o ante los objetos inanimados hace creer que, a pesar de la aparente “incompletitud” (Guillaume, apud Merleau-Ponty, 1949, p. 309), el niño es “sensible” a las apelaciones implícitas en el “modo de mirar” emprendidas por el adulto. Incluso siendo imposible afirmar que pueda distinguir entre el cuerpo propio y el cuerpo del semejante, las reacciones que esboza nos permiten conjeturar que él es afectado por demandas, las cuales, en ese momento, no son más que “voces”, “miradas”, “sensaciones táctiles” y otras tantas más vividas de manera parcial e impersonal. Con 2 meses de vida, incluso precisando fijar la mirada en la mano del adulto a quien observa, el niño ensaya en su propia mano los movimientos observados. Hay ya ahí sino una transitividad al menos una capacidad de trascendencia y, en ese sentido, de participación en el mundo. Más tarde, por vuelta de los 3 meses, ahora según el comentario de Henry Wallon (cfe Merleau-Ponty, 1949, p. 309), los niños gritan sometidos a un ambiente con muchas voces humanas, como si hubiesen sido “contaminados” por aquellos sonidos. Se trata de reacciones alucinatorias frente a acontecimientos que parecen exigir mucho más de lo que el niño puede ofrecer. Lo que evidencia, por un lado, la aparición primordial de una función creativa, solidaria a los eventos de campo que estén sucediendo, que es la función de acto (Yo); por otro, la aparición de un primer ajuste creativo, que es el llenado alucinatorio.
Ya en la obra Yo, Hambre y Agresión (1942) Fritz Perls abogaba a favor de la tesis de que hay, incluso para los recién nacidos, una función activa, no distinta de la propia actividad muscular, la cual denominaba de función Yo. En 1936, Perls presentó, en Checoslovaquia, con ocasión del Congreso Internacional de Psicoanálisis de aquel año, un trabajo que trataba de las resistencias orales. Su objetivo era mostrar, contra lo que era canon en la teoría psicoanalítica freudiana de la época, que incluso niños muy pequeños, en fase de formación de la dentición, ya estaban provistos de una capacidad de deliberación, independientemente de aquello que se suponía ser una pulsión o un instinto. Tal capacidad, además, precedería la formación del campo pulsional. Perls la denominó de “función Yo”. Nosotros sugerimos traducir por “función de acto”, considerando que la noción de “Yo” a que hace referencia Perls tiene relación con la capacidad de actuar, según la manera como Kurt Goldstein (1939) entendía la acción del organismo (o de las células) en el medio . Es por esto que, para Perls (1942), Yo (entendido como acto) corresponde a una función del organismo en el medio; en el sentido en que se considera que la respiración tiene relación con una función de los pulmones en el cambio de gases del organismo: “pulmones, gases y vapor son concretos, pero la función es abstracta –aunque real.” De la misma forma, “el Yo es igualmente una función del organismo” (p. 205), pero no una parte de él. Esa función, además, no estaría precedida por una orientación o “saber” previo; motivo por el cual, en el caso de los niños recién nacidos, las reacciones motoras (equivalentes de la propia función Yo) parecerían alucinatorias.
De hecho, en ese primer momento, en que la fisiología primaria del niño aún no consigue autorregularse integralmente, en que no hay para él un repertorio de hábitos adquiridos y, consecuentemente, una orientación intencional espontánea (awareness sensorial) la función de acto (Yo) opera de manera casi errática. Se trata de una especie de deliberación difusa. Ella es especialmente verificable cuando los niños están sometidos a los estímulos y a las demandas afectivas que los adultos formulan en la forma de “voz”, “mirada”, “toque”, en fin, gestos indistinguibles para el niño. Para luchar con esas demandas, la función de acto (Yo) alucina reacciones, por medio de varios expedientes desvinculados de las posibilidades o expectativas sociales, como el balbuceo, la ecolalia, el grito, el lloro, la fijación perceptiva, los espasmos musculares, entre otros. Tales reacciones caracterizan la primera versión de aquello que pasaremos a llamar de “ajustes de llenado”. Como todavía no está disponible para el niño un repertorio de hábitos adquiridos, como no hay un fondo formado y, en ese sentido, una función ello disponible, la función de acto (Yo) necesita alucinar el fondo a partir del cual podrá, sino responder, al menos establecer una forma de satisfacción posible frente a las demandas. Lo que significa que tales comportamientos alucinatorios no son, de forma alguna, patologías (las cuales debiésemos denominar de esquizofrenias infantiles) o desvíos en el desarrollo infantil. Son ajustes creativos, invenciones de la función de acto (Yo) para lidiar con aquello que se presenta más allá de las posibilidades materiales del niño en esa edad, precisamente, la demanda afectiva. La característica fundamental de esos ajustes consiste en la habilidad de la función de acto (Yo) para llenar la angustia (resultante de la ausencia de respuestas frente a las demandas) por medio de sonidos, movimientos y conductas de fijación, los cuales harían las veces de la función ello hasta entonces ausente.
Es posible, entre tanto, que la función de acto (en el niño hasta los 6 años) busque apartar o aniquilar las demandas – las cuales, en ese momento, se presentan a él de forma incoativa y sin cualquier sentido. La función de acto (Yo) puede hacerlo por medio del aislamiento social o mutismo de comportamiento, los cuales, acaso sean muy frecuentes y se prolonguen después de los primeros 36 meses de vida, pueden constituir pronóstico de autismo. Aún que no tengan a su disposición, tal como suele suceder a los ajustes de llenado, un fondo de hábitos disponible, diferentemente de estos, los ajustes producidos por los niños autistas – y que llamaremos de ajustes de aislamiento - no se ocupan de producir respuestas a las demandas. Para los niños con menos de 1 año, los ajustes de aislamiento cumplen tan solamente la función de aniquilar las demandas, de suerte a librarlos de la tensión causada por no poder identificar lo que de ellos se quiere. La persistencia de las respuestas de aislamiento después de eso indica que una condición especial se estableció, precisamente, que posiblemente estemos ante una personalidad autista.

3. La sociabilidad incontinente, el “pequeño otro” y los ajustes delirantes

Entre los seis meses y el primer año de vida, tenemos aquello que, hipotéticamente, podríamos considerar ser la primera etapa de la primera infancia –a la cual Wallon (conforme Merleau-Ponty, 1949, p. 310) denomina de vivencia de la “sociabilidad incontinente”. Diferentemente de antes, el cuerpo-propio y el del semejante ya no son más, para el niño, indistintos y con función social incipiente. Posiblemente como resultado de la maduración de la fisiología primaria, el niño parece circular entre los horizontes interno y externo de sus vivencias perceptivas, aún no como un individuo consciente de sí, pero como habitante de un sistema de equivalencias motoras intercambiables. Del mismo modo como puede ver el dedo herido y sentirlo doliendo, él parece entregado a un transitivismo primordial, vivido, sobre todo, en las relaciones parentales, como si pudiese asumir el cuerpo de los padres, de suerte a confiar a ellos el dolor que estuviese sintiendo. Las demandas ya no son tan indistinguibles como antes. Las voces, los mirares, los toques están interligados en la forma de juegos sociales elementales, frente a los cuales el niño tiene una actitud ambivalente. En cierta medida, podemos decir que la demanda que el niño comienza a enfrentar es la inclusión en un vínculo comunitario también conocido como “juego”.
La principal diferencia, entre tanto, en relación al momento de la descompletitud inicial, tal vez consista en el hecho de que, más que la demanda calificada, el niño es ahora sorprendido por la expresión, en sí, de algo que él mismo ni siquiera escogió, precisamente, el hábito motor. Como que, por milagro, los primeros pasos –antes ensayados- dan lugar a un andar “automático”, aunque tropezando, como si esa habilidad ya estuviese allí desde siempre, tan sólo aguardando la maduración ósea y muscular. El niño comienza a vivir la autodonación de hábitos motores de todo orden, los cuales constituyen la primera aparición de aquello que llamamos de “excitación disponible” o “función ello”. Se trata, en verdad, de la primera manifestación del mundo intersubjetivo no más como dato de realidad, sino como “pequeño Otro”, fondo de orientación sensorial o awareness sensorial. Hay ahora para el niño (en cuanto función de acto) una espontaneidad que se impone no más a partir de las demandas en la realidad, sino a partir de una inactualidad sobre la cual ni él ni nadie tiene control. El “mirar”, la “voz” el “gemido”, en fin, las demandas afectivas que antes se presentaban al niño a partir de los gestos de los semejantes; tales demandas ahora parecen brotar en el propio cuerpo del niño, como capricho, maña, carácter, en fin, modo de gozo: repetición espontánea de las marcas del mundo natural y social en su pequeño cuerpo. Ese es el sentido profundo de la noción de hábito motor y la razón por la cual, más que una adquisición anatomofisiológica o cognitiva, él es una adquisición afectiva o, simplemente una excitación. Tal significa decir –permítannos este paréntesis- que el hábito motor, así como todos los hábitos, no son representaciones de contenidos determinados. Cuando mucho, podríamos decir que ellos son vestigios de contenidos que no existen más y que nunca sabremos si existieron. Se trata del rastro de un origen para siempre perdido y que, por consiguiente, no autoriza cualquier suerte de interpretación que pudiese restituir al hábito su sentido o valor. Desde este punto de vista, un hábito no es cierto o equivocado, bueno o malo, agradable o desagradable, placentero o aburrido. Él es un modo de gozo. Un modo de gozo que puede presentarse como motivo indescifrable de aquello que, por tantos otros motivos, nosotros nos decidimos transformar, decidimos hacer.
La copresencia de ese pequeño Otro, que es la excitación en cuanto hábito motor, no es por sí sólo garantía de que nuestra acción pueda presentarse investida de una orientación. Tal es perfectamente verificable junto a los niños entre los 6 meses y 1 año, aproximadamente. Sucede que, en ese momento, pero no exclusivamente en él, somos atravesados por una miríada de hábitos que se donan como orientación, al punto de perdernos. A la orilla del mar, el pequeño caminante no consigue decidir entre correr, saltar, enterrar los pies en la arena, gritar o chutar la pequeña ola que alcanza su canilla. Más que las posibilidades viabilizadas por la realidad material en que está inserido, el niño ahora tiene acceso a múltiples orientaciones motoras que lo sorprenden y que, en aquel momento, valen para él como excitaciones. Dividido entre tantas orientaciones parece atrapado. La insistencia del padre y de la madre para que coloque las conchitas en el balde de plástico no parece concentrarlo. El límite entre la diversión y la angustia es tenue. Rápidamente el entusiasmo se transforma en irritación. Se levanta, eleva los brazos, grita para el mar, apunta con el dedo en la dirección del horizonte, mira para el cielo, cae sentado… Vuelve a levantarse, cae nuevamente…; y esa secuencia parece divertirlo. El juego que finalmente encuentra no está fundado en una orientación entregada por la realidad (por el padre, por la madre…), ni siquiera por un hábito dominante (que denunciase una preferencia). Se trata de una invención delirante, de una “asociación mágica” entre varios modos de jugar que lo invaden. Lo que nos permite reconocer, junto a los niños de alrededor de un año, la vigencia de un tipo específico de ajuste, que es el “delirio asociativo y disociativo”.
Antes de ocuparse de las posibilidades abiertas por la realidad material, la función de acto (en el niño de alrededor de un año) parece articular, entre sí, los varios hábitos que se presentan como fondo de excitaciones. La impresión que tenemos al observar los niños en esa edad es que las excitaciones que los alcanzan no tienen, entre sí, una organización espontánea, tal como aquella que nos permite reconocer la dominancia de un hábito sobre otro, o una jerarquía de preferencias. Como veremos a seguir, niños a partir de los 6 meses ya comienzan a demostrar cierto “estilo” de comportamiento, como si determinados hábitos volvieran con más frecuencia, de suerte que podemos afirmar que tienen ciertas preferencias. Pero, tal como en el caso del niño a la orilla del mar, todo pasa como si la función de acto (Yo) en él no pudiese contar con una orientación única. En otras palabras, todo pasa como si el fondo de excitaciones (que se donó al niño) no tuviese organización propia. En vez de una, vendrían muchas excitaciones, todas ellas con la misma intensidad o grado de importancia; lo que forzaría a la función de acto (Yo) a declinar de explotar la realidad para primero escoger, entre las excitaciones, cual es la más importante. O, incluso, es como si la función de acto (Yo) en el niño necesitase, antes de jugar, articular la curiosidad en torno de las mismas posibilidades (delirio asociativo). O, tal vez, distribuir la curiosidad entre tantas posibilidades hasta que restase una (delirio disociativo). Esas formaciones, que mucho recuerdan los cuadros de paranoia, no son, conforme nuestro entendimiento, patologías, sino ajustes posibles de cara a una probable desarticulación del fondo.

4. Sociabilidad sincrética y las primeras vivencias de contacto con awareness: ajustes ingenuos

De aquí no se sigue que, en su primer año de vida, los niños sean incapaces de establecer experiencias de contacto fluidas entre el fondo que paulatinamente se va formando y las posibilidades abiertas por el medio social y natural. En otras palabras, en su primer año de vida, los niños no producen sólo ajustes autistas, alucinatorios o delirantes. A partir de los 6 meses algunos hábitos se imponen como orientación dominante e inauguran el primer episodio de aquello que, en TG, se denomina de experiencia de contacto con awareness sensorial. Veamos algunos ejemplos de esos ajustes.
Wallon (según Merleau-Ponty, 1949, p. 311) describe la experiencia de la “confianza” que niños con 6 meses tienen en relación a sus cuidadores. Cuando perciben, en sus ambientes de origen, la presencia de los padres, ellos inmediatamente asumen posturas y comportamientos que los colocan bajo los cuidados de aquellos: extienden los brazos en la dirección de sus cuidadores, emiten sonidos que denotan un tipo de intimidad ya desenvuelta en relación a aquellos… Los comportamientos no son peculiares, como en el caso de los ajustes de llenado. Tampoco necesitan ser ensayados, como en el caso de los ajustes delirantes. Ellos suceden como si fuesen precedidos por un “saber hacer” inconsciente, que no es sino el fondo incipiente de excitaciones disponibles o, lo que es la misma cosa, hábito motor.
Ya a los siete meses se muestran capaces de solicitar, de sus cuidadores, una ligación corporal tal que excluye cualquier posibilidad de división entre ambos. He ahí, entonces, la primera versión de los celos, de los “celos “primarios”, que es equivalente al transitivismo motor entre el niño y su cuidador principal. Desde ese punto de vista, los celos primarios son un ajuste creativo cuya característica es la recreación del hábito de dominancia del cuerpo del semejante por medio del mirar, de la voz y del toque. Ante la presencia de un tercero, el niño retoma ese hábito de dominancia, de suerte a impedir cualquier forma de división entre él y su cuidador. No se trata todavía de una identificación personalista, de un narcisismo imaginário, que pudiese ser vivido como uma representación de si junto al cuerpo del semejante, como veremos un poco más adelante. Se trata, sí, de un narcisismo fundamental, fundado en la acción y, en ese sentido, imposible de ser representado o alienado en una imagen o valor social. Razón por la cual, cuando retorna en las relaciones adultas no puede ser removido, sublimado, en fin, elaborado por otros medios que no la propia repetición de la posesión.
Ya a partir de los 9 meses, cree Wallon (conforme Merleau-Ponty, 1949, p. 318), el niño parece capaz de retomar, en la forma de “crueldad”, la vivencia de la separación en relación a su cuidador principal. En cuanto ajuste creativo, la crueldad es una especie de “encantamiento sufridor” por alguien que da al niño la oportunidad de revivir la “sensación” de exclusión. En los términos de un comportamiento agresivo, el niño retoma –junto a alguien por quien alimenta simpatía- el gesto de separación infligido por el cuidador. Esta vez, sin embargo, es él quien excluye. Sus acciones no son justificadas por razones o motivos, tampoco acompañadas de evaluaciones o valores, no obstante la insistencia del medio social para que se responsabilice moralmente: pobrecito del otro niño, no haga eso que es feo… en verdad, aún no hay, para el niño en esta edad, cualquier tipo de awareness reflexiva sobre lo que él esté haciendo, o sobre la vinculación entre sus actos (en la actualidad de la situación) y las vivencias de separación en relación a sus cuidadores. Se trata solamente de una excitación que exige repetición y que continúa produciendo efectos por toda la vida. Si, en el niño con un poco más de un año, ella aparece en las conductas agresivas como el chute, la mordida, la palmada, o en conductas de exclusión física, como el huir, o esconderse, en los adultos, la crueldad reaparece en un sinnúmero de comportamientos, aunque frecuentemente acompañados de evaluaciones morales (introyectos).
La crueldad infantil, además, abre espacio para que, alrededor de los 14 meses, el niño pueda alcanzar una primera experiencia de sí, una primera apropiación de sí, que es el “reconocimiento a través de la dominancia”, el reconocimiento por medio del “poder’. No se trata, todavía de una relación imaginaria, en que el niño pudiese reconocer su ser en una imagen en la cual se alienase. El reconocimiento de sí no es diferente del reconocimiento de las posibilidades que él tiene en relación a ese otro cuerpo que se presenta para él en la realidad, que es el cuerpo del semejante. El niño todavía no se identifica a ese cuerpo, pero quiere dominarlo. El ser que quiere reconocerse es el ser de la dominancia. Y el medio que tal ser dispone para hacerlo es justamente la disponibilidad de las posibilidades dominadas. Lo que nos lleva a la manera como Friedrich Hegel, en la obra Fenomenología del Espíritu (1808), aborda la problemática del reconocimiento de la conciencia por medio de la antológica figuración de la “relación dialéctica entre el señor y el esclavo” (o, según el propio Hegel: independencia y dependencia de la consciencia de sí: dominación y esclavitud). Comentando Wallon, Merleau-Ponty (1949, p. 318) va a decir que la experiencia de “reconocimiento por la dominancia” es, simultáneamente, la comprensión de una “falta de poder” frente al semejante. Tal como en Hegel para quien el señor sólo puede reconocerse como señor por medio del consentimiento del esclavo, el cual a su vez, por consentir la dominancia al señor se niega a sí mismo, de suerte a inviabilizarse y por consiguiente al propio señor, que así se descubre en falta en relación a aquel que lo podría reconocer y consecuentemente, en relación a sí mismo; también para el niño, el reconocimiento de su propio poder pasa por la constatación de que el semejante, generalmente alguien tres meses menor, a él se debe someter. Pero eso implica, de parte del niño menor, una renuncia a su propio ser, y por consecuencia, la interdicción del reconocimiento que el niño mayor podría alcanzar. Junto a la negatividad del semejante (niño menor) el niño (mayor) descubre su propia negatividad. Luego, él tal como el señor hegeliano, necesita dedicarse a un nuevo semejante y, así, sucesivamente; lo que abre la cadena de desplazamientos metonímicos que define el deseo fluido. La vivencia del reconocimiento, en verdad, es sólo la experiencia del deseo de reconocimiento, la cual es infinita.
En la experiencia del deseo de reconocimiento no imaginario, de la misma forma, el niño experimenta su propia parcialidad frente a la presencia del semejante y, por ese medio, lo que en adelante va a exprimir como sexualidad. Esta no es más que el reconocimiento, en la forma de una tensión corporal, de la presencia siempre inminente del cuerpo del semejante, al cual se quiere dominar. Sexualidad, en este sentido, no tiene relación a determinado órgano o sistema corporal, pero la movilización motora y sensible del niño en relación a la posibilidad de hacerse con el cuerpo del semejante. La sexualidad, en este sentido, puede ser vivida de múltiples formas, pero siempre como una postura corporal frente a aquello que escapa al dominio, precisamente, el cuerpo del semejante. Además, hay en esa experiencia una suerte de frustración. Al final, el niño nunca consigue alcanzar algo que pudiese dominar integralmente. Más allá de la experiencia de los celos, en la cual experimenta un rompimiento en su vínculo con el cuidador, en la experiencia del deseo (reconocimiento por medio de la dominancia) el niño se depara con su propio límite, con su dependencia en relación al semejante. Se trata de pequeñas vivencias de frustración, las cuales, en la medida que se intensifican, van a constituir la base para que, más tarde, después de los tres años, el niño delibere la inhibición de su propio fondo de excitaciones. Las frustraciones, en este sentido, constituyen el génesis de los ajustes de evitación que, a partir de los tres años, se volverán muy frecuentes en los comportamientos de los niños. Trataremos de eso un poco más adelante.
Por ahora, vale recapitular que: confianza, celos primarios, crueldad y deseo (reconocimiento a través de la dominancia) son ejemplos de experiencias de contacto en que, a parir de un hábito adquirido, se produce un ajuste fluido, al cual Wallon –y, a la zaga de él, Merleau-Ponty (1949)- denomina de sociabilidad sincrética. En estas experiencias, en que el niño opera, junto a las posibilidades ofrecidas por la actualidad social, como un fondo de excitaciones disponibles –sin necesitar antes llenarlo o delirarlo-, verificamos la presencia de las dos primeras funciones elementales de un sistema-self, que son la función de acto (Yo) y la función ello. Mas, en ninguna de aquellas experiencias, ni siquiera en la experiencia de deseo (reconocimiento por dominancia), verificamos la presencia de la función personalidad. Esta es una adquisición tardía, la cual depende de la autodonación para el niño, de hábitos lenguajeros. En otras palabras: es preciso que la función ello, más allá de los hábitos motores, ahora entregue, a la función de acto (Yo), una orientación lenguajera. Solamente de esa manera la función de acto (Yo) podrá reconocer aquello sin lo que una personalidad no puede nacer, a saber, el “Gran Otro”.

5. El Gran Otro, el espejo y la formación de la personalidad

A partir del primer año de vida, Wallon cree (cfe Merleau-Ponty, 1949), los procesos de socialización vividos por los infantes se intensifican enormemente. Además de los cuidadores, otras personas comienzan a ser parte del mundo del niño y sobre todo, otros hábitos comienzan a donarse para él como “fondo de excitaciones”. La función ello parece amplificarse, de suerte a incluir, más allá de los hábitos motores, formas eminentemente instituidas en las relaciones sociales, precisamente, las formas lenguajeras, sean ellas orales, visuales o tangibles, aparezcan ellas por medio de la voz, de ciertas formas de escrita o performance. Se trata, en verdad, de una segunda forma de presentación del “pequeño otro”, de una segunda caracterización del fondo de excitaciones, lo cual, a partir de ahora, cambiará para siempre la vida del niño. Al final, en la medida que él asume los muchos aspectos donados como forma lenguajera, el niño descubre la presencia de una dimensión hasta entonces insospechada en su vida: el Gran Otro. Revelado en los pensamientos, valores e instituciones humanas, más allá de la transitividad motora y lenguajera vivida hasta allí, el Gran Otro desafía al niño a nuevos ajustes y abre para él una nueva función de socialización: la personalidad vivida como narcisismo imaginario.
Es casi unánime entre los teóricos que se ocupan del desarrollo infantil que, alrededor de los 18 meses, los niños comienzan a experimentar un segundo gran “milagro” en sus vidas. Se inicia para ellos aquello que podríamos estar de acuerdo en llamar de segunda etapa de la primera infancia. Tal etapa coincide con el momento en que, más allá de los hábitos motores, los niños testifican en sí mismas el brote de las formas lenguajeras. No que, antes de eso, ellos ya no estuviesen a las vueltas de tales formas. Desde los primeros balbuceos (característicos de los ajustes de llenado) hasta los ensayos de lenguaje “privado” (típico ajuste de articulación de hábitos gestuales que aún no funcionan como lenguaje), los niños ya se ocupan con rudimentos lenguajeros. Pero estos no eran todavía hábitos disponibles. Cuando mucho, se trataba de hábitos motores no integrados al fondo de otros hábitos (lo que justificaría los esfuerzos delirantes de los niños con menos de 18 meses en el sentido de constituir un lenguaje “privado”). O, incluso, aquellos rudimentos serían datos producidos en la realidad social, verdaderas demandas por inclusión en el universo de ese juego complejo que es el lenguaje adulto. Pero, tal como sucedió antes a los niños de 6 meses en relación a los hábitos motores, los niños de alrededor de 18 meses son sorprendidos por la aparición de una segunda versión del “pequeño Otro”, el cual ahora emerge del fondo como hábito lenguajero para orientar el habla. Por cuenta de este nuevo hábito, de esta nueva versión del pequeño Otro, el habla en los niños parece ahora “verter” de sus bocas (tratándose de un niño que oye) o de sus manos (si fuesen niños sordos inseridos en una comunidad de practicantes del lenguaje de señales), sin que ellos tengan que primero ensayar los movimientos orales o manuales requeridos. Es como si, por un pase de magia, ellos comenzasen a entender el uso de ciertos modos de hablar, al punto de habilitarse para emplearlos en contextos diferentes. Por cuenta de la autodonación del pequeño otro, ahora como hábito lenguajero, la función ello (que se manifiesta a esos niños) sufre una gran ampliación, habilitando a los pequeños hablantes a participar de una práctica social que antes no comprendían de forma alguna, precisamente: los juegos de lenguaje con los cuales los adultos y los niños mayores cambian demandas especiales, que son aquellas referidas a ese tercer hasta entonces ausente de la vida de los pequeñitos: el Gran Otro.
De hecho, en cuanto todavía no hablan espontáneamente, los niños son indiferentes a los valores semánticos y a las significancias asociadas al acto motor de vociferar o gesticular. La expresión “Pancho” pronunciada por el niño de 14 meses en respuesta a la pregunta de su padre (“¿quien es mi hijo amado?”) no significa que el niño se haya “identificado” a ese nombre. Tanto es verdad que, la misma pregunta hecha en un contexto geográfico distinto (en la casa de los abuelos, por ejemplo), o la mención del nombre “Pancho” por parte de un familiar distante no tiene efecto sobre el niño. Mientras no comienza a hablar espontáneamente, él no consigue entender la demanda por identidad vehiculada por la pregunta de su cuidador. Pero cuando finalmente se vuelve sensible a los hábitos lenguajeros, cuando las formas lenguajeras comienzan a donarse espontáneamente y, sobre todo, cuando pasa a notar la diferencia en los modos del empleo de esas formas, el empleo inusitado que ellas reciben en la voz del semejante, el niño finalmente “ve” lo que hasta entonces era invisible: el “mentor” de las palabras, o “dueño” de las frases, la “cosa” por detrás o junto al nombre pronunciado, el “valor social” que las conductas lenguajeras (por ejemplo, los garabatos) puedan tener… En fin, el niño vislumbra el Gran Otro más allá de los expedientes motores y gestuales que constituían, hasta ahí, el transitivismo primordial vivido en la forma de múltiples ajustes irreflexivos, no posicionales de una identidad imaginaria. Si es verdad que, en la forma de la dominancia, el niño acababa por descubrir, más allá de sus tentativas de control motor, la inalienabilidad del semejante, a punto de pasar a desearlo, tal experiencia todavía no daba a él la dimensión de la autoría o, tal vez, de la “autonomía” presente a lo deseado por detrás de las hablas. Pero, ahora, el niño pasa a percibir que hay “alguien” que se mueve, que habla, que también desea. Hay por detrás de la pregunta dirigida a mí, alguien que quiere saber de mí y, probablemente, hay un “alguien que soy yo” por detrás de mi respuesta. El Gran Otro funda, para el niño, el “mundo humano” más allá de las relaciones sociales vividas hasta allí de manera sensorial, sin “interioridad” imaginaria. El Gran Otro introduce, para el niño, la demanda por identidad, implanta en su existencia motora la presunción de que hay, para ella misma, autoría.
Ese descubrimiento para el niño, es marcante. De ahora en adelante, él no va más simplemente a jugar, hablar, moverse. Él necesitará encontrar “alguien” que le haga comprender “el porqué” de lo que pasa. No le satisface más sólo hacer: es necesario que haya alguien (encarnación del Gran Otro) para confirmar la existencia de sí como autor del hecho. Es necesario el testimonio de la madre, del padre, del hermano, del primo, en fin, de cualquiera junto a quien él pueda encontrar a sí mismo. Las personas pasan a cumplir para él la función de espejo. Lo que no quiere decir que no tuviese en cuenta el espejo hace mucho tiempo.
Antes de los 6 meses, los niños no eran capaces de desempeñar, ante la imagen especular, otro comportamiento que no la fijación alucinatoria; después de esa edad, la imagen especular pasa a ser integrada en una serie de juegos asociativos, que incluyen el cuerpo tangible del propio niño. Pero la asociación entre la imagen de la mano y la mano ella-misma no es diferente de la asociación que el niño hace entre la imagen y la posible presencia de alguien por detrás del espejo físico. Sus reacciones, hasta un poco antes de la adquisición del lenguaje, no son muy diferentes de aquellas desempeñadas por los chimpancés, como bien observa Köhler (1927), según comentario de Merleau-Ponty (1949, p. 310-313): con 57 semanas “el hijo de Preyer pasa la mano por detrás del espejo y, descontento, le da la espalda (conducta comparable a la de los chimpancés)”. Antes de hablar, el niño espera del espejo físico una especie de abertura motora, como si tal objeto pudiese dar continuidad a la acción que él iniciara. Después de la adquisición del habla, el comportamiento del niño en relación al espejo cambia completamente. Él no se decepciona más con el hecho de no haber nadie atrás del espejo, o con el hecho de que él no tenga profundidad táctil. Es como si el espejo no necesitase más prolongar para el niño la acción que este implementara. El espejo simplemente debe hacer como las palabras: revelar donde está el correlato íntimo del Gran Otro, donde está la respuesta a la pregunta que el Gran Otro le formuló: “¿quién eres tú?”.
Podríamos elaborar teóricamente ese fenómeno diciendo que el pasar del espejo físico al espejo lingüístico es un ajuste creativo establecido por la función de acto (en el niño) para pelear con el Gran Otro (que pueda manifestarse junto a las formas lenguajeras empleadas en la realidad social o actualizadas por el niño a partir del fondo). No es el lenguaje que se volvió para el niño un espejo. En verdad, es el espejo que se volvió lenguaje. Y no sólo el espejo físico: toda la imagen (visual, sonora, tangible…) se transformó para el niño en un lenguaje, en una versión del Gran Otro y, en ese sentido, en una demanda por identidad. De ahora en adelante, cualquier animal que se pueda ver en la naturaleza, cualquier figura estampada en un libro de historias significará una pregunta, una especie de pedido dirigido al niño: “¿será que le gusto al gatito?... Mira mamá: el dibujo animado me está guiñando”.
La construcción de ese espejo, de la representación imagética del Gran Otro, ni siempre se da tan inmediatamente así. El Gran Otro ni siempre es una evidencia para el niño. Lo que posiblemente explica los múltiples ajustes de asociación y disociación que muchos niños hacen con las formas lenguajeras ya adquiridas y, en ese sentido, disponibles al uso. No obstante consiguiendo hablar, ellos todavía no “entienden” lo que están diciendo. O incluso: ellos se perciben diciendo algo que no consiguen comprender, como si el Gran Otro se disimulase, no apareciese por entero. Es ahí, entonces, que esos niños necesitan volver a los ajustes de asociación y disociación delirante. A la diferencia de antes, ellos no estableceran associaciones o divisiones en la realidad para así suspender los hábitos motores, o los rudimentos del habla que hubiesen surgido demás. Ahora hay también que simular al interlocutor em la otra punta de las formas lenguageras. Hay que simular el
Gran Otro; lo que nos conduce a creaciones peculiares, como la de un niño de 2 años: él quedaba de boca abierta frente al libro del hermano mayor, con la esperanza de que las palabras saltasen para dentro de ella y comenzasen a narrar la historia (tal como hizo el personaje Emilia en una de sus aventuras en el “Sitio do Pica-Pau Amarelo”, conforme a la ficción creada por Monteiro Lobato). O, entonces, como es mucho más frecuente, testificamos aquellas experiencias de construcción de un “amigo invisible, oculto…”, el cual no es más que un delirio asociativo en que los niños reúnen los elementos que podría dar sentido a lo que se quiere de ellos en los lazos sociales en que están debutando. Cuando tales asociaciones fallan, permaneciendo la demanda no identificada, el niño puede operar de suerte a intentar aniquilar las muchas significaciones lenguajeras de que dispone. Él entonces se ajusta de manera disociativa, lo que significa decir, de manera de aniquilar los vestigios del Gran Otro. Es el caso de una niña de 28 meses que levantaba la tapa del basurero y gritaba dentro del cesto, como si, de esa forma, todas las palabras pudiesen ser echadas fuera.
Y, aun para aquellos niños que han conseguido comprender la presencia del Gran Otro, tal no significa que las cosas hayan quedado más fáciles. Al final, ¡el Gran Otro quiere saber muchas cosas! Y no hay en el repertorio de formas lenguajeras que se actualizan para los niños con menos de 02 años tantos recursos. Dicho en otras palabras: puede suceder que el niño no encuentre, junto al pequeño otro que se presenta para sí, junto a las formas lenguajeras de que dispone como fondo de excitaciones. Una respuesta lista. Por consiguiente, la alternativa para él es producir esa respuesta. Para tanto, tendrá que pedir auxilio al propio Gran Otro; o, más precisamente, tendrá que pedir auxilio a algo que, en la realidad social, represente el Gran Otro. Ese recurso también es un tipo de ajuste creativo, al que llamamos de “identificación activa”.
La identificación activa es una especie de transición entre la acción creadora de la función de acto (Yo) y la alienación característica de la función personalidad; como veremos a seguir. En la identificación activa, el niño, en primer lugar, se asocia a un Gran Otro que le ayude a articular las formas lenguajeras de que dispone, de suerte a producir su propia identidad. Él, entonces, empresta la identidad de alguien –como en el caso del hijo de W. Stern: al nacer una hermana, él “se identifica con la hermana mayor y se atribuye el nombre de ella: cree, así, estar asumiendo características de ella” (Merleau-Ponty, 1949, p. 320). De esa forma, puede enfrentar la demanda que le ocurre como resultado de la menor: “¿qué es tener una hermana menor?”. Probablemente, la mayor supiese. Pero, en ningún momento, ese saber vuelve al hijo como una adquisición que él pudiese reconocer como suya. O, en sentido inverso, en ningún momento el niño entrega su ser a ese saber (tal como sucede cuando ya puede disponer de la función personalidad).
En la identificación activa, en segundo lugar, puede suceder que el niño no encuentre, en la realidad social en que esté inserida, una imagen a la cual pudiese asociarse para responder a la demanda del Gran Otro. En este caso, el niño puede “hacerse el muerto”, lo que caracteriza una desistencia frente al Gran Otro. Se trata de una identificación negativa, la que también podemos llamar de depresiva. Este es el caso del niño de 36 meses que, no encontrando algo que pudiese aclararle sobre los motivos de la madre haberse ido (al final, la madre había muerto), decidió dormir para siempre, lo que le ahorraría de pensar en la cuestión. Pero, tanto cuanto la identificación positiva, la identificación negativa es un tipo de ajuste creativo. Y en ambas, se trata de una tentativa de articulación de fondo de formas lenguajeras junto a una imagen ya dada en la realidad, sea ella viva o muerta, presente o ausente.
Pero, una vez que el niño tiene las respuestas, él alcanza la posibilidad de entregarse a tales respuestas, en una “identificación pasiva”, que es la “alienación”. Se establece aquí, la primera formación de la “función personalidad”. También para Perls, Hefferline y Goodman (1951, p. 200), la función personalidad es la alienación de nuestra existencia en una imagen, en una “réplica verbal’ de nosotros mismos. Las imágenes, las réplicas de nosotros mismos son asumidas como verdaderos “introyectos” que, de ahora en adelante, pasan a significar nuestra unidad imaginaria frente al semejante. En cierta medida, asumir un introyecto es ejercitar la función personalidad. Lo que trae para nosotros una consecuencia teórica bien importante, a saber, que la personalidad no tiene relación alguna con una substancia o identidad innata. Ella es una construcción sociolingüística, fruto de un paulatino proceso de alienación en una imagen construida de manera sociolingüística, lo que significa decir, construida por referencia a ese interlocutor tardío, que es la cultura, el universo de introyectos surgidos como Gran Otro en nuestras vidas.
La vivencia de la personalidad, entretanto, no debe ser confundida como una operación mental, desprovista del colorido emocional típico de los ajustes sincréticos. Al contrario, se trata de una experiencia que despierta el interés del niño y lo divierte. En este punto, vale recordar los comentarios que Merleau-Ponty hace al respecto de la apropiación lacaniana de la noción de espejo propuesta por Wallon (1945): la experiencia del espejo según Lacan (1949) es mucho más que la aprensión cognitiva de la propia imagen (conforme piensa Wallon). Se trata de una vivencia afectiva, que eleva nuestro narcisismo a la condición de objeto de la fruición. Al final, a partir del momento que adquirimos una imagen, nos volvemos espectáculo para nosotros mismos. O, en las palabras de Merleau-Ponty (1949, p. 315):
Es que se trata de una identificación en el sentido pleno que el análisis de a ese término, a saber, la transformación producida en el sujeto cuando él asume una imagen. El niño se vuelve capaz de ser espectador de sí mismo. Ya no es sólo un yo sentido, sino un espectáculo; es él alguien que puede ser mirado. La personalidad, antes de la imagen especular, es el ello. La imagen va a posibilitar otra visión de la personalidad (alguna cosa que se puede y debe ser), elemento primero de un superyo. Esto puede ser considerado como la adquisición de una nueva función; contemplación de sí, actitud narcisista, y por ese hecho asume una importancia capital (la cursiva es del autor).

Es por eso que, para el niño, ejercitar la función personalidad es experimentar una especie de amor propio, el cual, de aquí en adelante, se va a volver en una de las más importantes monedas de cambio social en el campo sociolingüístico. Pero ese amor propio nunca coincide integralmente con aquello que el niño hace o siente. Al final, se trata de una imagen construida como referencia del Gran Otro; se trata de un “introyecto” a partir de la cultura, conforme al lenguaje tradicional de la terapia gestáltica. En este sentido, no puede abarcar todo aquello que se manifiesta para el niño (el fondo de hábitos que se excitan o, simplemente, la función ello), menos aún equivaler tal y cual a la acción que el niño desempeña siempre de modo individual e intransferible (función de acto). Y es aquí, en esta pequeña diferencia entre las producciones de la función de acto (Yo) a partir de la función ello, por un lado, y los valores imaginarios de la función personalidad, por otro, la base de aquello que los teóricos del desarrollo infantil van a llamar de “crisis de los tres años”. Sin embargo, frente a esa pequeña diferencia entre las producciones de la función de acto (Yo) y los valores imaginarios de la función personalidad, frente a la posibilidad de eventuales conflictos entre lo que para sí mismo es una excitación o una identificación con el Gran Otro, el niño decide retraerse por entero, lo que significa, por un lado, inhibir sus excitaciones y, por otro, declinar de ciertas identificaciones. Veamos esto con más detalle en el ítem que sigue al cuadro síntesis de los conceptos empleados hasta aquí.

6. la crisis de los tres años

Los teóricos del desarrollo infantil tienen especial interés en el tercer año de un niño. La conquista de la autonomía motora y lenguajera, bien como la ampliación del circulo social; ambos factores nos podrían llevar a esperar un incremento en los ajustes sincréticos y en las relaciones imaginarias vinculadas al placer. Pero no es lo que generalmente sucede. El niño quiebra la lógica de un desarrollo lineal y progresivo y, paradojalmente, se retrae como si aquello que, antes, era atractivo y placentero, ahora, se vuelve algo amenazador y doloroso. Tal vez el cambio más significativo, conforme Elsa Köhler (1926) consista en el hecho de que, a los tres años, el niño deja de atribuir su cuerpo o su pensamiento a otros. ¿Qué es entonces lo que pasa?
De hecho, si observamos un niño de tres años notaremos que él dejó de confundirse con las situaciones (de vivencia transitiva) y con los papeles sociales (a los cuales estaba identificado). Ahora “él es alguien que está más allá de sus diferentes situaciones”, bien como “más allá de los diferentes papeles” asumidos a partir de su alienación junto al Gran Otro (Merleau-Ponty, 1949, p. 332). Si es verdad que, por cuenta de la función personalidad, él consiguió hacer de sí mismo un espectáculo, de aquí en adelante no puede más ser público. La transitividad gozosa de las vivencias sincréticas, por un lado, y el placer y el desplacer implicado en el narcisismo imaginario, por otro, no pueden más ser compartidos. De ahora en adelante, todo pasa como si él debiese “representarse una situación en vez de sólo vivir en ella”. El habla no parece más vinculada a la acción e incluso su atención se traslada: “él realizando su acto” se vuelve “él viéndose actuar”. (Merleau-Ponty, 1949, p. 322).
En lo que dice respecto a la participación del semejante en sus actividades, el niño antes dejaba explícito que él necesitaba ser ayudado por un cuerpo auxiliar (fuese él alucinado, delirado, activamente escogido por un acto de identificación o disponible en una vivencia de contacto fluido). O, entonces, en los casos en que hubiese logrado una función personalidad, él dejaba explícito que necesitaba de alguien que encarnase la demanda por identidad (que caracteriza el Gran Otro). Pero, ahora, el niño parece preferir deliberar solo. Por cuenta de esto, reacciona al mirar ajeno de modo diferente: si antes de los tres años, él se sentía encorajado, a partir de los tres años, la sensación de estar siendo mirado causa en él mucha molestia. Si estuviese en el medio de un juego y fuese descubierto por tal mirar, el niño simplemente interrumpe lo que está haciendo. El mirar del semejante no es más una oportunidad para la ampliación de las posibilidades motoras, eminentemente lúdicas, tampoco ocasión para la vivencia del autoreconocimiento narcisista. Ante aquel mirar el niño ya no se siente más encorajado, confirmado. Él se siente compungido.
Y no se trata de vergüenza, como bien observa Merleau-Ponty (1949, p. 323): “(n)o se debe confundir compungido de ser mirado con vergüenza (vergüenza de la desnudez, por ejemplo, que sólo aparece por vuelta de los seis años) o con el miedo de ser reprendido”. Al final, el “compungimiento de ser mirado” es un acto, una acción que el niño inflinge a sí mismo o al semejante con el objetivo de interrumpir la situación que este siendo vivida, sea ella transitiva o imaginaria. Se trata, en este sentido, de un rechazo de sí o de una supresión del semejante. Tales actitudes no implican pedidos dirigidos a alguien; como en el caso de la vergüenza y del miedo. Estos últimos son procesos más complejos, que sólo algunos años más tarde posiblemente adquirirán en el niño una forma estabilizada. Ellos consisten en pedidos dirigidos al semejante con el propósito de implicarlo en la situación que se está viviendo. Avergonzarme, en este sentido, es confesar que me siento identificado al semejante en aquello que posiblemente rechazo en él. El miedo de la reprensión, de la misma forma, es una manera modificada, invertida, de decir a alguien que lo repruebo. Conforme veremos a seguir, vergüenza y miedo son dos tipos de ajustes creativos de evitación, típicos de los comportamientos neuróticos.
Sin embargo, el hecho de que a los tres años el niño aparentemente decline de ajustarse sincréticamente a los juegos que estén siendo desempeñados en el lazo social, o recuse el placer que pueda venir del hecho de él asumir una imagen, un papel, una personalidad frente a las demandas sociales, no significa, en hipótesis alguna, que él haya perdido esas habilidades. La función del acto y la función personalidad en el niño no desaparecen. ¿Qué es lo que sucede entonces? Hay para esa cuestión, diferentes respuestas, que no nos proponemos investigar. Incluso por que, la casi totalidad de ellas, se ocupa de producir una ficción en torno de determinados “hechos” que pudiesen explicar el retraimiento en las acciones y en las representaciones imaginarias del niño. Y para que no tengamos de pelear con la tarea infinita de rechazo de los contraejemplos que alguien pudiese recordar, preferimos establecer la analítica de la forma como las funciones de self en el niño puedan estar operando. Nuestra hipótesis es que tal vez se haya establecido un conflicto entre las funciones superiores, en los moldes de los conflictos que Freud (1923b, 1924), en su segunda tópica, reconoció haber entre el Ello y el Yo (de suerte a desencadenar una psicosis) y el Yo y el Superyo (los que nos llevaría a la neurosis); aunque los operadores de la segunda tópica freudiana (Ello, Yo y Superyo) no tienen equivalencia con las funciones del sistema self (función ello, función de acto y función personalidad). Para ser más precisos, tal vez debiésemos decir que, para los niños con aproximadamente tres años, las producciones de la función de acto (los ajustes en general, especialmente los ajustes fluidos o sincréticos) podrían entrar en ruta de colisión con las identificaciones imaginarias al Gran Otro producidas en cuanto función personalidad. Tal conflicto podría establecerse, hipotéticamente, por cuenta de que, después de los tres años, el niño comenzaría a percibir que el amor imaginario asegurado por la generosidad del Gran Otro (que los padres encarnan) no es capaz de abarcar la multiplicidad del “pequeño otro”, la diversidad de las formas habituales que a él se donan como excitaciones en los ajustes diversos, especialmente en los ajustes sincréticos. Sustentar la identificación al Gran Otro sería, para el niño, renunciar, aun que parcialmente, a aquello que se manifestase a él como “pequeño otro”, como excitación. Desde este punto de vista, el amor imaginario ofrecido por el Gran Otro se habría vuelto barrera a la fluidez de otrora. Para los niños después de los tres años, todo pasaría como si los padres de ahora, encarnación del Gran Otro, no coincidiesen más con los padres de la experiencia de la confianza (que tal vez sea uno de los ajustes sincréticos más primordiales). Habría entre ellos una distancia imposible de ser recorrida. Lo que explicaría por que el niño ahora no querría más entregarse a las situaciones, prefiriendo representarse en ellas; al final en ninguna experiencia él estaría entero.
Esta es, entonces, la crisis de los tres años, entendiéndose por eso un conflicto entre los ajustes sincréticos y las identificaciones imaginarias: por un lado, la entrega al transitivismo no confirma las expectativas del Gran Otro; por otro lado, el placer venido de la concordancia con el Gran Otro no puede incluir la totalidad de lo que se vivía en el transitivismo (ajuste fluido). Lo que coloca al niño frente a un dilema: o él “desiste” de sus identificaciones con el Gran Otro, suprimiendo” el placer narcisista que tales identificaciones entregan – lo que va a exigir de él comportamientos antisociales. O, entonces, él “rechaza” el transitivismo de los hábitos - lo que va a exigir del niño una acción directa sobre su propio cuerpo, una “inhibición” de las excitaciones que se actualizan para él. Las dos reacciones constituyen el génesis de dos nuevos ajustes, los cuales vienen a agregarse a aquellos ya constituidos, cuáles son todos ellos: ajustes de llenado, asociación y disociación, de identificación positiva y negativa, ajustes fluidos y, ahora, ajustes antisociales y de evitación (o de autoinhibición).
Tratándose de los ajustes antisociales es necesario decir que ellos tienen su génesis en las vivencias de desistencia establecidas por los niños en relación a las identificaciones con el Gran Otro. En función de la frustración que tales identificaciones pueden representar para la continuidad de los ajustes sincréticos, los niños deciden declinar de continuar ligados a las imágenes a las cuales se asociaron. En cierta medida, el niño comprende los riesgos que corre y atribuye, al Gran Otro, la responsabilidad por tales riesgos. Consecuentemente, delibera romper con el Gran Otro, lo que significa declinar del placer que experimentaba como resultado de la identificación imaginaria con él. El niño lo hace de diversos modos: quebrando juguetes, usando “garabatos” que tengan efecto agresivo junto a los interlocutores, rechazando alimentos asociados a las expectativas de los cuidadores, volviendo a hacerse pipí en la cama… se trata de pequeñas transgresiones por medio de las cuales los niños deniegan sus identificaciones a las expectativas sociales. Además, es en este momento que comienzan a surgir mentiras, que los niños con 4, 5 años dominan con maestría: mentir es denegar la identificación que se experimentó con determinada imagen, sea ella una acción, un estado o una pasión que puedan ser representados en el lenguaje. También verificamos un tipo bien específico de agresividad contra el propio cuerpo, la cual no se confunde con los comportamientos sadomasoquistas (una vez que estos son sólo ajustes sincréticos en que se vive la crueldad a veces de modo activo, a veces de modo pasivo). La autoagresividad, en este momento, consiste en una tentativa de aniquilamiento de las características sociales representadas por el cuerpo, tentativa esta que envuelve desde actitudes de ocultación deliberada de partes de sí (como si tuviese vergüenza, aunque no se trata de vergüenza, sino de una denegación), hasta fantasías sobre su propio origen: “¿soy realmente hijo de ella?”.
Estas experiencias no producen, evidentemente, placer (ya que el placer es la identificación al Gran Otro). Pero pueden ser asimiladas como hábitos; lo que significa que siempre pueden volver y, en este sentido, generar excitación o gozo. De donde se sigue que, vivencias sistemáticas de “denegación del Gran Otro”, en la medida que son asimiladas como fondo de excitación, pueden retornar a la frontera de contacto. Ahora no más como deliberaciones supresivas, sino como acciones antisociales inconscientes, modos de gozo desvinculados de las demandas sociales. El retorno de tales vivencias siempre estará vinculado a un tipo de producción actual de la función de acto en los niños (supuestamente ya mucho más creciditos, con más de 6 años), cual sea tal producción: la repetición de una determinada imagen o representación social por cuya aniquilación el niño tiene especial preferencia: fetiche. He ahí los ajustes antisociales. Ellos consisten en la repetición inconsciente de acciones supresivas contra determinadas imágenes a las cuales los protagonistas activos siempre retornan en la forma de fetiche.
Frente al conflicto (crisis de los tres años) envolviendo, por una lado, la salvaguarda de los ajustes sincréticos, y por otro, la mantención de las identificaciones con el Gran Otro; el niño también puede –inversamente a lo que vimos respecto de las acciones supresivas- operar a favor de las identificaciones y contra sus excitaciones. Lo que significa decir que, en vez de suprimir las imágenes que encarnan las demandas que inflingen, a las excitaciones vividas por el niño, alguna suerte de barrera, ese mismo niño puede “rechazar” sus excitaciones por medio de “actos de inhibición” de la actividad muscular (por cuyo medio aquellas excitaciones podrían ser realizados o, lo que es lo mismo: repetidas). Los actos de inhibición siempre son posturas o comportamientos de contención de los movimientos de expansión en la forma en que los hábitos de otrora ganarían sobrevida, repetición, recreación; lo que es lo mismo que alcanzasen satisfacción. Se trata, conforme ya dijimos, de acciones de defensa que la función de acto en el niño delibera como resultado de una amenaza que él pueda sufrir de cara a las barreras impuestas por el Gran Otro. A partir de los tres años, el niño ya tiene más autonomía para deliberar y protegerse contra aquello que pone en riesgo las ligaciones inquebrantables que tiene con su fondo de excitaciones. Inhibirse, aquí, es al mismo tiempo proteger el sincretismo del cual él nunca se separa.
Sin embargo, es importante recalcar aquí que, diferentemente de los actos supresivos (los cuales se ocupan de aniquilar determinadas imágenes sociales), los actos inhibitorios no son tentativas de aniquilamiento de las excitaciones. Por cuenta de la acción de los actos inhibitorios, las excitaciones son rechazadas, pero no suprimidas. Conforme Merleau-Ponty, en afinidad con la posición de Wallon: “(p)arece que la crisis de los tres años es realmente un momento decisivo, pero el sincretismo es rechazado, más que suprimido”. Si es verdad que el “(e)l niño toma conciencia de la distancia entre el yo y el otro, percibe que existen barreras”; si es verdad que, por causa de esas barreras, su “transitivismo es rechazado” (Merleau-Ponty, 1949, p. 323), tal no significa que sus excitaciones dejaron de existir o de producir efectos. Incluso que el niño continúe inhibiéndolos hasta la vida adulta, las excitaciones transitivas que lo ligan al semejante continuarán presentes al entonces adulto; tal como en el caso de un amante que decidió no influenciar más a su amada: “(s)ea cual fuese su actitud, ella actuará sobre el otro, hasta incluso por el simple hecho de negarle la aproximación. Es un paradojo no querer interferir en la voluntad del ser amado. Amar es aceptar sufrir la influencia por parte del otro y ejercerla también sobre él.” (Merleau-Ponty, 1949, p. 323) Al final, “(s)i estamos ligados a alguien, sufrimos con su sufrimiento. Estar ligado a alguien es vivir su vida, por lo menos en intención. La experiencia de otros es necesariamente alienante para mí. Amar es afirmar más de lo que se sabe. (Merleau-Ponty, 1949, p. 323-324). E incluso que declinen del amor que puedan sentir, de las formas de gozo que todavía sientan vibrar, los niños –así como los amantes- continúan comunicando en los intervalos de sus gestos y en la forma de una tensión característica, que es la ansiedad, que todavía tiene esperanza de vivir el transitivismo de otrora. Conforme Merleau-Ponty, “(t)oda relación con otros es (…) algo que se realiza en estado

GRANZOTTO, R.L.; MÜLLER, M.J. \"Temporalidad en el campo clínico: Fenomenología del self\". Revista de Terapia Gestalt de la Asociación Española de Terapia Gestalt. Barcelona: Ediciones la Llave, S.L., n. 31 (Una mirada gestáltica al mundo en el que vivimos), 2011.

TEMPORALIDAD EN EL CAMPO CLÍNICO: FENOMENOLOGÍA DEL SELF

Resumen: Este trabajo consiste en una investigación sobre el uso que los autores de la obra Terapia Gestalt (1951) hicieron de la teoría fenomenológica de la intencionalidad operativa formulada por Edmund Husserl. Conforme a nuestro entendimiento, fue a partir de ella que ellos establecieron, en los términos de una teoría del self, la presentación de la clínica gestáltica como un flujo de vivencias de contacto entre lo actual y lo inactual para el clínico y su consulente.


Palabras-clave: Fenomenología Intencionalidad Awareness Temporalidad Sistema self

1. Una nueva forma de comprender la experiencia clínica

En el prefacio a la obra Terapia Gestalt (1951), sus autores (Perls, Hefferline y Goodman, de ahora en adelante mencionados por la sigla PHG) dan a conocer el propósito de esta iniciativa escrita en la frontera entre la práctica clínica y la reflexión teórica; y relativo al cual la teoría del self corresponde al corolario: “(…) poner las bases de una psicoterapia coherente y práctica (…), habiendo asimilado todo lo que las ciencias psicológicas de nuestra época pueden ofrecer de válido” (PHG, 1951, p. xl-xli). Pero si es así: “¿(p)or qué, (…) como lo sugiere el título, damos preferencia al término “Gestalt”, si tenemos igualmente en cuenta el psicoanálisis freudiano y para-freudiano, la teoría reichiana de la coraza, la semántica y la filosofía?” (PHG, 1951, p. xli). Y es en la respuesta a esa pregunta que, por primera vez, en el texto de Terapia Gestalt, aparece el significante “fenomenología” para marcar la disciplina que volvería comprensible la relectura que PHG hicieron de la práctica analítica en cuanto una nueva “totalidad” denominada de Gestalt. Ahora, ¿en qué sentido las Gestalten son totalidades? ¿En qué medida ellas se aplican a la experiencia clínica? ¿Por qué tal aplicación caracterizaría una fenomenología? ¿Cuál relación habría entre esa fenomenología y la teoría del self?
No es novedad alguna que el primer empleo técnico de la noción de Gestalt aconteció en el seno de las discusiones filosóficas de fines del siglo XIX y cuya finalidad era determinar cuáles relaciones puede haber entre el todo y sus “partes”. Pero fue en la tradición fenomenológica que la noción de Gestalt pasó a designar una totalidad específica, que la diferencia de las totalidades no fenomenológicas (que dependen de un agente exterior que las formule o constituya), caracterizan “correlaciones espontáneas” entre partes actuales e inactuales co-presentes en una misma vivencia. Y tal vez, el mejor ejemplo entregado por los fenomenólogos para designar este tipo de totalidad sea la vivencia del tiempo. Considerada matriz para pensar todas las otras, la vivencia del tiempo es una “correlación espontánea” entre nuestra materialidad actual y la inactualidad del pasado y del futuro. Aunque podamos, no necesitamos representarnos (por medio de un juicio) el pasado y el futuro que una vivencia presente moviliza. En ciertas ocasiones –tal como descrito en la antológica experiencia de la “Madeleine embebida en té”, cuyo aroma exhalado revivió para el personaje Charles Swann (Proust, 1913, p. 48-51) la infancia en la ficticia Combray, sin que él la necesitase evocar –no necesitamos reunir por un acto intelectual una serie de perfiles retenidos, pues estos tienen como que una unidad natural y primordial. Todo pasa como si el propio pasado retornase como una emoción viva. En otras, es el futuro, él mismo que nos desaloja de nuestras ocupaciones presentes. De suerte que, sin necesidad de deliberación específica, en algunas situaciones, nosotros experimentamos como una unidad histórica, nunca enteramente realizada. Esa experiencia es una Gestalt.
Si quisiéramos ser precisos sobre el origen de esa comprensión fenomenológica respecto de las Gestalten, seremos llevados a la obra de Franz Brentano (1874). Es en ella que por primera vez se menciona el significante Gestalt para designar la formación espontánea de esa correlación que llamamos de vivencia del tiempo. Pero fue Edmund Husserl (1900-1) quien se ocupó de pensar la dinámica específica de la Gestalten, dinámica esta a la cual denominó de “intencionalidad operativa” y que se distingue de la “intencionalidad de acto” (relativa a nuestra capacidad mental para representar, en la forma de un objeto del conocimiento, la unidad de nuestras vivencias operativas). Conforme al historiador de la fenomenología Herbert Spiegelberg (1960), la noción de intencionalidad operativa hizo fortuna en la pluma de los alumnos de Husserl en Göttingen (hasta 1907) y Frankfurt (hasta 1924), habiendo recibido de ellos las más diversas formulaciones. Algunas de ellas sirvieron de base para la consolidación de la Gestalttheorie, que llegó en 1926 hasta el neurofisiologista Kurt Goldstein (1967) por las manos de Adhémar Gelb y de otros asistentes de Wolfang Köhler y Max Wertheimer, entre ellos, Lore Posner, futura esposa de Fritz Perls. En los términos de una teoría sobre la autorregulación del organismo en el medio ambiente, Goldstein (1933) incorporó la idea de una intencionalidad no mental, la cual él comprendió valer en las más simples formas de organización de la naturaleza, lo que lo llevó a hablar de una “intencionalidad organísmica”. Fritz Perls (1969, p. 77), no obstante el poco crédito que daba a Goldstein cuando lo asistía en el Hospital General de Soldados Lesionados en Frankfurt, años más tarde fue convencido por su esposa, de ahí en adelante denominada de Laura Perls, sobre las ventajas de usarse la noción de “intencionalidad organísmica” para designar el inconsciente de las pulsiones (que, de esa forma, se distinguiría del inconsciente de la represión y de la forma causal como Freud lo concebía). Y para que no se confundiese “intencionalidad organísmica” con “intención mental”, lo que nos llevaría a un psicologismo, Fritz Perls (1942, p. 69) subrayó el carácter espontáneo de aquella noción designándola con una expresión que aprendió en la convivencia con la lengua inglesa en África del Sur: awareness. Razón por la cual, en el prefacio de la obra Terapia Gestalt (1951, p. xli), Fritz Perls, Laura Perls, Ralph Hefferline y otros colaboradores –ahora asociados al rigor filosófico y a la irreverencia que Paul Goodman trajo de sus estudios de doctorado en Alemania y de su intensa actividad literaria en los Estados Unidos- responden a la cuestión “¿Por qué (...) damos preferencia al término Gestalt?” mencionando la tarea que deberían cumplir: elaborar una “fenomenología de la awareness”. Conforme a nuestro entendimiento: describir la psicoterapia como una Gestalt es establecer la fenomenología de los procesos intencionales operativos inherentes a la práctica clínica, es comprender los procesos de awareness que forman la práctica clínica. O conforme a los propios autores (1951, p. xli): (e)n este proceso, hemos encontrado que era necesario desplazar el objeto de la psiquiatría: en lugar de hacer un fetiche de lo desconocido, de adorar al “inconsciente” [de la represión, conforme a la interpretación que damos para las comillas con las cuales los autores marcaron el término “inconsciente”], era preferible dedicarse a los problemas y a los fenómenos de la conciencia inmediata (awareness) [fenomenología de la awareness, conforme al original): ¿cuáles son los factores que actúan a nivel de la conciencia (awareness), y cómo las facultades que no pueden funcionar eficazmente salvo en los estados de conciencia (awareness) pueden perder esta propiedad?

Sin embargo, si la fenomenología de la awareness es la explicitación de la psicoterapia en cuanto una Gestalt, en cuanto un todo espontáneo de correlación entre el clínico y su consulente, la teoría del self no es sino la presentación sistemática de la fenomenología de la awareness. O lo que es la misma cosa, la teoría del self es la presentación temporal (como veremos más adelante) de las funciones y de las dinámicas específicas de ese todo espontáneo de correlación que se configura en el campo clínico, como una suerte de enlace ambiguo entre el clínico y su consulente. ¿Cómo –en el campo clínico- esas correlaciones se forman? ¿Por qué funcionan y a veces no? ¿Cómo en ellas podemos ocupar un lugar, de clínico o consulente? La teoría del self puede entregar la base para responder estas cuestiones.

2. Una fenomenología peculiar

Así concebida, la teoría del self caracteriza una fenomenología muy peculiar. Al final, tiene como tarea describir las Gestalten a nivel de la experiencia empírica. En que ella diverge de la fenomenología pregonada por Edmund Husserl, en cuya obra Paul Goodman afirma haberse inspirado, conforme trecho de la carta que envió a Wolfang Köhler para explicarse sobre las intenciones programáticas de la obra Terapia Gestalt: “(r)especto a mí, mi afinidad con la forma de expresar estas ideas emana modernamente de, digamos, Ideen de Husserl o, en el aspecto opuesto, de Dewey” (Goodman apud Stoehr, 1994, p. 80).
Para Husserl, la plena comprensión de una Gestalt depende de un trabajo de reducción, de un trabajo de paso del nivel empírico –practicado en el lenguaje cotidiano y científico- para un nivel estrictamente conceptual, desinteresado de pensar situaciones singulares, tales como las que caracterizan, por ejemplo, una vivencia clínica. Incluso así, Husserl admitía que las aclaraciones entregadas por una investigación conceptual no harían más que demostrar, de manera irrefutable, una comprensión ya presente en nuestra inserción ingenua en el mundo de las cosas y de nuestros semejantes; cual sea esa comprensión: que en todas nuestras experiencias reencontramos ese poder espontáneo de correlación entre lo que está dado y lo que es inactual: Gestalten. De todos modos, para Husserl, esa comprensión mundana de las Gestalten no tendría fuerza para imponerse como una verdad. Las Gestalten en el mundo de la vida serían sólo intuiciones ambiguas, jamás unidades clarividentes, verdaderos objetos del conocimiento. A lo que Goodman (1951) –inspirado en la pragmática del también americano John Dewey (1922)- responde diciendo que, tratándose de la experiencia clínica, en la cual la ambigüedad de la relación del clínico y del consulente es más importante que cualquier verdad, las intuiciones son más reveladoras que los pensamientos y conocimientos. Por eso, para percibir uno al otro (lo que no significa de forma alguna coincidir), clínico y consulente no necesitan practicar la reducción al campo de la idealidad. La fenomenología de la experiencia clínica sucede a nivel de la propia experiencia. Ella es antes una ética que una ciencia. Y las Gestalten, en la clínica, son antes manifestaciones del extraño que objetos del conocimiento.
Y tal vez esté aquí, en esa primacía concedida a la experiencia, la principal característica fenomenológica de la teoría del self. Al final, independientemente del hecho de que las Gestalten no sean tratadas en un plano estrictamente conceptual –como querría Husserl-, ellas continúan designando, como se requiere en un tratamiento fenomenológico, correlaciones espontáneas, en el caso de la teoría del self, envolviendo al clínico y al consulente. Tal como para los fenomenólogos, los cuales no consideran las Gestalten propiedades de una substancia (extensa o pensante), mas fenómenos de campo, correlaciones espontáneas entre actos intersubjetivos e inactualidades públicas (las cuales Husserl llama de esencias); para los fundadores de la Terapia Gestalt, la experiencia clínica (que la teoría del self debe describir) no es un acontecimiento de una mente privada o un hecho aislado que el clínico pudiese observar a la distancia. Ella es un fenómeno de campo, la correlación pública entre el consulente y el clínico (donde cada uno es para el otro inalcanzable, lo inactual o, si quisieren, una esencia). De donde se desprende que –al contrario de lo que podría pensar a partir de su empleo cotidiano en la lengua inglesa, o de su aparecimiento en el discurso de la psicología- el significante self no designa el psiquismo individual. Designa, sí, una experiencia intersubjetiva o, si prefieren, una subjetividad ampliada, en fin, un fenómeno de campo, bien como las ambigüedades inherentes a las funciones y procesos característicos de ese campo. Self no es el consulente o el clínico, sino la indivisión de la experiencia que hace con que se distingan, sin jamás poder coincidir.

3. Una nueva forma de comprender la “transferencia” clínica: contacto
¿Qué es lo que se quiere decir cuando – en los términos de la teoría del self –
se afirma que la experiencia clínica es una Gestalt, un todo espontáneo de correlación entre el clínico y el consulente? ¿Qué debemos entender exactamente por correlación? ¿Quién en ella es el agente, si todavía tiene sentido reclamar por un sujeto?
En verdad, la definición de clínica como una suerte de correlación es una estrategia fenomenológica para pensar otra definición, que Fritz Perls trajo del psicoanálisis y que dio singularidad a la práctica analítica, precisamente, la noción de transferencia (Freud, 1912ª). Ya en la obra Ego, hambre y agresión (1942), Perls se ocupaba de los teóricos del psicoanálisis que, en la época de Freud, discutían el significado clínico de transferencia y de la contra-transferencia. Se incluyen ahí, especialmente, los nombres de Paul Federn (1949) y S. Ferenczi (1909), el cual confesadamente exhortaba la utilización de la contra-transferencia como un recurso clínico. Fritz Perls reconocía que la noción de transferencia buscaba aclarar la relación de campo que se establecía entre el analista y su analizado más allá o más acá de las conveniencias sociales que ambos dividían. Se trataba de una forma de describir aquella comunicación de “inconsciente para inconsciente” que Freud (1912b, p. 154) juzgaba suceder después que se establecía la rectificación subjetiva del consulente que, de aquí en adelante, pasaría a ser llamado de analizando, implicado en su propio proceso, el ahora analizando se dejaría llevar por aquello que a él espontáneamente se manifestase. Y lo que a él espontáneamente se manifestaba, según Freud (1914g), era mucho más que la recordación de una escena. Se trataba de la “repetición” involuntaria de esa escena, de ese fantasma con el cual el analizando se defendía de un conflicto pulsional y de la repressión por tal conflicto exigido. Y es en ese punto, precisamente, que se operaría la transferencia: de manera involuntaria, el analizando repetiría, en la relación con el analista, la escena reprimida, transfiriendo al analista los respectivos afectos envueltos. El trabajo del analista, en este punto, sería permitir que el analizando “elaborase” esa repetición, de modo de dar a los afectos envueltos otro destino, un destino más aceptable y productivo del punto de vista social. Y aun que no sea de nuestro interés discutir la justeza de la equivalencia que los freudianos de un modo general establecieran para las nociones de “repetición” y “transferencia”, no podemos ignorar los cuestionamientos que Lacan, en su curso sobre “Los conceptos fundamentales del psicoanálisis” (1963, p. 36), dirigió a los psicoanalistas de la IPA (International Psychoanalysis Association), una vez que no pusieron atención a la diferencia que Freud hacía entre la pulsión y el fantasma; de suerte que, para Lacan, lo que se repite en análisis no es la escena, sino la pulsión, que a esa altura de su obra él denomina de “objet petit a(utre)”. El cuestionamiento de Lacan, en cierta medida, va al encuentro de las críticas que, mucho antes, Fritz Perls dirigió a sus colegas freudianos, en el sentido de puntuar que, en análisis, los afectos que novelan analista y analizando no tiene relación necesaria con una supuesta escena que retornaría del pasado. Si es verdad que los afectos vienen del pasado, tal no significa que traigan del pasado el contenido que les da sentido, incluso porque, en análisis, el sentido que se atribuye a un afecto, aun cuando menciona el pasado, es siempre construido en el presente. De suerte que, la repetición de un afecto está antes vinculada a la actualidad de la relación del analista y del analizando, la cual siempre representa una nueva chance para que los afectos encuentren una destinación en la realidad, que una suposición abstracta sobre la ocurrencia de una escena traumática. He ahí, entonces un primer motivo para que Fritz Perls desista del empleo de la noción de transferencia.
Pero no es sólo eso. Tal como era empleado por los freudianos de los años 1940, la noción de transferencia hacía creer que muy poco el analista tendría que hacer por el analizando sino interpretar para este la supuesta escena que ambos estarían por repetir. Sin embargo, conforme al entendimiento de Fritz Perls, si la repetición está apoyada en la actualidad de la relación, buscando para sí una nueva resolución, el trabajo analítico no puede consistir en reencontrar algo, pero, sí, en crear una novedad. Es por eso que Fritz Perls pasó a trabajar en análisis como un partícipe de las vivencias efectivamente operadas en el consultorio. No se trata, aquí, de una contratransferencia, sino de un hacer conjunto. O, conforme más tarde dirán Erving y Miriam Polster (1972), comentando la afirmación de Fritz Perls de que el “terapeuta es su propio instrumento”:

(c)uando el terapeuta entra en sí mismo, no está sólo volviendo disponible al paciente algo que ya existe, pero está también auxiliando la ocurrencia de nuevas experiencias, basadas en sí mismo y en el paciente. Esto es, él se vuelve no sólo alguien que responde y que da feedback, sino también un participante artístico en la creación de una nueva vida. Él es más que un catalizador que permanece inmutable en cuanto afecta la transformación química. El terapeuta cambia: él se vuelve más abierto a la amplitud de experiencias que puede conocer de primera mano, descubriendo con el paciente como es envolverse de los muchos modos abiertos a ellos.

Por las razones más arriba mencionadas, Perls comprendió que el término ‘transferencia’ no podía definir su práctica clínica. Es ahí entonces que, a partir de la terminología utilizada por Kurt Goldstein (1933), Perls elige un nuevo significante para designar la experiencia clínica: “contacto”. La correlación entre el consulente y el clínico, la comunicación de inconsciente para inconsciente, no es sino un episodio de contacto. En él, por un lado, se repite algo incomprensible, que es el pasado, tal como él vuelve en cuanto una orientación ya adquirida e indescifrable (y que se deja percibir apenas por sus efectos afectivos). Pero, por otro lado, en el contacto, se da la construcción de un inesperado, de una novedad, cuya autoría nunca es muy clara si pertenece al clínico o al consulente. Conforme a la lectura fenomenológica que Paul Goodman hizo de ese significante, ‘contacto’ es la propia realización de la correlación entre el clínico y el consulente. Se trata aquí de un fenómeno de campo, de un “sujeto” que no se reduce a ninguna de las partes de esa relación, ni con ellas coincide. Desviarse en dirección a ese “sujeto”, que es contacto: eso es lo que hace de alguien un clínico. Autorizar en sí mismo los efectos de ese “sujeto”, de esa correlación vivida en el campo clínico: eso es lo que vuelve a alguien consulente. Pero, si en la experiencia hubiera contacto, si ella fuera realmente un sistema self, el clínico y el consulente se alternan en esos lugares.

4. Intencionalidad del contacto: awareness
A pesar de no considerar necesario el tratamiento de las Gestalten en un nivel filosófico o idealizado, PHG se encargan de hacer, a su modo, una descripción fenomenológica del contacto. Esto significa decir, ellos se encargan de aclarar las funciones y dinámicas específicas de la experiencia de contacto. Para tanto, comprenden la necesidad de operar, en primer lugar, la suspensión de las categorías psicológicas (mente, cuerpo, yo psicofísico) que podrían dar a entender que el contacto acontecería en la inmanencia psíquica de cada individuo, por ejemplo, del clínico y del consulente. Ahora, el contacto es una vivencia intersubjetiva. Ella no sucede ni dentro ni fuera de las partes envueltas (sean ellas individuos o no). Ella sucede, sí, en la frontera (de contacto) entre lo que es actual y lo que es inactual para las partes envueltas. Más precisamente, el contacto sucede en la frontera entre el pasado y el futuro de aquello que decimos y hacemos. Supongamos un episodio de interrupción en la comunicación del clínico con su consulente. El hecho de que el consulente no entienda la pregunta no se debe solamente a la forma enredada con la cual el clínico, por ventura, lo haya interpelado. El “titubear” del clínico, así como la “sordera” del consulente pueden denotar que a esos cuerpos y a esas palabras se presentó mucho más que un significado. A ellos se puede haber presentado, como horizonte de los significantes escogidos por el clínico, la posibilidad de hablar de nuevo sobre lo ocurrido en la sesión anterior, que ninguno de los dos sabe a ciencia cierta que fue y para donde los irá a llevar… de suerte que, en este ejemplo, el contacto no se estableció entre el clínico y su consulente, sino entre las acciones de ambos y un pasado que se insinuó en el diálogo todavía por venir. El nombre que Fritz Perls dio a ese proceso temporal de paso entre lo actual y lo inactual, de ocurrencia cotidiana en la clínica, es awareness.
La noción de “awareness sensomotora” ya era usada por Fritz Perls en su libro Ego, hambre y agresión (1942, p.69). En este, ella también cumplía la tarea de revisar la metapsicología freudiana. Tal cual la noción de contacto sustituiría la noción freudiana de transferencia, la noción de awareness introduciría, en vez de un abordaje “económico” de las pulsiones, un abordaje más focalizado en la “dinámica pulsional”, lo que ahorraría a Fritz Perls el tener que ocuparse con las discusiones casi metafísicas acerca de cuál sería el contenido específico de las pulsiones. Limitada a designar una orientación temporal, la noción de pulsión –de aquí en adelante denominada de awareness- dejaría de ser la búsqueda por un sustituto de la experiencia original de satisfacción, o la propia tentativa (siempre malograda) de repetición de esa experiencia: pulsión de vida y pulsión de muerte, respectivamente. La pulsión –en cuanto awareness- significaría una “tendencia” ambigua, presente en cualquier experiencia que estableciésemos en el consultorio y en nuestra vida en la naturaleza, ora en provecho del crecimiento (momento en que ella haría las veces de pulsión de vida) ora en provecho de la conservación (momento en que equivaldría a la pulsión de muerte).
En la obra Terapia Gestalt, PHG retoman esa noción, ahora como el equivalente de los procesos intencionales descritos por la fenomenología. Lo que significa decir que, en 1951, con ocasión de la escrita de Terapia Gestalt, sus autores definitivamente vertieron el psicoanálisis para una lengua fenomenológica. En cierta medida, en la obra Ego, hambre y agresión, Perls ya había comenzado ese trabajo, una vez que las nociones de conservación y crecimiento, incorporadas de Goldstein para sustituir pulsión de muerte y de vida, fueron pensadas por este a partir de la teoría fenomenológica de la intencionalidad. Pero, ahora, la ligación entre las nociones psicoanalíticas y fenomenológicas fue vuelta explicita. Como correlativo de aquellas, PHG eligieron los dos principales procesos intencionales operativos descritos por Husserl para explicar la vivencia de paso en el tiempo, respectivamente: i) el proceso de “retención” involuntaria de las formas (y por cuyo medio se da la formación y repetición de los hábitos) y ii) el proceso de “síntesis pasiva” (en la forma por la cual se establece, espontáneamente, la ligación entre las formas retenidas y las posibilidades de acción ofrecidas por la experiencia actual). De aquí en adelante, pulsión de muerte significa retención y repetición de un hábito. Pulsión de vida, síntesis espontánea entre los hábitos y las nuevas posibilidades ofrecidas por el medio social y natural.
Es importante que se note aquí como la noción de awareness –sustituto gestáltico de la noción de intencionalidad- conservó la ambigüedad fundamental presente tanto en la forma psicoanalítica de concebir las pulsiones cuanto en la forma fenomenológica de describir los procesos intencionales inherentes a la formación de una Gestalt primordial, que es la vivencia del tiempo. Es en este sentido que, después de 1951, la noción de awareness sensomotora (formulada por Fritz Perls en 1942) fue desdoblada en dos:
- hay por un lado, la “awareness sensorial” (1951, p. 6) o “primera” (1951, p. 247), que es una dinámica de conservación (la cual incluye la asimilación y la repetición) de aquello que surge en el presente en cuanto pasado;
- por otro, está la “awareness deliberada” (1951, p. 16) o, como la emplean más frecuentemente, la “respuesta motora” o “comportamiento motor” (1951, p. 6). Esta responde por la dinámica de crecimiento (la cual incluye la destrucción de la actualidad y el traslado en dirección a la novedad).
Las dos formas de presentación de la awareness traducen las dimensiones temporales del contacto: tal cual la intencionalidad operativa (que incluye la retención y la síntesis pasiva) descrita por la fenomenología, la awareness sensorial dice respecto a los procesos de asimilación y repetición del pasado; procesos estos que PHG prefirieron llamar de “asimilación del contacto” y “sentir relativo a la excitación” el primero como correspondiente de la retención y el segundo como equivalente de la síntesis pasiva. Ya la awareness deliberada o respuesta motórica, que traduce las nociones de protensión y síntesis de transición de la fenomenología, tiene relación con la vivencia del futuro o, conforme prefieren PHG, con la “formación de Gestalten” y la “destrucción de Gestalten”, lo que, al fin, nos aclara sobre cómo se relacionan los significantes de la única definición de awareness entregada por la obra Terapia Gestalt (1951, p. xli) y que transcribimos a seguir: awareness “está caracterizada por el contacto, la sensación, la excitación y la formación de la Gestalt”. Conforme nuestra lectura del trecho: awareness es el operar con aquello que fue “asimilado en la experiencia de contacto”, en la forma de un “sentir que provoca la excitación” (configurándose así la dimensión pasada o sensorial de la awareness); todo esto en provecho de la formación y de la destrucción de una Gestalt (actividades estas que corresponden a la dimensión futura o motora de la awareness). Hablemos un poco más sobre esto.
4.1. Awareness sensorial
Conforme ya dijimos, la awareness sensorial, dimensión pasada del contacto, se caracteriza básicamente: a) por la retención de la forma de los componentes anteriores y b) por la repetición de esta forma en cuanto un hábito sea él motor o verbal. Hablemos de cada una de estas dimensiones.
Comencemos por la noción de retención de la forma de los componentes anteriores. Y, para no ser traicionados por la “cultura espacializante” de la Psicología, tenemos que recordar que la noción fenomenológica de retención no tiene parentesco con la noción psicológica de memoria. Aquella no corresponde a la inscripción de un trazo mnemónico en algún sistema psíquico o anatomofisiológico. La retención no sucede en un lugar o, entonces, ella no tiene lugar en nuestra actualidad. Ella dice respecto, fundamentalmente, a aquello que rompe la consistencia óntica de la realidad, introduciendo el pasado que se perdió (y he ahí porque puede ser relacionada a la pulsión de muerte). De donde se sigue que lo retenido no es una entidad en el tiempo y en el espacio físicos. Por eso, él no pertenece a alguien, al clínico o al consulente. Él es un hábito impersonal, la copresencia de un aprendizaje que divido con mis semejantes y que, además, no se deja aprehender por él mismo, sólo por sus efectos junto a nuestras acciones, lo que significa decir, siempre después, lo que hace de él una suerte de anticipación espontanea en relación a nuestras comprensiones. O, entonces, lo retenido es el fondo en nuestra experiencia perceptiva, el horizonte no localizado desde el cual la figura encuentra su posición, lo que nos obliga a reconocer una función para la que no tiene localización definida. A este proceso espontáneo de retención y repetición (repetición esta que siempre implica el intuir la donación) de aquello que se volvió impersonal e indefinido, PHG van a denominar de “asimilación del contacto anterior”.
Ahora bien, la noción de retención (o asimilación del contacto anterior) es la base desde donde podemos ocuparnos de la segunda dimensión de la awareness sensorial, que es la repetición, la cual es descrita por PHG como la experiencia del “sentir o excitación”. Hablemos un poco sobre la noción de sentir, la cual, conforme un uso consagrado por la tradición romántica, especialmente por Herder , los autores en cuestión también denominan de “pasión” (PHG, 1951, p. 193). En función de la orientación fenomenológica que asumieron, cuando hablan del sentir en cuanto una unidad de sensación y percepción, los autores de Terapia Gestalt no se refieren a los procesos fisiológicos o psíquicos de recepción y registro de estímulos, sean ellos exteroceptivos, interoceptivos o propioceptivos. Tal como para Husserl, para PHG sentir no es la facultad (sensible) de una substancia, de un ente, de un yo psicofísico, sea tal substancia el clínico o el consulente. Sentir tiene relación con el hecho de que seamos atravesados por una historia impersonal, a la cual Merleau-Ponty denominaba de cuerpo habitual. Es tal la historia que escoge tácitamente los objetos, junto a los cuales vislumbra posibilidades de emancipación o retomada. Lo que significa decir que, para PHG, la sensibilidad no es una facultad pasiva frente a los estímulos materiales. Al contrario, la sensibilidad es la propia pasividad de nosotros mismos frente a una historia impersonal (que ni siquiera sabemos si es nuestra), la cual, por cuenta propia, escoge, en el universo de situaciones materiales actuales, aquellas que abren algún horizonte de futuro.
Evidentemente, esto no significa negar que yo sea capaz de hacer elecciones por medio de juicios volitivos (los cuales caracterizan una intencionalidad de acto, conforme a la terminología husserliana). Puedo perfectamente “decidir” tomar la vía de la izquierda, cuando, “en mi corazón, algo me dice que, para llegar hasta la floricultura, tal vez fuese mejor tomar el camino de la derecha”. Esa decisión, entretanto, no pertenece al campo de la percepción sensible, por cuanto la percepción sensible no carece de la caución de un juicio, del sello de una decisión. Una vez inmerso en la vía izquierda, que decidí tomar, los rostros con los cuales me cruzo no retienen mi atención, sigo concentrado en el blanco que quiero alcanzar, o tal vez ocupado con la frustración de no haber seguido mi “corazonada” hasta que, de repente, del medio de aquel océano de fisonomías anónimas, vislumbro alguien familiar, que todavía no sé a ciencia cierta quién es. Si me preguntase, mientras intento identificar el nombre de aquella fisonomía: por qué ella se me presentó, por qué yo la vi, por qué ella no permaneció anónima, como las demás, luego comprendería que alguien, que no se reduce a los pensamientos e imágenes sobre los cuales puedo decidir, miraba para mí o, propiamente, ejercía mi mirar, a punto de escoger, a partir de criterios que tampoco comprendo integralmente, pero que parecen tener relación con el pasado, lo que o a quien ver, lo que o a quien percibir, en fin, sentir. Ese alguien anónimo, tan anónimo cuanto mi musculatura óptica en el acto de mirar, es una historia impersonal, la cual sólo puedo “saber” después –y su actividad, a la cual soy pasivo, mi sensibilidad. Lo que nos permite comprender la afirmación de PHG, según quienes: “(l)a sensación determina la naturaleza de la conciencia [awareness], ya esté lejos (por ejemplo, acústica), cerca (por ejemplo, táctil), o dentro de la piel (propioceptiva)” (PHG, 1951, p. xli). El sentir –que no es sino el cuerpo habitual, la historia de generalidad que divido con mi comunidad- escoge a quien y lo que percibir, con cual elemento correlacionarse, antes incluso que yo tuviese tiempo para pensar sobre eso.
Ahora, si es verdad que es a partir de lo asimilado que “en mí se hace sentir” que tácitamente, elecciones sensibles son establecidas, también es verdad que lo percibido, él propio, no se reduce a aquel sentir. Al contrario, lo percibido reacciona a “mi sentir” y lo interroga. Los cuerpos vistos reaccionan al mirar que los alcanza a partir de mí, y yo mismo (en cuanto una conciencia de representaciones) comienzo a preguntarme de donde partió este interés sobre lo cual no tengo gobierno. Aquello que “en mí se hizo sentir” motiva la curiosidad, genera deseo, despierta la excitación entre aquellos para los cuales se dirigió. De suerte que, como desdoblamiento de las elecciones establecidas por un sentir impersonal, sobreviene una respuesta espontánea de las cosas elegidas, respuesta ésta a la que PHG denominan de excitación. La excitación es el efecto de curiosidad que la repetición de un hábito genera en el medio. Y por estar así vinculado a los hábitos impersonales, nosotros nunca sabemos precisamente de donde la excitación espontánea parte, tampoco para donde ella se dirige. Ella no tiene una fuente específica –su fuente es el anonimato de una historia olvidada, que es el hábito. Tampoco ella tiene un blanco determinado, pues los blancos tienen que ver con las direcciones abiertas por las cosas percibidas. Ni siquiera una forma específica de aniquilamiento: las excitaciones espontáneas no pueden ser aniquiladas, ellas sólo pueden ser realizadas; lo que significa decir: trascendidas para otros campos, para las posibilidades abiertas por las próximas cosas descortinadas en el sentir. Consecuentemente, las excitaciones espontáneas son fuerzas constantes. Y esas características en mucho recuerdan aquella con las cuales, en los Tres ensayos sobre la sexualidad, Freud (1905d) definió pulsión. He ahí porque, para los autores, la noción de excitación espontánea “(i)ncluye la noción freudiana de catexis, (…), y nos da una base para una teoría sencilla de la ansiedad” (PHG, 1951, p. xlii), tal como la podemos leer en las partes finales de la teoría del self que tratan de los ajustes neuróticos.

4.2. Awareness deliberada o respuesta motora
Ya la awareness deliberada o respuesta motórica tiene relación con las acciones siempre individuales, pero destinadas a alguien o elaboradas a partir de otros –con las cuales, de manera también espontánea, lo que significa decir, de manera no pensada o representada, instituimos una totalidad presuntiva o Gestalt. Tal totalidad no es sino el deseo con el cual intentamos sintetizar, de manera siempre inminente, los hábitos, a los cuales somos pasivos, y las posibilidades que el medio nos ofrece y por las cuales podemos escoger (tanto operativa como mentalmente).
Hasta aquí, la noción de awareness sensorial nos ayudó a comprender que el contacto es un desbordamiento temporal, lo que no quiere decir que se trata de algo enteramente aleatorio. Si es verdad que, en cada una de mis experiencias, hay una historia que se revela por ella misma, también es verdad que, a cada nueva oportunidad, asumo esa historia como si fuese mía y, a partir de ella, busco experimentarme como una totalidad, mi propia totalidad.
En el caso de la clínica, a cada nueva sesión, aquello que se realiza es mucho más que pasar para un nuevo orden de significantes o afectos. Por medio de actos individuales, por los cuales decido de modo operativo, sin necesidad de reflexión, establezco, en el paso de una sesión a otra, la experiencia de montaje y desmontaje de una unidad, que es la unidad de mí mismo con algo siempre por descubrir. He aquí la awareness deliberada. Mí acción introduce –más allá del misterio que para mí mismo se reveló como awareness sensorial- mí esperanza de encontrar aquello que hace de mí yo propio. Pero esa nueva totalidad, de hecho yo nunca la encuentro. Ella está siempre por hacer, como si sus partes continuasen indeterminadas. Ella continua en falta, volviéndose así mi deseo, lo que hace volver a la sesión y a las otras actividades en que tengo la posibilidad de realizarlo.
Aquí es necesario hacer un paréntesis. El hecho de que sea mi acción aquella que desencadena la awareness deliberada –la cual consiste en esta búsqueda por mi todo presuntivo- no significa que en todas las acciones haya awareness deliberada. Al final, hay vivencias de contacto, de efectiva trascendencia de una historia pasada en dirección al futuro, en que no se da aquella experiencia de “comprensión” de sí como una totalidad, aun que indefinida, extraña, trascendente. O, simplemente, hay vivencias de contacto, en las cuales se puede verificar una acción en curso, sin que tal implique la abertura de un horizonte de deseo. Ese es el caso, por ejemplo, de nuestros procesos fisiológicos básicos, como la meiosis y la mitosis. Tales procesos, sin duda, están investidos de una historicidad, pero que no necesita aprehenderse como un todo. He ahí porque “digo” que no percibo, espontáneamente, mi propia división celular, no la “veo” acontecer en el paso de las horas, como veo pasar la fisonomía de un conocido “mío”, o los sentimientos que nutro por él. Para percibir mis replicaciones cromosómicas, tengo que “representar” la unidad de ese proceso en un modelo objetivo, el famoso código genético. Por lo tanto, no se puede decir que esos procesos configuren una vivencia de awareness deliberada, aunque se trate de un proceso de contacto. Conforme PHG: “(e)l contacto en sí mismo es posible sin conciencia [awareness], pero para la conciencia inmediata [awareness] el contacto es indispensable” (1951, p. xli). Diferentemente de las vivencias de contacto características de mi fisiología primaria, en el contacto con awareness deliberada, vivo un todo presuntivo, posible, en que se anuncia una personalidad objetiva que todavía no soy, que nunca seré por entero. Vivo un todo presuntivo que no es sino el “representante” de una “representación futura” la cual aún no establecí.
Ahora, esa idea de que la awareness deliberada implica la constitución de un representante de mi propia representación futura nos remite a la forma como la fenomenología husserliana (1900-1) interpretó la tesis formulada por Franz Brentano (1874) de que, más allá de nuestros actos de representación, podríamos contar con representantes intuitivos de aquello que, tardíamente, aquellos actos habrían de representar. Tales representantes de las representaciones futuras (Vorstellungen Representanz) no serían más que acciones cuyas partes o contenidos estarían indeterminados (awareness sensorial), pero que aún así se configurarían como una unidad presuntiva (awareness deliberada), la cual, más tarde, nuestros juicios intentarían determinar. Esa unidad presuntiva espontáneamente formulada por nuestras acciones, Brentano (1874) llamó de “Gestalt”, conforme ya dijimos. Es por eso que, en su descripción de la awareness –entendida como dinámica específica del contacto-, PHG se refieren a la “formación de la Gestalt” como el tercer término constitutivo de la awareness, específicamente de la awareness deliberada. La vivencia de mi unidad histórica en la trascendencia y formación de Gestalt.
En fin, para decir de un modo sintético lo que vimos hasta aquí sobre la awareness: por un lado, ella es la copresencia (retenida) de una historia impersonal que se quiere repetir (excitación) junto a las posibilidades abiertas por los datos en la actualidad de nuestra experiencia; por otro, ella es la unificación presuntiva de esa historia por obra de una acción individual. A la primera llamamos de awareness sensorial; y a la segunda awareness deliberada. Ambas designan la doble orientación temporal del contacto; lo que hace del contacto la propia vivencia del tiempo, que en el decir de PHG (1951) se formula así:
El Contacto es “el descubrimiento y la construcción” de la solución futura: Se siente interés ante un problema presente y la excitación aumenta hacia la solución futura aunque sea todavía desconocida. La asimilación de la novedad se da en el momento presente cuando va pasando hacia el futuro. El resultado de esta asimilación nunca es un mero arreglo de las situaciones inacabadas del organismo, sino una configuración que contiene el material nuevo sacado del entorno y, por lo tanto, diferente de lo que podría recordarse (o conjeturar), de la misma manera que el trabajo de un artista es siempre, para él, impredecible cuando maneja el medio de expresión material (p. 14).

4.3. El “darse cuenta”: awareness reflexiva
Pero, ¿awareness no era el darse cuenta, o tener conciencia de lo que se siente o se hace? Sí y no. No obstante la difundida comprensión acerca de la awareness como una percepción reflexiva, ella es sólo un tercer aspecto de la noción efectivamente empleada por PHG. Hay, en el texto Terapia Gestalt (1951, p. 8) una referencia explícita a una tercera modalidad de awareness que es la awareness reflexiva o consciente. Se trata, en este sentido, de un paso que justifica la traducción, en algunos casos, del término ‘awareness’ por “darse cuenta”, “tomar conciencia” y así en adelante. En verdad, siguiendo la orientación fenomenológica adoptada por los autores, vamos rápidamente a encontrarnos con la diferencia existente entre i) la intencionalidad operativa, que tiene relación con el modo como se da la vivencia del tiempo y a partir de la cual PHG concibieron la awareness sensorial (relativa a la vivencia del pasado) y la awareness deliberada (relativa a la vivencia del futuro); ii) y la intencionalidad reflexiva (o de acto), que es aquella en la forma de la cual nosotros ‘representamos’ todo aquello que antes vivimos operativamente. Ahora, la awareness reflexiva es el correlativo gestáltico para esa intencionalidad intelectual.
La awareness reflexiva generalmente aparece en el consultorio después de una vivencia de contacto. Acto continuo al evento de esta, el consulente puede responder con una elaboración teórica, la cual puede estabilizar la angustia frente a lo inusitado, o inhibir aquello que prometía ser inédito. De todos modos, lo importante es señalar que la awareness reflexiva es siempre posterior a las vivencias operativas. El darse cuenta no coincide con el sentir y con el actuar. Por eso, en la clínica gestáltica, no hay como alguien pueda darse cuenta de lo que siente o hace, a menos que lo haya sentido o hecho antes. Y eso explica el primado que los clínicos gestálticos dan a las vivencias desencadenadoras de situaciones de contacto. O, entonces, eso explica la primacía que los clínicos gestálticos dan al acto, a punto de entender el lenguaje antes como una acción que como una transmisión de deber.

5. Self como sistema de contactos
Conforme vimos, uno de los aspectos de la awareness (entendido como dinámica específica del contacto) es la vivencia presuntiva –y nunca realizada- de mi propia unidad histórica, que puedo asumir como siendo mía o de mi consulente. A cada vivencia de contacto, experimento a mí mismo como eso que se lanza al frente mientras sintiese todavía por hacer, coincidencia todavía por alcanzar, deseo. Y es de esa idea de unidad presuntiva que PHG infieren la noción de una subjetividad ensanchada que no es diferente del flujo de contacto. “Vamos a llamar “self” al sistema de contactos en cualquier momento. (…) El self es la frontera-contacto [órgano de la awareness] en actividad; su actividad consiste en formar figuras y fondos” (1951, p. 15) incluso, conforme los autores: “El self es el sistema de los contactos presentes y el agente del crecimiento” (1951, p. 188). O, entonces:

Al complejo sistema de contactos necesarios para el ajuste en un campo difícil, lo llamamos “self”. Se puede considerar que el self se sitúa en la frontera del organismo, pero esta frontera no está aislada del entorno; contacta con el entorno; pertenece a ambos, al entorno y al organismo. (1951, p. 189)

Por eso: “no se debe pensar en el self como una institución fija: existe en donde y cuando existe, de hecho, una interacción en la frontera”. (1951, p. 189).

El self, en este sentido, es siempre la producción de un potencial, que nunca puede ser alcanzado como actualidad, pero que, al mismo tiempo, se anuncia en esa actualidad como un horizonte de orientación, para donde, en fin, la propia actualidad se escurre. Él no es una entidad, un subsistente óntico, sino el conjunto de funciones y dinámicas, por cuyo medio el campo organismo/medio, al mismo tiempo en que se “conserva” en cuanto dimensión histórica genérica, “crece” (en cuanto organismo) y se transforma (en cuanto medio) junto a los horizontes de futuro que se abren (para su propia historicidad). Así comprendido, el self es una suerte de espontaneidad, que somos nosotros mismos, siempre engajados en una situación –que es el campo organismo/medio- en el cual nosotros nos experimentamos únicos (y, en ese sentido, finitos) de diversas formas: como seres anónimos (en las funciones vegetativas, en el sueño, en la sinestesia, en el hábito, en los sueños, etc.), como individuos (en la sensomotricidad, en las formas de conciencia que la habitan, en el habla, etc.) y como “realidades” objetivas (en las identificaciones imaginarias, en las formaciones lingüísticas ya sedimentadas como adquisición cultural, en las instituciones, en los ideales, etc.).
Tal significa decir que “no se debe pensar en el self como una institución fija: existe en donde y cuando existe, de hecho, una interacción en la frontera. Parafraseando a Aristóteles, “Cuando me pellizco el pulgar, el self está en el pulgar dolorido” (PHG, 1951, p. 189). En cuanto sistema de contactos –que integra siempre funciones perceptivo-proprioceptivas, funciones motoras musculares y necesidades orgánicas– el self no es una “estructura” fija. O, entonces, el self no es la regularidad de una combinatoria para la cual no puede haber cambios. Al contrario, en cuanto proceso, el self es una integración no ociosa: él es el “ajuste creativo” de la historicidad del campo organismo/medio. Se trata de un sistema intencional (o sistema-awareness): a partir de un fondo de hábitos que surgen como pasado a orientar, afectivamente, lo que pasa como figura en el presente, se abre –por obra de esa figura- un horizonte de futuro, un horizonte de posibles destinaciones a los afectos surgidos. En este sentido, “(e)n las situaciones de contacto, el self es el poder que forma la Gestalt en el campo; o mejor aún, el self es el proceso figura/fondo en las situaciones de contacto” (PHG, p. 190). Como consecuencia de eso, PHG (1951) van a decir que el self es, sobre todo, la “actualización del potencial” (1951, p. 191), que soy yo mismo en cuanto historicidad disponible a cada nuevo contacto, a cada nuevo evento de frontera en el campo organismo/medio.
Y es siempre en el campo organismo/medio que, espontáneamente, yo me experimento como self, lo que no significa que yo me experimente siempre de la misma manera. En la respiración, yo soy yo mismo, aunque muy mal yo me distinga de la atmósfera que inspiro y expiro. Lo que es diferente de ese yo que decide, por algunos segundos, suspender la respiración. O incluso, de ese otro que, habiendo experimentado la imposibilidad de existir independientemente del aire que respira, “se representa” como un “ser-en-el-mundo”. Y es aquí, en esas tres formas elementales de vivencia de mí mismo como funcionamiento medio de la experiencia, la dirección según la cual PHG describen las operaciones básicas o funciones del self.

6. las funciones del self
Conforme dijimos más arriba, no obstante el modo peculiar según el cual se apropiaron de la fenomenología, PHG conservaron de Husserl la sistemática, la cual consiste en: “reducir” el análisis del sistema de contactos (también denominado de self), primeramente, sus estructuras o funciones esenciales y, después, sus dinámicas basilares (sobre las cuales hablaremos en el punto siguiente). Como sabemos, cada sesión es un sistema self diferente, una nueva tentativa de repetición de lo que conservó hasta allí y una nueva búsqueda de autorización de sí: del clínico como alguien capaz de acompañar la autorización de otros; del consulente como el protagonista de su propia vida. Aún así, en cada una de las sesiones, podemos reconocer, en los términos de una analítica fenomenológica (tarea de la psicología formal fenomenológica), funciones que se repiten y que no son más que invenciones del terapeuta gestáltico para ayudarlo en el reconocimiento técnico de los procesos intencionales que puedan estar aconteciendo o no; lo que supuestamente abre para él posibilidades de inserción y, en este sentido, de realización de su deseo, del deseo del clínico: acompañar la autorización de otros. Y es en este sentido que los fundadores de la Terapia Gestalt dirán que: “(e)l sujeto-objeto de una psicología normal [formal, conforme el original]”, disciplina fenomenológica propuesta por Husserl, pero que, en la pluma de los fundadores de la Terapia Gestalt, se volvió una fenomenología aplicada, empírica, “sería la clasificación exhaustiva, la descripción y el análisis de todas las estructuras posibles del self (Este es el sujeto-objeto de la fenomenología)” (1951, p. 195).
De un punto de vista clínico –lo que significa decir, de un punto de vista que lleva en cuenta la posibilidad de constitución de un todo presuntivo llamado “mi-otro-yo-mismo”- podemos describir por lo menos tres funciones diferentes operando en el proceso de contacto que se establece en el transcurrir de una sesión. Se trata, en verdad, de una presentación psicológica (Ello, Yo y Personalidad) de los tres procesos intencionales (awareness sensorial, awareness deliberada y awareness reflexiva) que componen los ajustes creativos producidos en régimen de contacto. En las palabras de PHG: “(c)omo aspectos del self en un acto simple y espontáneo, el Ello el Yo y la Personalidad representan las etapas principales del ajuste creativo”. (1951, p. 195)
Tal como las tres dimensiones del sistema-awareness, las tres funciones clínicas mencionadas más arriba no son tres partes del sistema self, o tres etapas que yo podría observar en una sucesión cronológica. Al contrario, las tres funciones son sólo tres puntos de vista diferentes que yo puedo tener de una misma experiencia, que es el sistema self en funcionamiento –en nuestro caso: una sesión terapéutica. Tal significa que, en cada experiencia vivida (o sea, en la cual hay un flujo de awareness), yo tengo las tres funciones concomitantemente. El objetivo de una o de otra es una elección teórica de quien está describiendo la experiencia. Si, en la sesión, el consulente dice “Soy yo que estoy respirando en este momento”, se trata ahí de un solo ajuste creativo que formaliza, simultáneamente: i) una personalidad, una réplica verbal de un “contenido objetivo” (marcado por el pronombre personal “yo”), lo cual “representa” la unidad de una experiencia que antecedió la frase en cuestión y con la cual el consulente se identifica; ii) una función yo, que es la acción misma del decir, la cual sólo es posible si el consulente retoma, por medio de su aparato fonador y de sus posibilidades de articulación motora, una forma lenguajera adquirida en el pasado; iii) y una función ello, que es la propia forma lenguajera, la cual no es todavía un contenido objetivo con que el consulente pueda identificarse (función personalidad). La forma lenguajera es sólo el índice impersonal de la ligación mundana del consulente con el clínico y con los hablantes de la lengua española y que, en el momento de la sesión, intenta repetirse, impulsando a la función yo a crear un nuevo decir por medio de las posibilidades abiertas por la actualidad física de la situación. Además de esa forma lenguajera, hay otros hábitos motores que el hablante no percibe que repite y que, en este sentido, también se manifiestan en él como una función ello, repertorio de conductas amplias e indeterminadas que hacen “sentir” junto a las acciones individuales (función yo) como orientación intencional o “excitación”.
No es nuestro objetivo disertar sobre las tres funciones descritas por PHG. Ya lo dijimos en otro trabajo (Müller-Granzoto & Müller-Granzoto, 2007, p. 84-93). Nuestro interés en mencionarlas está ligado a la tarea sobre la cual pasamos a preocuparnos a partir de ahora que es aclarar cómo se da esa dinámica de realización de un potencial que es el sistema self.

7. Self y temporalidad
Así como hicieron relativo a la experiencia del contacto tomada individualmente, PHG comprendieron la necesidad de una elucidación temporal de la dinámica específica del sistema complejo de contactos, que es el self. De esa forma, los autores no sólo cumplirían el rigor analítico exigido por la fenomenología, que siempre va del fenómeno considerado topológicamente a su modo de manifestación personal, como también ampliarían, para el dominio del sistema self, aquello que ya habían reconocido para el microuniverso de cada experiencia de contacto, precisamente: que la vivencia de correlación –del cual el self es tan solamente una lectura posible- se caracteriza por un flujo, en que nuestro objetivo es una unificación siempre presuntiva y, por eso, pasajera de nuestra vida de generalidad. Si, antes, para aclarar la dinámica específica de esa vivencia que viene a sustituir la noción psicoanalítica de transferencia –cual sea esa vivencia, el contacto- los autores propusieron una “fenomenología de la awareness”; ahora, para comprender el encadenamiento de las sesiones o, lo que es la misma cosa, un flujo de vivencias de contacto, ellos necesitaron proponer una “fenomenología del self”. He ahí porque retomaron las nociones de “sentir” y “excitación” (relativas a la awareness sensorial) y las de “formación” y “destrucción” de Gestalt (relativas a la awareness deliberada) –a las cuales corresponden las microdinámicas de cada experiencia de contacto-, atribuyendo a aquellas nociones una característica todavía más formal, que las habilitase a describir el paso de una vivencia de contacto a otra o, incluso, el sistema self “en funcionamiento”. Como sucedáneo de las nociones de i) asimilación, ii) sentir y excitación, iii) formación de Gestalt y iv) destrucción de Gestalt, introdujeron los términos: pos-contacto, pre-contacto, contactando, y contacto final. Ahora, ¿qué es lo que exactamente designan esos términos? ¿En qué sentido caracterizan la dinámica específicamente temporal del self en cuanto un sistema de contactos?
Luego en las primeras páginas de la tercera parte del segundo volumen del libro Terapia Gestalt, sus autores vuelven explícito el carácter eminentemente fenomenológico de la descripción dinámica que se proponen hacer del self. Se trata de entender el self como la “actualización del potencial”, lo que significa decir que:

(e)l presente es el pasaje del pasado hacia el futuro, y pasado, presente y futuro son las etapas de un acto del self cuando contacta la realidad. (Es probable que la experiencia metafísica del tiempo sea, en primer lugar, una lectura global del funcionamiento del self). (PHG, 1951, p. 191)

La afirmación lacónica, pero crucial, que reconoce en la “experiencia metafísica del tiempo” el sentido profundo del funcionamiento del self, no deja dudas sobre la orientación fenomenológica de las descripciones que sus autores pretenden establecer. Al final, la experiencia metafísica del tiempo es justamente el tema del cual se ocupa Husserl en sus Lecciones sobre la fenomenología de la conciencia interna del tiempo (1893); tema ese que reaparece articulado con la noción de reducción trascendental en la obra Ideas (1913), la cual, por su vez, sirvió de base para Goodman proponer la redacción definitiva de la teoría del self, según él mismo admitió en carta dirigida a Köhler (conforme STOEHR, 1994, p. 80).
En su tentativa para explicitar de qué modo nosotros vivimos, antes de representarla, la unidad de nuestra inserción operativa en el mundo de la vida, Husserl propone un diagrama, en que simboliza las dos dinámicas fundamentales que constituyen nuestra experiencia mundana más fundamental, precisamente, la vivencia íntima del tiempo. Conforme tal diagrama, toda vez que somos afectados por una materia impresional, por ejemplo, una nota musical, si esa experiencia fue capaz de dar, a mis vivencias pasadas, la ocasión de una retomada, ella no desaparece tan luego yo oiga otra nota. La primera nota permanece “retenida” como horizonte duradero para nuevas percepciones, lo que no quiere decir que permanezca inalterada. A cada nueva vivencia, aquella que quedó retenida sufre una pequeña modificación. Incluso así, permanece como fondo disponible a la espera de retomada. Razón por la cual, el valor de cada nueva nota escuchada no se restringe a las propiedades materiales que esa misma nota fuera capaz de movilizar, pero incluye un fondo de vivencias pasadas, para las cuales la nota actual abrirá perspectivas, posibilidades de retomada. Y es ahí que, en torno de cada vivencia material, se forma un “campo de presencia” temporal (Husserl, 1893, p. 141), en que el pasado y el futuro no están ausentes, pero comparecen como horizontes virtuales. La formación de ese campo Husserl denomina de “síntesis pasiva” de mis propias vivencias (Husserl, 1893, p. 107). Se trata de una síntesis pasiva por cuanto ella no requiere el trabajo (judicativo) de representación de mi propia unidad o de la unidad de las cosas y personas a mí alrededor.
Esta síntesis, de la misma forma, no permanece eternamente. Tan luego un nuevo dato material surja demandando la participación de mis horizontes de pasado y futuro, ella se desarma en provecho de la configuración de otra, lo que configura una nueva forma de síntesis, la cual Husserl denomina de “síntesis de transición” (Husserl, 1924, p. 256-7). Es tal síntesis que asegura a mi propia historia una auto aparición fluida, por cuanto, a cada nueva aparición, es la misma historia que retorna, pero en una configuración diferente. En las palabras de Husserl (1893, p. 107-108), se trata de una síntesis:
pre-fenomenal, pre inmanente, constituyese intencionalmente como forma de la conciencia constituyente del tiempo, y en sí propia. El flujo de la conciencia inmanente constitutiva del tiempo no es sólo, pero él es de una manera tan notable, y sin embargo comprensible, que en él se da necesariamente una auto aparición del flujo, a partir de la cual el propio flujo debe poder ser captado en su fluir.

En el diagrama a seguir, que adaptamos (Müller-Granzotto & Müller-Granzotto, 2007, p. 100) a partir de la lectura que Merleau-Ponty (1945, p. 477) hizo de las representaciones gráficas elaboradas por el propio Husserl (1893, p. 177), se presenta la orientación temporal desencadenada a partir y en torno de cada dato material ocurrido en la “serie de los ahoras” (A, B, C, D…). Para Husserl, los eventos de esa serie no están conectados entre sí, no hay entre ellos una relación de complicidad o de causa y efecto. Cada cual, no obstante, se liga a los demás de forma oblicua, por medio de las retenciones de pasado o de las expectativas alzadas más allá de sus propias constituciones materiales. De suerte que, cada línea oblicua representa un campo de presencia provisorio y pasajero. Al final, cada una de esas líneas sólo puede valer en un determinado instante del flujo, que es precisamente aquel en que el dato gana actualidad material.

Ahora, cuando se ocupan de describir el “self como actualización del potencial” (PHG, 1951, p. 191), los fundadores de la Terapia Gestalt establecen una descripción que en mucho se aproxima de la forma como Husserl comprende el flujo de nuestra vivencia íntima del tiempo. En este sentido, dicen aquellos autores (1951, p. 191-192):

Al concentrar la consciencia inmediata [awareness] en la situación real, el carácter pasado de esta situación está dado como el estado del organismo y del entorno; pero simultáneamente, en el mismo instante de la concentración, lo dado inmutable se disuelve en múltiples posibilidades y se ve como una potencialidad. A medida que avanza la concentración, estas posibilidades se reconvierten en una nueva figura que surge de la potencialidad, que es el fondo: el self se experimenta entonces como identificándose con alguna de estas posibilidades y rechazando otras. El futuro, lo que viene, es la dirección de este proceso, dirección que se da a partir de múltiples posibilidades hacia una nueva figura única.

Conforme demostramos en otro trabajo (Müller-Granzotto & Müller-Granzotto, 2007, p. 103), podemos reconocer, en ese paso, una serie de distinciones conceptuales importadas del discurso fenomenológico. Tal como Husserl – que al describir la dinámica de la conciencia trascendental diferenciaba el nivel reflexivo del nivel operativo- PHG distinguen nuestras construcciones abstractas de la experiencia pasada de aquello que tales construcciones propiamente representan, a saber, la experiencia de formación de figuras a partir de un fondo histórico. Tal experiencia, según ellos, no carece de una deliberación reflexiva. Ella se da de una forma espontánea, como una “awareness en la situación concreta”, que al mismo tiempo en que se ocupa de fijar un dato a partir de un fondo de preteridad en el campo organismo/medio, ve esa preteridad renovarse como posibilidad futura, en busca de un nuevo dato. El self, entonces, se ve cautivado por esas posibilidades –con las cuales se identifica o en las cuales se aliena- en provecho de un acontecimiento que él mismo no controla, que es el surgimiento de una nueva figura. Lo que hace de él la unidad de un flujo temporal que se renueva a cada situación concreta y en provecho de la situación siguiente, junto a la cual la situación antigua es asimilada.
Aún así, el estilo fenomenológico de esa descripción temporal del funcionamiento del sistema self recibe de los fundadores de la Terapia Gestalt una redacción propia, que da continuidad a las descripciones temporales del proceso de contacto considerado individualmente. Las nociones de awareness sensorial y awareness deliberada, que antes designaban las orientaciones temporales implícitas a cada experiencia de contacto, ahora pasan a valer como un sistema-awareness (PHG, 1951, p. 206). Y las partes constitutivas de la awareness sensorial (precisamente, la asimilación y el sentir/excitación) y de la awareness deliberada (la formación y la destrucción de Gestalten), ahora pasan a designar las orientaciones temporales del propio self, razón por la cual van a recibir nuevos nombres, conforme ya habíamos mencionado: pos-contacto y pre-contacto (en el caso de la awareness sensorial) y contactando y contacto final (en el caso de la awareness deliberada).
Del punto de vista del flujo que se renueva a cada experiencia de contacto, la preteridad de la situación, que es la awareness sensorial, no se consume en el trabajo de asimilación

Resumo: Trata este artigo de um ensaio sobre a gênese social das funções do self e dos ajustamentos no universo infantil até os 03 anos de idade. Apoiamos nossa investigação nos cursos que Maurice Merleau-Ponty ofereceu na Sorbonne, até 1949, na cátedra de Psicologia da Criança. Utilizamos os interlocutores de Merleau-Ponty (especialmente Henri Wallon, Paul Guillaume, Elza Köhler e Jacques Lacan) para conjecturar, nas diferentes regiões de desenvolvimento pensadas por esses autores, a possível gênese das funções do self e os possíveis ajustamentos que as crianças possam estar operando. Entretanto, não estamos preocupados com a efetividade dessas regiões ou da cronologia a elas associada. Ambas são hipóteses auxiliares que nos ajudarão a postular uma ficção sobre como possivelmente o sistema-self se cria e se desenvolve como um empreendimento social.

Palavras-chave: Teoria do Self Funções do self Ajustamentos criadores Infância

GRANZOTTO, R.L.; MÜLLER, M.J. “Rudimentos para a teoria da gênese social das funções do self e dos ajustamentos criadores do universo infantil”. Centro de Documentação da Gestalt-terapia Brasileira. URL: http://www.igt.psc.br/ojs2/index.php/cengtb/article/view/220/442

1. Teoria do desenvolvimento infanto-juvenil na literatura gestáltica

Apesar dos esforços de Michel Vincent Miller (1999) e Gordon Wheeler (2002, 1998), nos Estados Unidos da América, no sentido de produzir uma teoria gestáltica do desenvolvimento infantil inspirada em categorias fenomenológicas, muito próximas daquelas empregadas na obra Gestalt-terapia (1951), não há, na literatura da Gestalt-terapia, uma teoria do desenvolvimento infantil pensada a partir da teoria do self, especificamente. No Brasil, pode-se dizer o mesmo. Temos excelentes profissionais e uma tradição consolidada de intervenção gestáltica na clínica infanto-juvenil. Cometeríamos impagáveis injustiças se fôssemos citar nomes, pois felizmente são muitos. Mas, infelizmente, no campo da produção bibliográfica, a quantidade de trabalhos publicados não reflete a qualidade daquela tradição. Em compensação, os trabalhos efetivamente publicados são de altíssimo nível e demonstram a preocupação dos autores no sentido de fornecer, aos clínicos, uma versão gestáltica dos processos de desenvolvimento na criança e no adolescente. Nossa proposta aqui se limita a incrementar essa versão gestáltica, introduzindo uma leitura dos processos de desenvolvimento na criança e no adolescente à luz da teoria do self.
No que se refere às publicações em nosso vernáculo, vale destacar os artigos de Myrian Bove Fernandes (1998, 1996, 1995, 1992) e a dissertação de Rosana Zanella (1992), os quais postulam a necessidade de se pensar a problemática do desenvolvimento à luz da abordagem gestáltica, o que significa dizer, sem fazer concessões a um tipo de lógica determinista, que faria dos primeiros acontecimentos da vida da criança o vetor inquebrantável do que viesse a acontecer depois. Myrian e Rosana utilizam-se da obra Gestalt-terapia (1951) para elucidar uma compreensão de desenvolvimento pensada a partir da noção de auto-regulação. Nenhuma delas, entretanto, inclui as categorias pertencentes à teoria do self, especialmente aquelas conhecidas como funções do self: função id, função de ego e função personalidade. Talvez, porque o objetivo de seus trabalhos consiste em pensar mais a prática clínica gestáltica e menos os temas metapsicológicos.
Ainda no campo das publicações, devemos destacar o trabalho de Luciana Aguiar. A partir de sua respeitável prática clínica, Luciana Aguiar lançou, em 2005, uma obra decisiva para o futuro das investigações sobre a prática clínica gestáltica no universo infantil. Trata-se do livro “Gestalt-terapia com crianças: teoria e prática” (2005), no qual apresenta, além de uma detalhada discussão sobre a sistemática da clínica infantil e sobre as estratégias de intervenção internacionalmente consagradas, uma compreensão do desenvolvimento infantil à luz das categorias-chave da Gestalt-terapia apresentadas nas duas primeiras partes da obra “Gestalt-terapia” (1951), especialmente as noções de awareness, contato e ajustamento criativo. Ademais, ela empreende um respeitável esforço de integração das categorias diagnósticas empregadas pelos mais renomados gestalt-terapeutas no Brasil e exterior, no sentido de configurar uma base de referência para a atuação clínica com crianças. Não obstante ela citar, no capítulo que se intitula “O desenvolvimento do ser humano sob a perspectiva da Gestalt-terapia”, a importância da noção gestáltica de self para se compreender o desenvolvimento, ela também não utiliza as categorias específicas da teoria do self, por exemplo, as funções elementares, cuja gênese queremos agora estabelecer.
Ora, no ensaio que agora apresentamos, queremos unir forças às reflexões dos colegas supra e de outros mais, no sentido de produzir subsídios que possam contribuir para a consolidação de uma teoria gestáltica do desenvolvimento infanto-juvenil. Não é nosso interesse por ora refletir sobre a prática clínica no campo infantil – mesmo por que tal trabalho já foi magistralmente estabelecido pelas autoras supra. Nossa modesta contribuição visa agregar, às reflexões até aqui estabelecidas, as categorias empregadas na teoria do self. Trata-se, nesse primeiro ensaio, de compreender a gênese das funções de campo com as quais estamos nos ocupando, precisamente, as funções id, função de ego e função personalidade. Nossa hipótese é que elas são aquisições do crescente processo de socialização e dos conflitos que nele se estabelecem.
Assim como Michel Vincent Miller, apoiaremos nossa hipótese nos cursos que Maurice Merleau-Ponty ofereceu na Sorbonne, até 1949, na cátedra de Psicologia da Criança. Vamos utilizar os interlocutores de Merleau-Ponty (especialmente Henri Wallon, Paul Guillaume, Elza Köhler e Jacques Lacan) para conjecturar, nas diferentes regiões de desenvolvimento pensadas por esses autores, a possível gênese das funções do self e os possíveis ajustamentos que as crianças possam estar operando. Entretanto, não estaremos preocupados com a efetividade dessas regiões ou da cronologia a elas associada. Ambas são hipóteses auxiliares que nos ajudarão a postular uma ficção sobre como possivelmente o sistema-self se cria e se desenvolve como um empreendimento social.

2 - Descompletude infantil, o semelhante e os ajustamentos de preenchimento

Mesmo sendo verdade que, até por volta dos 06 meses depois do nascimento, quando finalmente se completa o processo de mielinização das terminações nervosas, o corpo humano ainda carece de um sistema consolidado de articulação entre o horizonte externo e o horizonte interno de suas vivências perceptivas, ele já manifesta os efeitos dos processos de socialização aos quais está submetido. O que significa dizer que, não obstante a indistinção entre o “interior” e o “exterior”, para a criança, o semelhante é uma dimensão notável e originária, a partir e por meio da qual produz ajustamentos criativos. É verdade que esses ajustamentos ainda não caracterizam genuínas vivências de contato entre o passado assimilado e o futuro de possibilidades. Mesmo por que, nessa altura de sua vida, a criança ainda não tem um fundo adquirido, não assimilou uma função id. Outrossim podemos compreender a vigência de certas deliberações motoras, às quais desde 1942 Fritz Perls reunia sob o nome de funções de ego.
Conforme Merleau-Ponty (1949), Paul Guillaume admira-se com os espasmos esboçados por uma criança de 09 dias quando o campo visual da mesma é invadido pela fisionomia adulta. A diferença na intensidade dos movimentos esboçados ante o rosto humano ou ante os objetos inanimados faz crer que, apesar da aparente “descompletude” (Guillaume, apud Merleau-Ponty, 1949, p. 309), a criança é “sensível” aos apelos implícitos no “modo de olhar” empreendido pelo adulto. Mesmo sendo impossível afirmarmos que possa distinguir entre o corpo-próprio e o corpo do semelhante, as reações que esboça nos permitem conjeturar que ela é afetada por demandas, as quais, nesse momento, não são mais que “vozes”, “olhares”, “sensações táteis” e outras tantas mais vividas de maneira parcial e impessoal. Com 02 meses de vida, mesmo precisando fixar o olhar na mão do adulto a quem observa, a criança ensaia em sua própria mão os movimentos do observado. Há já aí senão uma transitividade ao menos uma capacidade de transcendência e, nesse sentido, de participação no mundo. Mais tarde, por volta dos 03 meses, agora segundo o comentário de Henry Wallon (cfe Merleau-Ponty, 1949, p. 309), as crianças gritam quando submetidas a um ambiente com muitas vozes humanas, como se tivessem sido “contaminadas” por aqueles sons. Trata-se de reações alucinatórias frente a acontecimentos que parecem exigir muito mais do que a criança possa oferecer. O que evidencia, por um lado, a ocorrência primordial de uma função criativa, solidária aos eventos de campo que estiverem acontecendo, que é a função de ego; por outro, a ocorrência de um primeiro ajustamento criativo, que é o preenchimento alucinatório.
Ora, já na obra Ego, Fome e Agressão (1942) Fritz Perls advogava em favor da tese de que há, mesmo para os recém-nascidos, uma função ativa, não distinta da própria atividade muscular, à qual denominava de função de ego. Em 1936, Perls apresentou, na Checoslováquia, por ocasião do Congresso Internacional de Psicanálise daquele ano, um trabalho que tratava das resistências orais. Seu objetivo era mostrar, contra o que era cânone na teoria psicanalítica freudiana da época, que mesmo crianças muito pequenas, em fase de formação da dentição, já estavam providas de uma capacidade de deliberação, independentemente daquilo que se supunha ser uma pulsão ou um instinto. Tal capacidade, ademais, precederia a formação do campo pulsional. Perls denominou-a de “função de ego”. Conforme Perls (1942), ego corresponde a uma função do organismo no meio; no sentido em que se considera que a respiração tem relação com uma função dos pulmões na troca de gases do organismo: “pulmões, gases e vapor são concretos, mas a função é abstrata – embora real.” Da mesma forma, “o ego é igualmente uma função do organismo” (p. 205), mas não uma parte dele. Essa função, ademais, não estaria precedida por uma orientação ou “saber” prévio; motivo pelo qual, no caso das crianças recém-nascidas, as reações motoras (equivalentes da própria função de ego) pareceriam alucinatórias.
De fato, nesse primeiro momento, em que a fisiologia primária da criança ainda não consegue se auto-regular integralmente, em que não há para ela um repertório de hábitos adquiridos e, conseqüentemente, uma orientação intencional espontânea (awareness sensorial), a função de ego opera de maneira quase errática. Trata-se de uma espécie de deliberação difusa. Ela é especialmente verificável quando as crianças estão submetidas aos estímulos e às demandas afetivas que os adultos formulam na forma de “voz”, “olhar”, “toque”, enfim, gestos indistinguíveis para a criança. Para lidar com essas demandas, a função de ego alucina reações, por meio de vários expedientes desvinculados das possibilidades ou expectativas sociais, como o balbucio, a ecolalia, o grito, o choro, a fixação perceptiva, os espasmos musculares, dentre outros. Tais reações caracterizam a primeira versão daquilo que passaremos a chamar de “ajustamentos de preenchimento”. Como ainda não há, para a criança, um repertório de hábitos adquiridos, como não há um fundo formado e, nesse sentido, uma função id disponível, a função de ego precisa alucinar o fundo a partir do qual poderá senão responder ao menos estabelecer uma forma de satisfação possível frente às demandas. O que significa que tais comportamentos alucinatórios não são, de forma alguma, patologias (às quais devêssemos denominar de esquizofrenias infantis) ou desvios no desenvolvimento infantil. São ajustamentos criativos, invenções da função de ego para lidar com aquilo que se apresenta mais além das possibilidades materiais da criança nessa idade, precisamente, a demanda afetiva. A característica fundamental desses ajustamentos consiste na habilidade da função de ego para preencher a angústia (decorrente da ausência de respostas frente às demandas) por meio de sons, movimentos e condutas de fixação, os quais fariam às vezes da função de id até então ausente.
É possível, entretanto, que a função de ego (na criança até os 06 meses) procure afastar ou aniquilar as demandas - as quais, nesse momento, se apresentam a ela de forma incoativa e sem qualquer sentido. A função de ego pode fazê-lo por meio do isolamento social ou mutismo comportamental, os quais, caso sejam muito freqüentes e se prolonguem depois dos primeiros 36 meses de vida, podem constituir prognóstico de autismo, que é também um tipo de ajustamento criativo. Diferentemente dos ajustamentos de preenchimento, os ajustamentos autistas não se ocupam de produzir, independentemente das possibilidades fornecidas pela atualidade vivida pela criança, respostas às demandas. Para as crianças com menos de 01 ano, os ajustamentos autistas cumprem tão-somente a função de aniquilar as demandas, de sorte a livrá-las da tensão decorrente de não poderem identificar o que delas se quer. A persistência das respostas autistas depois disso indica que uma condição especial se estabeleceu, precisamente, que o fundo de excitamentos não se formou.

3 - A sociabilidade incontinente, o “pequeno outro” e os ajustamentos delirantes

Entre os seis meses e o primeiro ano de vida, temos aquilo que, hipoteticamente, poderíamos considerar ser a primeira etapa da primeira infância – à qual Wallon (conforme Merleau-Ponty, 1949, p. 310) denomina de vivência da “sociabilidade incontinente”. Diferentemente de antes, o corpo-próprio e o do semelhante já não são mais, para a criança, indistintos e com função social incipiente. Possivelmente como decorrência da maturação da fisiologia primária, a criança parece circular entre os horizontes interno e externo de suas vivências perceptivas, não ainda como um indivíduo cônscio de si, mas como habitante de um sistema de equivalências motoras intercambiáveis. Do mesmo modo como pode ver o dedo esfolado e senti-lo doendo, ela parece entregue a um transitivismo primordial, vivido, sobretudo, nas relações parentais, como se pudesse assumir o corpo dos pais, de sorte a confiar a eles a dor que estivesse a sentir. As demandas já não são tão indistinguíveis como antes. As vozes, os olhares, os toques estão interligados na forma de jogos sociais elementares, frente aos quais a criança tem uma atitude ambivalente. Em certa medida, podemos dizer que a demanda que a criança começa a enfrentar é a inclusão em um “jogo” comunitário, também conhecido como brincadeira.
A principal diferença, entretanto, em relação ao momento da descompletude inicial talvez consista no fato de que, mais do que a demanda qualificada, a criança é agora surpreendida pela expressão, em si, de algo que ela mesma sequer escolheu, precisamente, o hábito motor. Como que, por milagre, os primeiros passos – antes ensaiados - dão lugar a um andar “automático”, ainda que trôpego, como se essa habilidade já estivesse ali desde sempre, apenas aguardando a maturação óssea e muscular. A criança começa a viver a autodoação de hábitos motores de toda ordem, os quais constituem a primeira aparição daquilo que chamamos de “excitamento disponível” ou “função id”. Trata-se, em verdade, da primeira manifestação do mundo intersubjetivo não mais como dado de realidade, mas como “pequeno outro”, fundo de orientação sensorial ou awareness sensorial. Há agora para a criança (enquanto função de ego) uma espontaneidade que se impõe não mais a partir das demandas na realidade, mas a partir de uma inatualidade sobre a qual nem ela nem ninguém têm controle. O “olhar”, a “voz”, o “gemido”, enfim, as demandas afetivas que antes se apresentavam à criança a partir dos gestos dos semelhantes; tais demandas agora parecem brotar no próprio corpo da criança como capricho, manha, jeito, enfim, modo de gozo: repetição espontânea das marcas do mundo natural e social em seu pequeno corpo. Esse é o sentido profundo da noção de hábito motor e a razão pela qual, mais do que uma aquisição anatomofisiológica ou cognitiva, ele é uma aquisição afetiva ou, simplesmente, um excitamento. Tal significa dizer – permitam-nos esse parêntesis - que o hábito motor, assim como todos os hábitos, não são representações de outra coisa, não são significantes que pudessem ser amarrados numa cadeia significativa. Quando muito, poderíamos dizer que eles são vestígios de conteúdos que não existem mais e que nunca saberemos se existiram. Trata-se do rastro de uma origem para sempre perdida e que, por conseguinte, não autoriza qualquer sorte de interpretação que pudesse restituir ao hábito seu sentido ou valor. Desse ponto de vista, um hábito não é certo ou errado, bom ou ruim, agradável ou desagradável, prazeroso ou desprazeroso. Ele é um modo de gozo. Um modo de gozo que pode se apresentar como motivo indecifrável daquilo que, por tantos outros motivos, decidimos nos tornar, decidimos fazer.
A co-presença desse pequeno outro, que é o excitamento enquanto hábito motor, não é por si só garantia de que nossa ação possa se apresentar investida de uma orientação. Tal é perfeitamente verificável junto às crianças entre 06 meses e 01 ano, aproximadamente. Acontece que, nesse momento, mas não exclusivamente nele, somos atravessados por uma miríade de hábitos que se doam como orientação, a ponto de nos perdermos. À beira do mar, o pequeno caminhante não consegue decidir entre correr, pular, enfiar os pés na areia, gritar ou chutar a pequena onda que alcança sua canela. Mais do que às possibilidades viabilizadas pela realidade material em que está inserido, o menino agora tem acesso a múltiplas orientações motoras que o surpreendem e que, naquele momento, valem para ele como excitamentos. Dividido entre tantas orientações parece atrapalhado. A insistência do pai e da mãe para que coloque as conchinhas no balde de plástico não parece concentrá-lo. O limite entre a diversão e a angústia é tênue. Rapidamente o entusiasmo se transforma em irritação. Levanta-se, ergue os braços, grita para o mar, aponta com o dedo na direção do horizonte, olha para o céu, cai sentado.... Torna a se levantar, cai novamente...; e essa seqüência parece diverti-lo. A brincadeira que finalmente encontra não está fundada numa orientação fornecida pela realidade (pelo pai, pela mãe...), nem mesmo por um hábito dominante (que denunciasse uma preferência). Trata-se de uma invenção delirante, de uma “associação mágica” entre vários modos de brincar que o invadem. O que nos permite reconhecer, junto às crianças por volta de um ano, a vigência de um tipo específico de ajustamento, que é o “delírio associativo e dissociativo”.
Antes mesmo de se ocupar das possibilidades abertas pela realidade material, a função de ego (na criança por volta de um ano) parece articular, entre si, os vários hábitos que se apresentam como fundo de excitamentos. A impressão que temos ao observar as crianças nessa idade é que os excitamentos que as atingem não têm, entre si, uma organização espontânea, tal como aquela que nos permite reconhecer a dominância de um hábito sobre outro, ou uma hierarquia de preferências. Como veremos a seguir, crianças a partir dos 06 meses já começam a demonstrar certo “estilo” de comportamento, como se determinados hábitos retornassem com mais freqüência, de sorte a podermos afirmar que têm certas preferências. Mas, tal como no caso do menino à beira do mar, tudo se passa como se a função de ego nele não pudesse contar com uma orientação única. Por outras palavras, tudo se passa como se o fundo de excitamentos (que se doou ao menino) não tivesse organização própria. Em vez de um, viriam muitos excitamentos, todos eles com a mesma intensidade ou grau de importância; o que forçaria a função de ego a declinar de explorar a realidade para primeiro escolher, entre os excitamentos, qual o mais importante. Ou, ainda, é como se a função de ego na criança precisasse, antes de brincar, articular a curiosidade em torno das mesmas possibilidades (delírio associativo). Ou, talvez, distribuir a curiosidade entre tantas possibilidades até que restasse uma (delírio dissociativo). Essas formações, que muito lembram os quadros de paranóia, não são, conforme nosso entendimento, patologias, mas ajustamentos possíveis face a provável desarticulação do fundo.

4 – Sociabilidade sincrética e as primeiras vivências de contato com awareness: ajustamentos ingênuos

Daqui não se segue que, em seu primeiro ano de vida, as crianças sejam incapazes de estabelecer experiências de contato fluidas entre o fundo que paulatinamente vai se formando e as possibilidades abertas pelo meio social e natural. Por outras palavras, em seu primeiro ano de vida, as crianças não produzem apenas ajustamentos autistas, alucinatórios ou delirantes. A partir dos 06 meses alguns hábitos impõem-se como orientação dominante e inauguram a primeira ocorrência daquilo que, em GT, denomina-se de experiência de contato com awareness sensorial. Vejamos alguns exemplos desses ajustamentos.
Wallon (segundo Merleau-Ponty, 1949, p. 311) descreve a experiência da “confiança” que crianças com 06 meses têm em relação aos seus cuidadores. Quando percebem, em seus ambientes de origem, a presença dos pais, elas imediatamente assumem posturas e comportamentos que as colocam sob os cuidados daqueles: estendem os braços na direção dos seus cuidadores, emitem sons que denotam um tipo de intimidade já desenvolvida em relação àqueles... Os comportamentos não são bizarros, como no caso dos ajustamentos de preenchimento, tampouco precisam ser ensaiados, como no caso dos ajustamentos delirantes. Eles acontecem como se fossem precedidos por um “saber-fazer” inconsciente, que não é senão o fundo incipiente de excitamentos disponíveis ou, o que é a mesma coisa, hábito motor.
Já aos 07 meses mostram-se capazes de solicitar, de seus cuidadores, uma ligação corporal tal que exclui qualquer possibilidade de divisão entre ambos. Eis, então, a primeira versão do ciúme, do “ciúme primário”, que é equivalente ao transitivismo motor entre a criança e seu cuidador principal. Desse ponto de vista, o ciúme primário é um ajustamento criativo cuja característica é a recriação do hábito de dominância do corpo do semelhante por meio do olhar, da voz e do toque. Ante a presença de um terceiro, a criança retoma esse hábito de dominância, de sorte a impedir qualquer forma de divisão entre ela e seu cuidador. Não se trata ainda de uma identificação personalista, de um narcisismo imaginário, que pudesse ser vivido como uma representação de si junto ao corpo do semelhante, como veremos um pouco adiante. Trata-se, sim, de um narcisismo fundamental, fundado na ação e, nesse sentido, impossível de ser representado ou alienado em uma imagem ou valor social. Razão pela qual, quando retorna nas relações adultas, não pode ser deslocado, sublimado, enfim, elaborado por outros meios que não a própria repetição da posse.
Já a partir dos 09 meses, acredita Wallon (conforme Merleau-Ponty, 1949, p. 318), a criança parece capaz de retomar, na forma da “crueldade”, a vivência da separação em relação ao seu cuidador principal. Enquanto ajustamento criativo, a crueldade é uma espécie de “simpatia sofredora” por alguém que dá à criança a oportunidade de reviver a “sensação” de exclusão. Nos termos de um comportamento agressivo, a criança retoma – junto a alguém por quem nutre simpatia - o gesto de separação infligido pelo cuidador. Dessa vez, entretanto, é ela que exclui. Suas ações não são justificadas por razões ou motivos, tampouco acompanhadas de avaliações ou valores, não obstante a insistência do meio social para que se responsabilizem moralmente: coitadinha da outra criança, não faça isso que é feio... Em verdade, ainda não há, para a criança nessa idade, qualquer tipo de awareness reflexiva sobre o que ela esteja fazendo, ou sobre a vinculação entre seus atos (na atualidade da situação) e as vivências de separação em relação aos seus cuidadores. Trata-se apenas de um excitamento que exige repetição e que continua a produzir efeitos por toda a vida. Se, na criança com um pouco mais de um ano, ela aparece nas condutas agressivas como o chute, a mordida, o tapa, ou em condutas de exclusão física, como o fugir, o se esconder; nos adultos, a crueldade reaparece em um sem número de comportamentos, embora freqüentemente acompanhados de avaliações morais (introjetos).
A crueldade infantil, ademais, abre espaço para que, por volta dos 14 meses, a criança possa alcançar uma primeira experiência de si, uma primeira apropriação de si, que é o “reconhecimento através da dominância”, o reconhecimento por meio do “poder”. Não se trata, ainda, de uma relação imaginária, em que a criança pudesse reconhecer seu ser em uma imagem na qual se alienasse. O reconhecimento de si não é diferente do reconhecimento das possibilidades que ela tem em relação a esse outro corpo que se apresenta para ela na realidade, que é o corpo do semelhante. A criança ainda não se identifica a esse corpo, mas quer dominá-lo. O ser que quer se reconhecer é o ser da dominância. E o meio que tal ser dispõe para fazê-lo é justamente a disponibilidade das possibilidades dominadas. O que nos leva à maneira como Friedrich Hegel, na obra Fenomenologia do Espírito (1808), aborda a problemática do reconhecimento da consciência por meio da antológica figuração da “relação dialética entre o senhor e o escravo”. Comentando Wallon, Merleau-Ponty (1949, p. 318) vai dizer que a experiência de “reconhecimento pela dominância” é, simultaneamente, a compreensão de uma “falta de poder” diante do semelhante. Tal como em Hegel, para quem o senhor só pode se reconhecer como senhor por meio do consentimento do escravo, o qual, por sua vez, por consentir a dominância ao senhor nega a si mesmo, de sorte a inviabilizar-se e, por conseguinte, ao próprio senhor, que assim se descobre em falta em relação àquele que o poderia reconhecer e, conseqüentemente, em relação a si mesmo; também para a criança, o reconhecimento de seu próprio poder passa pela constatação de que o semelhante, geralmente alguém três meses mais novo, a ela deve se submeter. Mas isso implica, da parte da criança mais nova, uma renúncia ao seu próprio ser, e por conseqüência, a interdição do reconhecimento que a criança mais velha poderia alcançar. Junto à negatividade do semelhante (criança mais nova), a criança (mais velha) descobre sua própria negatividade. Logo, ela, tal como o “senhor” hegeliano, precisa se dedicar a um novo semelhante e, assim, sucessivamente; o que abre a cadeia de deslocamentos metonímicos que define o desejo fluido. A vivência do reconhecimento, em verdade, é apenas a experiência do desejo de reconhecimento, a qual é infinita.
Na experiência do desejo de reconhecimento não-imaginário, da mesma forma, a criança experimenta sua própria parcialidade frente à presença do semelhante e, por esse meio, aquilo que doravante vai exprimir como sexualidade. Esta não é mais que o reconhecimento, na forma de uma tensão corporal, da presença sempre iminente do corpo do semelhante, ao qual se quer dominar. Sexualidade, nesse sentido, não tem relação a determinado órgão ou sistema corporal, mas à mobilização motora e sensível da criança em relação à possibilidade de se haver com o corpo do semelhante. A sexualidade, nesse sentido, pode ser vivida de múltiplas formas, mas sempre como uma postura corporal frente àquilo que escapa ao domínio, precisamente, o corpo do semelhante. Ademais, há nessa experiência uma sorte de frustração. Afinal, a criança nunca consegue alcançar algo que pudesse dominar integralmente. Mais além da experiência do ciúme, na qual experimenta um rompimento em sua ligação com o cuidador, na experiência do desejo (reconhecimento por meio da dominância) a criança depara-se com seu próprio limite, com sua dependência em relação ao semelhante. Trata-se de pequenas vivências de frustração, as quais, à medida que se intensificam, vão constituir a base para que, mais tarde, depois dos três anos, a criança delibere a inibição de seu próprio fundo de excitamentos. As frustrações, nesse sentido, constituem a gênese dos ajustamentos de evitação que, a partir dos três anos, tornar-se-ão muito freqüentes nos comportamentos das crianças. Trataremos disso um pouco adiante.
Por ora, vale recapitular que: confiança, ciúme primário, crueldade e desejo (reconhecimento através da dominância) são exemplos de experiências de contato em que, a partir de um hábito adquirido, produz-se um ajustamento fluido, ao qual Wallon – e, na esteira dele, Merleau-Ponty (1949) - denomina de sociabilidade sincrética. Nessas experiências, em que a criança opera, junto às possibilidades oferecidas pela atualidade social, com um fundo de excitamentos disponíveis – sem precisar antes preenchê-lo ou delirá-lo –, verificamos a presença das duas primeiras funções elementares de um sistema-self, que são as funções de ego e de id. Mas, em nenhuma daquelas experiências, nem mesmo na experiência de desejo (reconhecimento pela dominância), verificamos a presença da função personalidade. Esta é uma aquisição tardia, a qual depende da autodoação, para a criança, de hábitos linguageiros. Por outras palavras: é preciso que a função id, além dos hábitos motores, agora forneça, à função de ego, uma orientação linguageira. Somente dessa maneira a função de ego poderá reconhecer aquilo sem o que uma personalidade não pode nascer, a saber, o “Grande Outro”.

5 – O Grande Outro, o espelho e a formação da personalidade

A partir do primeiro ano de vida, acredita Wallon (cfe Merleau-Ponty, 1949), os processos de socialização vividos pelos infantes se intensificam enormemente. Além dos cuidadores, outras pessoas começam a fazer parte do mundo da criança e, sobretudo, outros hábitos começam a ser doar para ela como “fundo de excitamentos”. A função id parece se amplificar, de sorte a incluir, mais além dos hábitos motores, formas eminentemente instituídas nas relações sociais, precisamente, as formas linguageiras, sejam elas orais, visuais ou tangíveis, apareçam elas por meio da voz, de certas formas de escrita ou performance. Trata-se, em verdade, de uma segunda forma de apresentação do “pequeno outro”, de uma segunda caracterização do fundo de excitamentos, o qual, doravante, mudará para sempre a vida das crianças. Afinal, à medida que ela assume os muitos aspectos doados como forma linguageira, a criança descobre a presença de uma dimensão até então insuspeitada em sua vida: o Grande Outro. Revelado nos pensamentos, valores e instituições humanas, mais além da transitividade motora e linguageira vivida até ali, o Grande Outro desafia a criança a novos ajustamentos e abre para ela uma nova função de socialização: a personalidade vivida como narcisismo imaginário.
É quase unanimidade entre os teóricos que se ocupam do desenvolvimento infantil que, por volta de seus 18 meses, as crianças começam a experimentar um segundo grande “milagre” em suas vidas. Inicia-se para elas aquilo que poderíamos convencionar chamar de segunda etapa da primeira infância. Tal etapa coincide com o momento em que, mais além dos hábitos motores, as crianças testemunham em si mesmas o desabrochar das formas linguageiras. Não que, antes disso, elas já não estivessem às voltas com tais formas. Desde os primeiros balbucios (característicos dos ajustamentos de preenchimento) até os ensaios de linguagem “privada” (típico ajustamento de articulação de hábitos gestuais que ainda não funcionam como linguagem), as crianças já se ocupavam com rudimentos linguageiros. Mas estes não eram ainda hábitos disponíveis. Quando muito, tratava-se de hábitos motores não integrados ao fundo de outros hábitos (o que justificaria os esforços delirantes das crianças com menos de 18 meses no sentido de constituírem uma linguagem “privada”). Ou, ainda, aqueles rudimentos seriam dados produzidos na realidade social, verdadeiras demandas por inclusão no universo desse jogo complexo que é a linguagem adulta. Mas, tal como sucedeu antes às crianças de 06 meses em relação aos hábitos motores, as crianças por volta dos 18 meses são surpreendidas pela ocorrência de uma segunda versão do “pequeno outro”, o qual agora emerge do fundo como hábito linguageiro a orientar a fala. Por conta deste novo hábito, desta nova versão do pequeno outro, a fala nas crianças parece agora “verter” de suas bocas (tratando-se de uma criança que ouve) ou de suas mãos (se forem crianças surdas inseridas em uma comunidade de praticantes da linguagem de sinais), sem que elas tenham de primeiro ensaiar os movimentos orais ou manuais requeridos. É como se, por um passe de mágica, elas começassem a entender o uso de certos modos de fala, a ponto de habilitarem-se a empregá-los em contextos diferentes. Por conta da autodoação do pequeno outro, agora como hábito linguageiro, a função id (que se manifesta a essas crianças) sofre uma grande ampliação, habilitando os pequenos falantes a participarem de uma prática social que antes não compreendiam de forma alguma, precisamente: os jogos de linguagem na forma dos quais os adultos e as crianças mais velhas trocam demandas especiais, porquanto referidas a esse terceiro até então ausente da vida dos pequeninos: o Grande Outro.
De fato, enquanto ainda não falam espontaneamente, as crianças são indiferentes aos valores semânticos e as significâncias associadas ao ato motor de vociferar ou gesticular. A expressão “Ique” pronunciada pelo menino de 14 meses em resposta à pergunta de seu pai (“quem é o meu filho amado?”) não significa que a criança tenha se “identificado” a esse nome. Tanto é verdade que, a mesma pergunta feita num contexto geográfico distinto (na casa dos avós, por exemplo), ou a menção do nome “Ique” por parte de um familiar distante não tem efeito sobre a criança. Enquanto não começa a falar espontaneamente, ela não consegue entender a demanda por identidade veiculada pela pergunta de seu cuidador. Mas quando finalmente se torna sensível aos hábitos linguageiros, quando as formas linguageiras começam a se doar espontaneamente e, sobretudo, quando passa a notar a diferença nos modos de emprego dessas formas, o emprego inusitado que elas recebem na voz do semelhante, a criança finalmente “enxerga” o que até então era invisível: o “mentor” das palavras, o “dono” das frases, a “coisa” por detrás ou junto ao nome pronunciado, o “valor social” que as condutas linguageiras (por exemplo, os “palavrões”) possam ter... Enfim, a criança vislumbra o Grande Outro mais além dos expedientes motores e gestuais que constituíam, até ali, o transitivismo primordial vivido na forma de múltiplos ajustamentos irreflexivos, não posicionais de uma identidade imaginária. Se é verdade que, na forma da dominância, a criança acabava por descobrir, mais além de suas tentativas de controle motor, a inalienabilidade do semelhante, a ponto de passar a desejá-lo, tal experiência ainda não dava a ela a dimensão da “autoria” ou, talvez, da “autonomia” presente ao desejado por detrás das falas. Mas, agora, a criança passa a perceber que há “alguém” que se move, que fala, que também deseja. Há, por detrás da pergunta dirigida a mim, alguém que quer saber de mim e, provavelmente, há um “alguém que sou eu” por detrás da minha resposta. O Grande Outro funda, para a criança, o “mundo humano” mais além das relações sociais vividas até ali de maneira sensorial, sem “interioridade” imaginária. O Grande Outro introduz, para a criança, a demanda por identidade, implanta em sua existência motora a presunção de que há, para ela mesma, autoria.
Essa descoberta, para a criança, é marcante. Doravante, ela não vai mais simplesmente brincar, falar, se mover. Ela precisará encontrar “alguém” que lhe faça compreender “o porquê” do que se passa. Não lhe satisfaz mais apenas fazer: é preciso que haja alguém (encarnação do Grande Outro) para confirmar a existência de si como autor do feito. É necessário o testemunho da mãe, do pai, do irmão, do primo, enfim, de qualquer um junto a quem ela possa encontrar a si. As pessoas passam a cumprir para ela a função de espelho. O que não quer dizer que não tivesse o espelho em conta há muito tempo. Antes dos 06 meses, as crianças não eram capazes de desempenhar, ante a imagem especular, outro comportamento que não a fixação alucinatória; depois dessa idade, a imagem especular passa a ser integrada em uma série de jogos associativos, que incluem o corpo tangível da própria criança. Mas a associação entre a imagem da mão e a mão ela-mesma não é diferente da associação que a criança faz entre a imagem e a possível presença de alguém por detrás do espelho físico. Suas reações, até um pouco antes da aquisição da linguagem, não são muito diferentes daquelas desempenhadas pelos chimpanzés, como bem observa Köhler (1927), segundo comentário de Merleau-Ponty (1949, p. 310-313): com 57 semanas “o filho de Preyer passa a mão por trás do espelho e, descontente, dá-lhe as costas (conduta comparável à dos chimpanzés)” . Antes de falar, a criança espera do espelho físico uma espécie de abertura motora, como se tal objeto pudesse dar continuidade a ação que ela iniciara. Depois da aquisição da fala, o comportamento da criança em relação ao espelho muda completamente. Ela não se decepciona mais com o fato de não haver ninguém atrás dele, ou com o fato de ele não ter profundidade tátil. É como se o espelho não precisasse mais prolongar para a criança a ação que ela implementara. Ele simplesmente deve fazer como as palavras: revelar onde está o correlato íntimo do Grande Outro, onde está a resposta à pergunta que o Grande Outro lhe formulou: “quem és tu?”.
Poderíamos elaborar teoricamente esse fenômeno dizendo que a passagem do espelho físico ao espelho lingüístico é um ajustamento criativo estabelecido pela função de ego (na criança) para lidar com o Grande Outro que possa se manifestar junto às formas linguageiras empregadas na realidade social ou atualizadas pela criança a partir do fundo. Não é a linguagem que se tornou para a criança um espelho. Em verdade, é o espelho que se tornou linguagem. E não apenas o espelho físico: toda a imagem (visual, sonora, tangível...) transformou-se para a criança em uma linguagem, em uma versão do Grande Outro e, nesse sentido, em uma demanda por identidade. Doravante, qualquer animal que se possa ver na natureza, qualquer figura estampada em um livro de histórias comportará uma pergunta, uma espécie de pedido dirigido à criança: “será que o gatinho gosta da gente?... Veja mamãe: o desenho está piscando prá mim!”.
A construção desse espelho, da representação imagética do Grande Outro, nem sempre se dá tão imediatamente assim. O Grande Outro nem sempre é uma evidência para a criança. O que possivelmente explica os múltiplos ajustamentos de associação e dissociação que muitas crianças fazem com as formas linguageiras já adquiridas e, nesse sentido, disponíveis ao uso. Não obstante conseguirem falar, elas ainda não “entendem” o que estão dizendo. Ou ainda: elas se percebem dizendo algo que não conseguem compreender, como se o Grande Outro se dissimulasse, não aparecesse por inteiro. Eis, então, que essas crianças precisam retornar aos ajustamentos de associação e dissociação delirante. À diferença de antes, não estabelecerão associações ou divisões entre hábitos motores, ou entre rudimentos de fala. Elas já dispõem das formas linguageiras e, portanto, a questão agora é articular, como uma só demanda, como um só pedido, o Grande Outro que se anuncia nas entrelinhas daquelas formas. Não se trata mais de uma linguagem privada, mas de uma tentativa social de construção de um sentido, de um pensamento, de uma autoria; o que nos conduz a criações peculiares, como a de um menino de 02 anos, o qual ficava de boca aberta diante do livro do irmão mais velho, na esperança de que as palavras pulassem para dentro dela e começassem a narrar à história (tal como fez a personagem Emília em uma de suas aventuras no “Sítio do Pica-pau Amarelo”, conforme a ficção criada por Monteiro Lobato). Ou, então, como é muito mais freqüente, testemunhamos aquelas experiências de construção de um “amigo invisível, oculto...”, o qual não é mais que um delírio associativo em que as crianças reúnem os elementos que poderiam dar sentido ao que se quer delas nos laços sociais em que estão debutando. Quando tais associações falham, permanecendo a demanda não identificada, a criança pode operar de sorte a tentar aniquilar as muitas significações linguageiras de que dispõe. Ela então se ajusta de maneira dissociativa, o que significa dizer, de maneira a aniquilar os vestígios do Grande Outro. É o caso de uma menina de 28 meses que levantava a tampa do lixo e gritava dentro do cesto, como se, dessa forma, todas as palavras pudessem ser levadas embora.
E, mesmo para aquelas crianças que tenham conseguido compreender a presença do Grande Outro, tal não significa que as coisas tenham ficado mais fáceis. Afinal, o Grande Outro quer saber muitas coisas! E não há no repertório de formas linguageiras que se atualizam para as crianças com menos de 02 anos tantos recursos assim. Dizendo por outras palavras: pode acontecer de a criança não encontrar, junto ao pequeno outro que se apresenta para si, junto às formas linguageiras de que dispõe como fundo de excitamentos, uma resposta pronta. Por conseguinte, a alternativa para ela é produzir essa resposta. Para tanto, terá de pedir auxílio ao próprio Grande Outro; ou, mais precisamente, terá de pedir auxílio a algo que, na realidade social, represente o Grande Outro. Esse expediente também é um tipo de ajustamento criativo, a que chamamos de “identificação ativa”.
A identificação ativa é uma espécie de transição entre a ação criadora da função de ego e a alienação característica da função personalidade; como veremos a seguir. Na identificação ativa, a criança, em primeiro lugar, associa-se a um Grande Outro que a ajude a articular as formas linguageiras de que dispõe, de sorte a produzir sua própria identidade. Ela, então, empresta a identidade de alguém – como no caso do filho de W. Stern: ao nascer-lhe uma irmã, ele “identifica-se com a irmã mais velha e atribui-se o nome dela: acredita, assim, estar assumindo características da mais velha” (Merleau-Ponty, 1949, p. 320). Dessa forma, pode enfrentar a demanda que lhe ocorre em decorrência da chegada da caçula: “o que é ter uma irmã mais nova?”. Provavelmente, a mais velha soubesse. Mas, em momento algum, esse saber retorna ao filho como uma aquisição que ele pudesse reconhecer como sua. Ou, no sentido inverso, em momento algum a criança entrega seu ser a esse saber (tal como acontece quando já pode dispõe da função personalidade).
Na identificação ativa, em segundo lugar, pode acontecer de a criança não encontrar, na realidade social em que esteja inserida, uma imagem à qual pudesse se associar para responder à demanda do Grande Outro. Nesse caso, a criança pode “se fazer de morta”, o que caracteriza uma desistência diante do Grande Outro. Trata-se de uma identificação negativa, a que também podemos chamar de depressiva. Esse é o caso do menino de 36 meses que, não encontrando algo que pudesse esclarecê-lo sobre os motivos de a mãe haver ido embora (afinal, a mãe havia morrido), decidiu dormir para sempre, o que o pouparia de pensar na questão. Ora, tanto quanto a identificação positiva, a identificação negativa é um tipo de ajustamento criativo. E em ambas, trata-se de uma tentativa de articulação do fundo de formas linguageiras junto a uma imagem já dada na realidade, seja ela viva ou morta, presente ou ausente.
Mas, uma vez que a criança tem as respostas, ela alcança a possibilidade de se entregar a tais respostas, numa “identificação passiva”, que é a “alienação”. Estabelece-se, aqui, a primeira formação da “função personalidade”. Também para Perls, Hefferline e Goodman (1951, p. 200), a função personalidade é a alienação de nossa existência em uma imagem, em uma “réplica verbal” de nós mesmos. As imagens, as réplicas de nós mesmos são assumidas como verdadeiros “introjetos” que, doravante, passam a significar nossa unidade imaginária frente ao semelhante. Em certa medida, assumir um introjeto é exercitar a função personalidade. O que traz para nós uma conseqüência teórica bem importante, a saber, que a personalidade não tem relação alguma com uma substância ou identidade inata. Ela é uma construção sociolingüística, fruto de um paulatino processo de alienação em uma imagem construída de maneira sociolingüística, o que significa dizer, construída por referência a esse interlocutor tardio, que é a cultura, o universo de introjetos surgidos como Grande Outro em nossas vidas.
A vivência da personalidade, entretanto, não deve ser confundida com uma operação mental, desprovida do colorido emocional típico dos ajustamentos sincréticos. Ao contrário, trata-se de uma experiência que desperta o interesse da criança e a diverte. Nesse ponto, vale lembrar os comentários que Merleau-Ponty faz a respeito da apropriação lacaniana da noção de espelho proposta por Wallon (1945): a experiência do espelho, segundo Lacan (1949) é muito mais do que a apreensão cognitiva da própria imagem (conforme pensa Wallon). Trata-se de uma vivência afetiva, que eleva nosso narcisismo à condição de objeto da fruição. Afinal, a partir do momento que adquirimos uma imagem, tornamo-nos espetáculo para nós mesmos. Ou, nas palavras de Merleau-Ponty (1949, p. 315):
É que se trata de uma identificação no sentido pleno que a análise dá a esse termo, a saber, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem. A criança torna-se capaz de ser espectadora de si mesma. Já não é apenas um eu sentido, mas um espetáculo; é o alguém que pode ser olhado. A personalidade, antes da imagem especular, é o Id. A imagem vai possibilitar uma outra visão da personalidade (alguma coisa que se pode e deve ser), elemento primeiro de um superego. Isso pode ser considerado como a aquisição de uma nova função; contemplação de si, atitude narcísica, e por esse fato assume uma importância capital (grifos do autor).

Eis por que, para a criança, exercitar a função personalidade é experimentar uma espécie de amor próprio, o qual, doravante, vai se tornar numa das mais importantes moedas de troca social no campo sociolingüístico. Mas esse amor próprio nunca coincide integralmente com aquilo que a criança faz ou sente. Afinal, trata-se de uma imagem construída por referência ao Grande Outro; trata-se de um “introjeto” a partir da cultura, conforme a linguagem tradicional da Gestalt-terapia. Nesse sentido, não pode açambarcar tudo aquilo que se manifesta para a criança (o fundo de hábitos que a excitam ou, simplesmente, a função id), menos ainda equivaler tal e qual à ação que a criança desempenha sempre de modo individual e intransferível (função de ego). E eis aqui, nessa pequena diferença entre as produções da função de ego a partir da função id, por um lado, e os valores imaginários da função personalidade, por outro, a base daquilo que os teóricos do desenvolvimento infantil vão chamar de “crise dos três anos”. Ora, frente a essa pequena diferença entre as produções da função de ego e os valores imaginários da função personalidade, frente à possibilidade de eventuais conflitos entre o que para si mesmo é um excitamento ou uma identificação ao Grande Outro, a criança decide retrair-se por inteiro, o que significa, por um lado, inibir seus excitamentos e, por outro, declinar de certas identificações. Vejamos isso com mais detalhes no item que segue ao quadro síntese dos conceitos empregados até aqui.


6 – A crise dos três anos

Os teóricos do desenvolvimento infantil têm especial interesse no terceiro ano de uma criança. A conquista da autonomia motora e linguageira, bem como a ampliação do círculo social; ambos os fatores poderiam nos levar a esperar um incremento nos ajustamentos sincréticos e nas relações imaginárias vinculadas ao prazer. Mas não é o que geralmente acontece. A criança quebra a lógica de um desenvolvimento linear e progressivo e, paradoxalmente, se retrai como se aquilo que, antes, era convidativo e prazeroso, agora, torna-se algo ameaçador e doloroso. Talvez a mudança mais significativa, conforme Elsa Köhler (1926) consista no fato de que, aos três anos, a criança deixa de atribuir seu corpo e seu pensamento a outrem. O que, então, se passa?
De fato, se observarmos uma criança de três anos perceberemos que ela deixou de se confundir com as situações (de vivência transitiva) e com os papéis sociais (aos quais estava identificada). Agora “ela é alguém que está aquém de suas diferentes situações”, bem como “aquém dos diferentes papéis” assumidos a partir de sua alienação junto ao Grande Outro (Merleau-Ponty, 1949, p. 332). Se é verdade que, por conta da função personalidade, ela conseguiu fazer de si mesma um espetáculo, doravante, este espetáculo não pode mais ser público. A transitividade gozosa das vivências sincréticas, por um lado, e o prazer e o desprazer implicado no narcisismo imaginário, por outro, não podem mais ser compartilhados. Doravante, tudo se passa como se ela devesse “representar-se uma situação em vez de apenas viver nela”. A fala não parece mais atrelada à ação e mesmo sua atenção se desloca: “ela realizando seu ato” torna-se “ela vendo-se agir”. (Merleau-Ponty, 1949, p. 322).
No que diz respeito à participação do semelhante em suas atividades, a criança antes deixava explícito que ela precisava ser ajudada por um corpo auxiliar (fosse ele alucinado, delirado, ativamente escolhido por um ato de identificação ou disponível numa vivência de contato fluido). Ou, então, nos casos em que houvesse logrado uma função personalidade, ela deixava explícito que necessitava de alguém que encarnasse a demanda por identidade (que caracteriza o Grande Outro). Mas, agora, a criança parece preferir deliberar sozinha. Por conta disso, reage ao olhar alheio de modo diferente: se antes dos três anos, ela sentia-se encorajada, a partir dos três anos, a sensação de estar sendo olhada causa nela muito desconforto. Se estiver no meio de uma brincadeira e for flagrada por tal olhar, a criança simplesmente interrompe o que está fazendo. O olhar do semelhante não é mais uma oportunidade para a ampliação das possibilidades motoras, eminentemente lúdicas, tampouco ocasião para a vivência do auto-reconhecimento narcisista. Ante aquele olhar a criança já não se sente mais encorajada, confirmada. Ela se sente constrangida.
E não se trata de vergonha, como bem observa Merleau-Ponty (1949, p. 323): “(n)ão se deve confundir constrangimento de ser olhado com vergonha (vergonha da nudez, por exemplo, que só aparece por volta dos seis anos) ou com o medo de ser repreendido.” Afinal, o “constrangimento de ser olhado” é um ato, uma ação que a criança inflige a si mesma ou ao semelhante com o objetivo de interromper a situação que esteja sendo vivida, seja ela transitiva ou imaginária. Trata-se, nesse sentido, de uma rejeição de si ou de uma supressão do semelhante. Tais atitudes não implicam pedidos dirigidos a alguém; como no caso da vergonha e do medo. Estes últimos são processos mais complexos, que só alguns anos mais tarde possivelmente adquirirão na criança uma forma estabilizada. Eles consistem em pedidos dirigidos ao semelhante com o propósito de implicá-lo na situação que se esteja vivendo. Envergonhar-me, nesse sentido, é confessar que me sinto identificado ao semelhante naquilo que possivelmente rejeito nele. O medo da repreensão, da mesma forma, é uma maneira modificada, invertida, de dizer a alguém que o reprovo. Conforme veremos a seguir e, muito especialmente, no capítulo quarto deste livro, vergonha e medo são dois tipos de ajustamento criativo de evitação, típicos dos comportamentos neuróticos.
Ora, o fato de aos três anos a criança aparentemente declinar de se ajustar sincreticamente aos jogos que estejam sendo desempenhados no laço social, ou recusar o prazer que possa advir do fato de ela assumir uma imagem, um papel, uma personalidade frente às demandas sociais, não significa, em hipótese alguma, que ela tenha perdido essas habilidades. A função de ato e a função personalidade na criança não desapareceram. O que então aconteceu? Há, para essa questão, diferentes respostas, que não nos propomos investigar. Mesmo por que, a quase totalidade delas, se ocupa de produzir uma ficção em torno de determinados “fatos” que pudessem explicar o retraimento nas ações e nas representações imaginárias da criança. E para não termos de lidar com a tarefa infinita de rejeição dos contra-exemplos que alguém pudesse lembrar, preferimos estabelecer a analítica da forma como as funções de self na criança possam estar operando. Nossa hipótese é que talvez haja se estabelecido um conflito entre as funções supra, nos moldes dos conflitos que Freud (1923b, 1924), em sua segunda tópica, reconheceu haver entre o Isso e o Eu (de sorte a desencadear uma psicose) e o Eu e o Supereu (o que nos levaria à neurose); embora, conforme vimos no capítulo anterior, os operadores da segunda tópica freudiana (Isso, Eu e Supereu) não tem equivalência com as funções do sistema self (função id, função de ato e função personalidade). Para sermos mais precisos, talvez devêssemos dizer que, para as crianças com aproximadamente três anos, as produções da função de ato (os ajustamentos em geral, especialmente os ajustamentos fluidos ou sincréticos) poderiam entrar em rota de colisão com as identificações imaginárias ao Grande Outro produzidas enquanto função personalidade. Tal conflito poderia se estabelecer, hipoteticamente, por conta de que, depois dos três anos, a criança começaria a perceber que o amor imaginário assegurado pela generosidade do Grande Outro (que os pais encarnam) não é capaz de açambarcar a multiplicidade do “pequeno outro”, a diversidade das formas habituais que a ela se doam como excitamento nos ajustamentos diversos, especialmente nos ajustamentos sincréticos. Sustentar a identificação ao Grande Outro seria, para a criança, renunciar, ainda que parcialmente, àquilo que se manifestasse a ela como “pequeno outro”, como excitamento. Desse ponto de vista, o amor imaginário oferecido pelo Grande Outro teria se tornado barreira à fluidez de outrora. Para as crianças depois dos três anos, tudo se passaria como se os pais de agora, encarnação do Grande Outro, não coincidissem mais com os pais da experiência da confiança (que talvez seja um dos ajustamentos sincréticos mais primordiais). Haveria entre eles uma distância impossível de ser percorrida. O que explicaria por que a criança agora não mais quereria entregar-se às situações, preferindo representar-se nelas; afinal, em nenhuma experiência ela estaria inteira.
Eis, então, a crise dos três anos, entendendo-se por isso um conflito entre os ajustamentos sincréticos e as identificações imaginárias: por um lado, a entrega ao transitivismo não confirma as expectativas do Grande Outro; por outro, o prazer advindo da concordância ao Grande Outro não pode incluir a totalidade do que se vivia no transitivismo (ajustamento fluido). O que coloca a criança diante de um dilema: ou ela “desiste” de suas identificações ao Grande Outro, “suprimindo” o prazer narcisista que tais identificações fornecem – o que vai exigir dela comportamentos anti-sociais. Ou, então, ela “rejeita” o transitivismo dos hábitos – o que vai exigir da criança uma ação direta sobre seu próprio corpo, uma “inibição” dos excitamentos que se atualizam para ela. As duas reações constituem a gênese de dois novos ajustamentos, os quais vêm se agregar àqueles já constituídos, quais sejam todos eles: ajustamentos de preenchimento, de associação e dissociação, de identificação positiva e negativa, ajustamentos fluidos e, agora, ajustamentos anti-sociais e de evitação (ou de autoinibição).
Em se tratando dos ajustamentos anti-sociais é preciso dizer que eles têm sua gênese nas vivências de desistência estabelecidas pelas crianças em relação às identificações ao Grande Outro. Em função da frustração que tais identificações podem representar para a continuidade dos ajustamentos sincréticos, as crianças decidem declinar de continuarem ligadas às imagens às quais se associaram. Em certa medida, a criança compreende os riscos que corre e atribui, ao Grande Outro, a responsabilidade por tais riscos. Conseqüentemente, delibera romper com o Grande Outro, o que significa declinar do prazer que experimentava em decorrência da identificação imaginária a ele. A criança o faz de diversos modos: quebrando brinquedos, utilizando “palavrões” que tenham efeito agressivo junto aos interlocutores, recusando alimentos associados às expectativas dos cuidadores, voltando a fazer xixi na cama... Trata-se de pequenas transgressões por meio das quais as crianças denegam suas identificações às expectativas sociais. Ademais, é nesse momento que começam surgir mentiras, que as crianças com 4, 5 anos dominam com maestria: mentir é denegar a identificação que se experimentou à determinada imagem, seja ela uma ação, um estado ou uma paixão que possam ser representados na linguagem. Também verificamos um tipo bem específico de agressividade contra o próprio corpo, a qual não se confunde com os comportamentos sadomasoquistas (uma vez que estes são apenas ajustamentos sincréticos em que se vive a crueldade ora de modo ativo ora de modo passivo). A auto-agressividade, nesse momento, consiste numa tentativa de aniquilamento das características sociais representadas pelo corpo, tentativa essa que envolve desde atitudes de ocultação deliberada de partes de si (como se tivesse vergonha, embora não se trata de vergonha, mas de uma denegação), até fantasias sobre sua própria origem: “sou realmente filho dela?”.
Essas experiências não produzem, evidentemente, prazer (já que o prazer é a identificação ao Grande Outro). Mas podem ser assimiladas como hábitos; o que significa que sempre podem voltar e, nesse sentido, gerar excitamento ou gozo. De onde se segue que, vivências sistemáticas de “supressão” ou, o que é a mesma coisa, vivências sistemáticas de “denegação do Grande Outro”, à medida que são assimiladas como fundo de excitamentos, podem retornar à fronteira de contato, agora não mais como deliberações supressivas, mas como ações anti-sociais inconscientes, modos de gozo desvinculados das demandas sociais. O retorno de tais vivências sempre estará vinculado a um tipo de produção atual da função de ato nas crianças (supostamente já bem mais crescidinhas, com mais de 06 anos), qual seja tal produção: a repetição de uma determinada imagem ou representação social por cuja aniquilação a criança tem especial preferência: fetiche. Eis os ajustamentos anti-sociais. Eles consistem na repetição inconsciente de ações supressivas contra determinadas imagens às quais os protagonistas ativos sempre retornam na forma de fetiche.
Diante do conflito (crise dos três anos) envolvendo, por um lado, a salvaguarda dos ajustamentos sincréticos e, por outro, a manutenção das identificações ao Grande Outro; a criança também pode - inversamente ao que vimos a respeito das ações supressivas - operar em favor das identificações e contra seus excitamentos. Tal significa dizer que, em vez de suprimir as imagens que encarnam as demandas que infligem, aos excitamentos vividos pela criança, alguma sorte de barreira, essa mesma criança pode “rejeitar” seus excitamentos por meio de “atos de inibição” da atividade muscular (por cujo meio aqueles excitamentos poderiam ser realizados ou, o que é o mesmo: repetidos). Os atos de inibição sempre são posturas ou comportamentos de contenção dos movimentos de expansão na forma dos quais os hábitos de outrora ganhariam sobrevida, repetição, recriação; o que é o mesmo que lograrem satisfação. Trata-se, conforme já dissemos, de ações de defesa que a função de ato na criança delibera em decorrência de uma ameaça que ela possa sofrer face às barreiras impostas pelo Grande Outro. A partir dos três anos, a criança já tem mais autonomia para deliberar se proteger contra aquilo que põe em risco as ligações inquebrantáveis que tem com seu fundo de excitamentos. Inibir-se, aqui, é ao mesmo tempo proteger o sincretismo do qual ela nunca se separa.
Ora, é importante remarcar aqui que, diferentemente dos atos supressivos (os quais se ocupam de aniquilar determinadas imagens sociais), os atos inibitórios não são tentativas de aniquilamento dos excitamentos. Por conta da ação dos atos inibitórios, os excitamentos são rejeitados, mas não suprimidos. Conforme Merleau-Ponty, em afinidade com a posição de Wallon: “(p)arece que a crise dos três anos é mesmo um momento decisivo, mas o sincretismo é rejeitado, mais que suprimido”. Se é verdade que a “(a) criança toma consciência da distância entre o eu e outrem, percebe que existem barreiras”; se é verdade que, por causa dessas barreiras, seu “transitivismo é rejeitado” (Merleau-Ponty, 1949, p. 323), tal não significa que seus excitamentos deixaram de existir ou de produzir efeitos. Mesmo que a criança continue a inibi-los até a vida adulta, os excitamentos transitivos que a ligam ao semelhante continuarão presentes ao então adulto; tal como no caso de um amante que decidiu não influenciar mais sua amada: “(s)eja qual for sua atitude, ela agirá sobre o outro, até mesmo pelo simples fato de recusar-lhe a aproximação. É um paradoxo não querer interferir na vontade do ser amado. Amar é aceitar sofrer a influência por parte do outro e exercê-la também sobre ele.” (Merleau-Ponty, 1949, p. 323) Afinal, “(s)e estamos ligados a alguém, sofremos com seu sofrimento. Estar ligado a alguém é viver sua vida, pelo menos em intenção. A experiência de outrem é necessariamente alienante para mim. Amar é afirmar mais do que se sabe. (Merleau-Ponty 1949, p. 323-324). E mesmo que declinem do amor que possam sentir, das formas de gozo que ainda sintam vibrar, as crianças – assim como os amantes - continuam a comunicar, nos intervalos de seus gestos e na forma de uma tensão característica, que é a ansiedade, que ainda têm esperança de viver o transitivismo de outrora. Conforme Merleau-Ponty, “(t)oda relação com outrem é (...) algo que se realiza em estado de insegurança”. E se é verdade que “a experiência que se tem de outrem sempre pode ser alvo de dúvida”, também é verdade que “(a) indivisão com outrem subsiste noutro nível... O transitivismo é superado no plano da vida comum, mas não o é no plano dos sentimentos (1949, p. 324). É nesse sentido que, segundo a formu

GRANZOTTO, R.L. \\\"La clínica gestáltica de la aflicción y los ajustes ético-políticos\\\". Revista de Terapia Gestalt de la Asociación Española de Terapia Gestalt. Vitoria: Ediciones la Llave D.H., n. 30 (Clínica Gestáltica), 2010.

LA CLÍNICA GESTÁLTICA DE LA AFLICCIÓN Y LOS AJUSTES
ÉTICO-POLÍTICOS


Resumen: este artículo consiste en una tentativa de comprender, a la luz de la teoría del self, formulada por Perls, Hafferline y Goodman. (PHG), la falencia social de las experiencias de contacto en que los datos de realidad se vuelven inaccesibles al agente de contacto, precisamente, la función de ego encarnada por determinada personalidad. PHG denominan de “misery” (aflicción) el estado de falencia social de una experiencia de contacto. En esas situaciones, el sistema-self pierde su espontaneidad y la función personalidad acaba siendo destruida, tal como ocurre en el luto, en los accidentes, en el adolecer somático, en la crisis reactiva, en el brote psicótico y en la exclusión social. Conforme a nuestro entendimiento, en estas situaciones, el sistema-self no deja de funcionar. No obstante la aflicción en la cual se encuentra, él produce un ajuste creador, denominado por nosotros de ajuste ético-político.

Palabras claves: aflicción sufrimiento ético-político ajuste ético-político personalidad



Introducción: El sentido ético-político de la función personalidad para la Terapia Gestáltica


La experiencia del contacto siempre envuelve, conforme podemos leer en la obra Terapia Gestáltica (PHG, 1951, p. 48), tres elementos principales: la preocupación actual (que incluye nuestras necesidades fisiológicas y las demandas sociales formuladas en el lenguaje) los excitamientos (que retornan de un fondo de hábitos asimilados) y las soluciones venideras (que no son más que nuestros deseos formulados a partir de la expectativa de nuestros semejantes). Y es en la forma de la acción creadora que esos tres elementos son enrevesados como un solo fenómeno de campo: “(c)ontacto es ‘hallar y hacer’ la solución venidera. La preocupación es sentida por un problema actual, y el excitamiento crece en dirección a la solución venidera pero todavía desconocida” (PHG, 1951, p. 48). ¿Cuál es el resultado de esa experiencia? Cometeríamos un equívoco si pensásemos que la experiencia del contacto implica solamente un tipo de resultado. Al final, los elementos antes mencionados descortinan en ella tres dimensiones diferentes. Los excitamientos son “asimilados” como forma impersonal, residuo que escapa a nuestro saber, a nuestras tentativas de elaboración intelectual (awareness reflexiva), permaneciendo como fondo de hábitos motores y lenguajeros imposible de ser significado: pasado operativo. Los deseos son “producidos” como aquello que empujamos al frente, cual horizonte, dominio presuntivo de lo que queremos ser o alcanzar junto a las expectativas de nuestros semejantes: futuro de posibilidades. Pero las expectativas de los semejantes, las demandas sociales, nuestras necesidades actuales: ¿ellas implican algún tipo de resultado? Sí. Y he aquí la base de aquello que constituye según PHG (1951, p. 277), nuestra función personalidad: uno de los más importantes resultados del “contacto social creativo es la formación de la personalidad: las identificaciones de grupo y las actitudes retóricas y morales viables”.
La función personalidad no es aquí una especie de síntesis entre lo que retorna como excitamientos (awareness sensorial) y el que surge como horizonte de posibilidades o, simplemente, deseo (awareness deliberada). Ella es, sí, una tercera dimensión de nuestra existencia, en la cual, en la gran mayoría de las veces, alienamos la angustia originada del hecho de nunca conseguir hacer coincidir, en las experiencias de contacto, el pasado y el futuro o, lo que es la misma cosa, los excitamientos y los deseos. La personalidad es el sistema de pensamientos, valores e instituciones a las cuales recorremos con el fin de lograr una identidad, un “ser social”. Así comprendida, la función personalidad es una especie de un Gran Otro Social que experimentamos junto a los grupos que integramos, a los valores que asumimos y a los expedientes lingüísticos de que nos servimos como “réplica verbal” de nuestras vivencias de campo (PHG, 1951, p. 188). Junto a ese Gran Otro, nos sentimos amparados, enteros, reconocidos y, al mismo tiempo, incumbidos de responsabilidad. El amor propio, el reconocimiento de nuestro valor para nosotros mismos y para alguien es siempre una vivencia de la función personalidad, es siempre un tipo de placer/desplacer que alcanzamos como resultado de nuestra participación en la vida de ese Gran Otro Social en el cual nos reflejamos. El lugar –o ethos- que ocupamos ante las miradas de ese Gran Otro, bien como las relaciones sociales – y, en ese sentido, políticas – que establecemos con los semejantes que encarnan el Gran Otro son dimensiones de la función personalidad. Lo que nos permite concluir, a partir de PHG, que es solamente en los términos de la función personalidad que la experiencia del contacto adquiere un sentido ético-político. Al final, conforme a PHG (1951, p. 187), la función personalidad es “el sistema de actitudes adoptadas en las relaciones interpersonales; es la admisión del que somos, que sirve de fundamento por el cual podríamos explicar nuestro comportamiento, si nos pidiesen una explicación”.
Sin embargo, conforme sabemos, las experiencias de contacto se pueden malograr. Eso significa decir: una determinada producción puede no suceder. Los excitamientos, por ejemplo, pueden no ser asimilados (como en el caso de los autismos y de las esquizofrenias) o, incluso, irrumpir de manera desarticulada (como en el caso de las paranoias y de los comportamientos maniaco-depresivos). La inhibición sistemática de un fondo de excitamientos, a su vez, puede inviabilizar acciones creativas en dirección a un horizonte de futuro (tal como ocurre en los comportamientos neuróticos). De la misma forma, puede ocurrir que las experiencias de contacto no resulten como función personalidad, lo que significa decir, como identidad social a un grupo, a un valor o a una conducta. Es en ese momento, que nos vamos a encontrar con una situación para la cual la Terapia-Gestáltica brasileña cada vez más ha vuelto sus ojos, precisamente, el sentimiento de aflicción resultante del hecho de no encontrar un lugar ético en que podamos establecer relaciones políticas. Pensemos en lo que sienten las personas víctimas de violencia gratuita practicada en los grandes centros urbanos; en lo que sienten aquellas que fueron excluidas de la cadena productiva o que tuvieron que someterse a un régimen paralelo de producción en la condición de esclavos. Pensemos incluso, en el sentimiento de quien fue alcanzado por una tragedia natural, o acometido de una enfermedad. O, tal vez, como se sienten personas excluidas de las relaciones sociales por cuenta de prejuicios y conflictos ideológicos. ¿Qué pasa con quien fue identificado con representaciones sociales indeseables, como la locura, la diferencia, la minoría, la marginalidad?
PHG tiene una expresión que nos puede ayudar a pensar en esos sentimientos. Se trata del significante “misery”, traducido al español como aflicción, pero que proponemos tomar como estado de sufrimiento ético-político. En las palabras de PHG: “(c)omo disturbio de la función de self, la neurosis se encuentra a medio camino entre el disturbio de self espontáneo, que es la aflicción, y el disturbio de las funciones de id, que es la psicosis” (PHG, 1951, p. 235). Sin embargo, ¿que es lo que pasa aquí? Ante la imposibilidad de vivir relaciones ético-políticas, ¿Qué es lo que sucede con nosotros?, ¿qué es lo que sucede con el sistema self en el cual estamos inseridos? Podemos, en esa condición, ¿producir ajustes creativos? Es lo que pretendemos discutir en el presente artículo, teniendo como base nuestra trayectoria de intervención en el campo del sufrimiento ético-político y los rudimentos teóricos ofrecidos por la teoría del self.

Sufrimiento ético-político y ajuste ético-político

A pesar de mencionar el sufrimiento ético-político (misery) como una entre las formas malogradas del sistema self, PHG no profundizaron en la descripción de este “cuadro”, menos aún se ocuparon de describirlo en un contexto clínico. Dijeron apenas que se trataba de una falla en el funcionamiento espontáneo del sistema self, lo que significa decir, de una falla en la experiencia de contacto, cuya consecuencia es la no producción de una función personalidad. Pero tal cosa no quiere decir que el sistema-self haya dejado de funcionar. Conforme admitieron para el caso de la interdicción de la función de ego por una inhibición reprimida, cualquiera sea tal admisión, que el sistema self incluso así es capaz de producir acciones creativas, las cuales llamaron de neurosis (y que preferimos denominar de ajustes de evitación); igual como nosotros mismos hicimos en relación a aquello que PHG llamaron de comprometimiento de la función id, a saber, que a pesar de tal comprometimiento, el sistema self es capaz de producir ajustes psicóticos (o de busca); esta vez, nos arriesgamos a decir que, tratándose del comprometimiento de la producción de un lazo amoroso/odioso con alguien que debe hacer algo “por nosotros”, como en los ajustes de evitación. Tampoco se trata de una construcción vuelta exclusivamente para el fondo de excitamientos, no importando el horizonte de deseo descortinado en la mediación de las demandas del Gran Otro, como en el caso de los ajustes psicóticos (de busca). La creación, en situaciones en que se puede verificar sufrimiento ético-político, tiene relación con la solidaridad, con los pedidos genuinos de inclusión, en la forma por la cual efectivamente atribuimos y reconocemos el poder del semejante para ayudarnos.
De hecho, no es preciso ir muy lejos para encontrar, en nuestro cotidiano, situaciones que ilustran lo que PHG están llamando de sufrimiento ético-político (misery). Los múltiples conflictos sociales (económicos, políticos, étnicos, religiosos…), los accidentes y enfermedades en general configuran situaciones de tensión, que aquí estamos llamando de sufrimiento ético-político. Pero es importante no confundir el sufrimiento ético-político propiamente dicho con los fenómenos que lo puedan desencadenar. No obstante tratarse de algo directamente relacionado a la manera como los estados de la naturaleza y las múltiples formas de poder viabilizan o no la autonomía de una función de ego para vivir una experiencia de contacto que culmine en la producción de una personalidad, el sufrimiento ético-político es solamente la vivencia de la imposibilidad de identificación a la determinada personalidad. Eso significa decir que, como resultado de una privación natural o de un conflicto social, nuestra función de ego no consigue encontrar datos de la realidad (a los cuales también llamamos de Gran Otro Social), por medio de los cuales pueda, por un lado, abrir una dimensión de deseo a partir de las posibilidades ofrecidas por tales datos y, por otro, alienarse en esas posibilidades, de suerte de lograr una imagen unificada de la propia experiencia de contacto; imagen esta a la cual denominamos de nuestra personalidad. De donde se sigue que el sufrimiento ético-político es antes un efecto de los accidentes naturales y de los conflictos sociológicos y su característica fundamental tiene relación con el hecho de la función de ego sentirse privada de los datos sociales concretos en que pudiese fruir de determinada identificación. Por cuenta de una limitación del medio –que así se sustrae a la libre acción de la función de ego- nos sentimos impedidos de encontrar datos de realidad o, lo que es la misma cosa, lazos sociales (instituciones, valores, identidades o valores), en la mediación de los cuales consiguiésemos vivir el contacto. Dicho de otro modo: a pesar de disponer de un fondo de excitamientos (función id), la falta de datos (de una realidad material y sociolingüística) impide al sistema self de actuar, de desempeñar la función de ego. Consecuentemente, el sistema no sólo deja de establecer el contacto entre su dimensión pasada (excitamientos) y su dimensión futura (expectativas, deseos), como también se ve impedido de asumir un valor o identidad objetiva en el presente. La función personalidad, por lo tanto, no se desenvuelve y el proceso self sufre como consecuencia de no poder asumir una identidad objetiva.
En los contextos en que hay sufrimiento ético-político (privación de datos o, lo que es la misma cosa, privación de contexto social y sociolingüístico), la función de ego opera un tipo de ajuste creativo, que llamaremos de “ético-político”. En él, la función de ego hace de la ausencia de datos (de la exclusión social o de la privación natural) un “pedido de socorro”. De esta forma, al mismo tiempo en que aliena su poder de deliberación a favor del medio, da al medio el status objetivo de alteridad. En otras palabras: el pedido de socorro hace del medio un “ego auxiliar”. El Gran Otro Social deja de ser un demandante o una estructura de posibilidades para tornarse un “semejante”. Se funda, así, la experiencia de la ayuda desinteresada y un tipo especial de identificación personalista que es la solidaridad. La gratuidad del Gran Otro como semejante, la función de ego responde con gratitud y la función personalidad, así, alcanza un nivel propiamente humano.
Pero es preciso atención aquí. El Gran Otro en cuanto “semejante” no es, como en los ajustes neuróticos, la personalidad a quien nosotros manipulamos de suerte que ella se sienta responsable por nuestra ansiedad (excitamientos inhibido); tampoco es alguien a quien deseamos destruir (como en los ajustes antisociales) o a quien volvemos representante de nuestros propios excitamientos (como en el caso de los ajustes de busca). Al contrario, “el semejante” es la personalidad en quien reconocemos una genuina capacidad de ayuda solidaria, que favorezca nuestra inclusión. Eso quiere decir: en los ajustes aflictivos, el semejante no es responsabilizado por nuestro “sufrimiento” agredido por deliberaciones antisociales o restringido a la condición de instrumento. Él es convocado a ayudarnos, apoyarnos; lo que significa decir que él es simultáneamente reconocido en la condición de “ego hacedor”. En vez de manipulación, destrucción o uso, hay, sí, autorización del semejante. Suponemos que él (el semejante) sepa como ayudarnos a lidiar con eso que para nosotros es imposible en aquel momento: la inclusión en determinado contexto social, que puede ser desde un horario para consulta a una vacante de internación en un hospital.
El ajuste ético-político, por lo tanto, es un pedido de reconocimiento, pero un pedido especial, una vez que él parte de alguien que no consigue más identificarse con la realidad natural y social en que se encuentra. No hay un pedido de reconocimiento específico vuelto para esta o aquella identidad. El sufridor no sabe siquiera lo que le falta. Su pedido es para que él pueda volver a pedir. Se trata de un ajuste cuya meta es encontrar “soporte” para que se pueda volver a crear. Para que los ajustes creadores vuelvan a suceder, sean ellos sincréticos, de busca, de evitación o antisociales.

El lugar del clínico en los ajustes ético-políticos

No es raro oír, incluso entre profesionales psicólogos, que las situaciones que envuelven sufrimiento ético-político no son objeto de intervención clínica. Eso porque la solución de aquellas situaciones implica acciones políticas más amplias, en las cuales el clínico debe inserirse como uno más. Hay dos grandes equívocos aquí. En primer lugar, se confunde la situación generadora de sufrimiento ético-político con la actuación clínica a las prácticas inspiradas en el cuidado médico. Afiliados a una comprensión de clínica en tanto “ética” –desvío en dirección a las manifestaciones del extraño en cuanto excitamientos (función id), acción creadora (función de ego) e identidad frente al Gran Otro (función personalidad) -, creemos que el clínico no es apenas más uno en intervenir en los conflictos sociales o en las variables naturales que puedan estar generando sufrimiento ético-político. El clínico es, sí, aquel que puede escuchar, en ese sufrimiento, el apelo por soporte, el apelo por inclusión, bien como aquel que, a partir de ese apelo, puede acompañar el proceso de tomada de decisión que cada sujeto sufridor (cada función de ego) emprende de cara a los conflictos y dificultades que esté viviendo.
Nuestra comprensión sobre la función del clínico junto a los ajustes ético-políticos va al encuentro de la manera como Philip Lichtenberg, en su libro “Psicología de la opresión” propone una forma de clínica cuyo foco “estaría orientado hacia un fin mayor que es permitir a los individuos ser participes en la transformación de relaciones sociales opresivas cada vez con mayor posibilidad de éxito”. Según Lichtenberg, “Esto les ayudaría a revisar su vida interior y sus relaciones interpersonales, especialmente si en el pasado los ha afectado en su participación dentro de un proyecto colectivo con condiciones de opresión” (2008, p. 130). Sin embargo, así comprendida, la clínica no es una práctica curativa, que debiese ser ejercida en un consultorio a partir de una farmacia o de una biblioteca. La clínica es sí la coparticipación en una forma de ajuste creador, para el caso, un ajuste ético-político, cuya característica es justamente la formulación de un apelo, de un pedido de socorro. Al final, tan difícil cuanto sufrir las consecuencias de un accidente o de una exclusión social, es a veces, conseguir pedir ayuda.
En este sentido, para nosotros clínicos, más que ver cual es la necesidad material o porque razón alguien nos pide comida, dinero, empleo, escuchar…; nos interesa acompañar el proceso de reconstrucción de la autonomía y del autoreconocimiento de la función de ego que nos hace ese pedido. Nos interesa estar junto de esa función de ego, donde quiera que ella necesite estar para reconquistar su autonomía y volver a hacer ajustes creadores, suceda eso en nuestro consultorio, en una agencia de salud, en una empresa o en una plaza pública. En los contextos de sufrimiento ético-político, el clínico es aquel que cuida de la autonomía de los sujetos (funciones de ego) envueltos en los procesos creativos de pedido de ayuda.
En fin, conforme creemos, intervenir en situaciones en que haya sufrimiento ético-político significa estar disponible para acompañar los sufridores en sus pedidos de socorro, de modo de ayudarlos a encontrar los medios por los cuales ellos puedan ser oídos y atendidos en sus apelos. Eso implica: i) ayudarlos a identificar sus necesidades (y no sus excitamientos o deseos); ii) ayudarlos a reconocer y constituir el “semejante” junto a quienes puedan merecer atención y resultado; iii) y ayudarlos a ejecutar las tareas que puedan valer el rescate de un lugar social. Se trata, como en toda clínica gestáltica, de un “entrenamiento” o “ampliación” de la autonomía, de la función de ego. En el caso de los ajustes ético-políticos, se trata de favorecer la autonomía de la función de ego en la construcción de un pedido de inclusión. Además, la intervención gestáltica nunca es normativa. Ella no tiende “defender” o “criticar” una ideología específicamente. Se trata de ayudar a alguien a comprender y hacer su opción.

Referencias Bibliográficas

FREUD, S. 1912b. Recomendaciones a los médicos que ejercen el psicoanálisis. In: Edición Standard Brasileña de las obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Establecida por James Strachey y Anna Freud. Trad. José Otavio de Aguiar Abreu. SP: Imago. 1976. Vol. 12.

LICHTENBERG, Philip. Psicología de la opresión. Trad. María Elena Soto y Francisco Hunneus. Santiago de Chile, Cuatro Vientos, 2008.

MÜLLER-GRANZOTTO, M. J. & MÜLLER GRANZOTTO, R. L. 2007. Fenomenología y terapia Gestáltica. Trad. Renato Tapado. Santiago de Chile: Cuatro Vientos, 2009.

PERLS, Frederick; HEFFERLINE, Ralph; GOODMAN, Paul. 1951. Terapia Gestáltica: Excitación y crecimiento de la personalidad humana. Trad. Carmen Vásquez. Madrid: AEGT CTP, 2006. v. II.

GRANZOTTO, R.L.; MÜLLER, M.J. \"Clínica de los ajustes psicóticos. Una propuesta a partir de la Terapia Gestáltica\". Revista de Terapia Gestalt de la Asociación Española de Terapia Gestalt. Vitoria: Ediciones la Llave D.H.,n.30 (Clínica Gestáltica), enero de 2010

Clínica de los ajustes psicóticos:
Una propuesta a partir de la Terapia Gestáltica

Psychotic adjustment clinic: a Gestalt-therapy proposal


Resumen
El texto que proponemos tiene como base nuestra experiencia clínica de acompañamiento terapéutico de personas que se ajustan psicóticamente y se destina a presentar reflexiones iniciales sobre una posible lectura de los ajustes psicóticos a la luz de la teoría de self y de sus funciones femonenológicas presentadas por Perls, Hefferline y Goodman en la obra Gestalt Therapy (1951). Conforme a tal obra, la psicosis es un tipo de ajuste creador en que la función de ego opera en provecho de la suplencia del fondo temporal de vivencias que, espontáneamente, la función de id no retuvo o no puede articular como base para los procesos de contacto. El trabajo de intervención gestáltica que establecemos, procuró asegurar, a las personas terapéuticamente acompañadas, soporte para la constitución de lazos sociales necesarios a las elaboraciones alucinatorias y delirantes, en la forma que esas personas intentaban llenar y así articular cada cual su propio fondo de excitamientos.

Palabras claves:
Psicosis – Ajuste psicótico – Función id – Alucinación – Delirio – Identificación

Abstract:
The text we here propose is based on our clinical experience of therapeutic accompaniment with patients who adjust themselves psychotically and aimed, as well, at presenting initial reflections on a possible reading of psychotic adjustments under the light of the self theory and of its phenomenological functions presented by Perls, Hefferline and Goodman in the work Gestalt Therapy (1951).
According to that work, psychosis is a sort of creative adjustment in which the functions of the ego operate on behalf of the supplying of the temporary living experiences background that, spontaneously, the function id could not retain nor articulate as a basis of the contacting process. The gestaltic intervention work we established tried to make sure, to therapeutically accompanied patients, support to the constitution of social bonds necessary to hallucinatory and delirious elaborations, in the form of which these same people tried to fill in and articulate each one his own background of excitements.

Keywords
Psychosis – Psychosis adjustment – Function id – Hallucination – Delirious - Identification
1. Psicosis en la “literatura de base” de la Terapia Gestáltica

En el prefacio a la edición de 1945 de la Knox Publishing Company de la obra “Ego, hambre y Agresión”, Perls anuncia que “en el momento presente estoy inserto en un trabajo de investigación sobre el mal funcionamiento del fenómeno figura-fondo en las psicosis en general y en la estructura de la esquizofrenia en particular”, (1942, p. 32). Más que su relevancia clínica, la investigación posee una hipótesis que da continuidad a las intuiciones de Perls relativas a los ajustes neuróticos: que todo ajuste es un fenómeno figura-fondo y que la “psicopatología” es solamente un mal funcionamiento de ese fenómeno. Pero, como si Perls supiese de antemano que no podría dar fin a este proyecto, anuncia: “(a)ún es muy pronto para decir cuales serán los resultados; parece que resultará alguna cosa” (1942, p. 32). Y hasta los días de hoy estamos esperando esos resultados que, sin embargo, nunca se dieron a conocer.
Algunos años más tarde, por la pluma de Paul Goodman, Perls y sus compañeros de fundación de la Terapia Gestáltica afirmaron, en un trecho que trataba de la “neurosis como pérdida de la funciones del ego”, que: “como disturbio de la función de self, la neurosis se encuentra a medio camino entre el disturbio del self espontáneo, que es la aflicción, y el disturbio de las funciones de id, que es la psicosis”, (1951, p. 235). Para ellos, la psicosis puede ser entendida como “la aniquilación de parte de la concreción de la experiencia; por ejemplo, las excitaciones perceptivas o propioceptivas. En la medida en que hay alguna integración, el self llena la experiencia: o está degradado por completo o inconmensurablemente grandioso, el objeto de una conspiración total, etc.”, (1951, p. 235). Con seguridad, el pasaje más profundo escrito por Perls y sus compañeros sobre la psicosis. Pero muy lacónico para orientar, por ejemplo, una práctica clínica.
En el libro “Terapia Gestáltica explicada”, Perls escribió: “(y)o tengo muy poco que decir sobre la psicosis. […]. El psicótico tiene una capa de muerte muy grande, y esta zona muerta no consigue ser alimentada por la fuerza vital. Una cosa que sabemos de verdad, es que la energía vital, energía biológica […], se torna incontrolable en el caso de la psicosis. […] el psicótico ni siquiera intenta luchar con las frustraciones; él simplemente niega las frustraciones y se comporta como si ellas no existiesen”. (1996, p.173-5). Todo pasa como si, en el enfrentamiento de las demandas del cotidiano, las cuales incluyen tanto las necesidades biológicas como los pedidos formulados en el lazo social, el psicótico se viese desprovisto de aquella capa de excitamientos (también denominada de función id), a partir de la cual él podría operar con su propio cuerpo o responder a los pedidos sociales. Lo que nos abre el camino para entender que, para Perls, la psicosis podría ser un ajuste en que, más que dar cuenta de los excitamientos junto a las posibilidades abiertas por los datos en la frontera de contacto, vivimos una tentativa de acabamiento u organización del propio fondo de excitamientos (función id) que, al decir de Perls, se presenta como una “capa de muerte”.
De todos modos, decir que la psicosis es un ajuste cuya meta es llenar u organizar el fondo de excitamientos (función id) no es aún una conclusión; sino una hipótesis psicodinámica. Para ratificarla, tenemos que aclarar los posibles usos que los autores dieron a expresiones como “concreción de la experiencia”, “función id”, “mal funcionamiento del fenómeno figura-fondo”, “llenado”, “degradación”, “engrandecimiento”, “capa de muerte”. En este sentido, proponemos las siguientes cuestiones rectoras de nuestra especulación: ¿Qué Perls, Hefferline y Goodman quieren decir cuando se refieren a la aniquilación de parte de la concreción de la experiencia? ¿En que sentido las excitaciones perceptivas y propioceptivas constituyen la concreción de la experiencia? ¿Qué acciones son esas por cuyo medio el self “llena” la experiencia, constituye un objeto de conspiración total, se “degrada” o se engrandece inconmensurablemente? ¿Se trata de una referencia de los cuadros clásicos de la esquizofrenia, de la paranoia, de la melancolía y de la manía?

2. psicosis como un ajuste

De acuerdo a lo que se puede percibir por las preguntas rectoras, nuestro trabajo toma partido de las formulaciones sugeridas en la obra “Terapia Gestáltica”. Él consiste, por consiguiente, en una tentativa de profundizar esas pistas legadas por los fundadores de la Terapia Gestáltica en el sentido de pensar la psicosis a la luz de la teoría del self. A partir de tales pistas, proponemos a los Gestalt-terapeutas la siguiente hipótesis psicodinámica: la psicosis podría ser definida como una forma de ajuste del sistema self en que los datos vivenciados (en la frontera de contacto entre el pasado y el futuro de ese mismo sistema: i) o no son asimilados y en ese sentido, retenidos como fondo de excitamientos de nuevas vivencias, ii) o, una vez asimilados, no se integran entre sí, de modo que también no se constituirían como fondo para los nuevos datos en la frontera de contacto. De cierta manera, es como si las experiencias de contacto: i) o no pudiesen ser “olvidadas” y, en ese sentido, inscritas como una estructura histórico-afectiva, ii) o no pudiesen establecer, después de retenidas una relación espontánea capaz de servir de palanca para las nuevas experiencias de contacto. Por ese motivo, las nuevas experiencias acontecerían privadas de una intencionalidad específica o, conforme al lenguaje propio de la Terapia Gestáltica, desprovistas de awareness sensorial. En rigor, en esa forma de ajuste, la función id (que justamente se caracteriza por la formación y movilización del fondo de excitamientos) no cumpliría su papel, razón por la cual la función de ego (caracterizada por la acción motora y “lenguajera”) estaría desprovista de los medios para lidiar con el dato en la frontera de contacto. El sistema self sería, entonces, acometida de una especie de “rigidez (fijación)” (1951, p. 34), tal como aquella observable en los comportamientos a veces descritos por la psiquiatría.
Aquí es preciso introducir un paréntesis, en el que podamos distinguir nuestra hipótesis sobre la psicosis como un ajuste de la noción psiquiátrica de psicosis. Al final, de un modo general, la psiquiatría se ocupa más del tropiezo de nuestras tentativas de elaboración social de aquello que en nosotros no se retiene o se articula espontáneamente, y menos de nuestro esfuerzo para establecer un ajuste capaz de llenar o articular, junto a los datos en la frontera de contacto, el fondo (id) que debería poderse repetir. En otras palabras: la psiquiatría no describe aquello que, aquí, estamos llamando de ajuste psicótico propiamente dicho, sino la falencia social de él. Excepción para la psiquiatría fenomenológica. De un modo general, podemos decir que los psiquiatras fenomenólogos así como Jacques lacan (en sus muchos trabajos dedicados a pensar la psicosis ), se preocupan en hacer la distinción entre: i) la psicosis en cuanto un modo de funcionamiento o estructura y ii) la psicosis como un fenómeno propiamente patológico, lo que significa decir, como un cuadro en que los implicados pierden la capacidad para administrar el propio estado psíquico. Con el cuño de ellos, insistimos en la importancia de no confundir el “brote” psicótico con el “ajuste” psicótico, tal como lo estamos proponiendo. El brote psicótico consiste en el estado aflictivo que acomete a aquellos que no encuentran, en los diversos lazos sociales de los cuales participan, condiciones para establecer ajustes psicóticos. Los ajustes psicóticos, a su vez, son tentativas socialmente integradas de organización del fondo de excitamientos espontáneos.
En este sentido, cuando se dice que, en los ajustes psicóticos, percibimos una especie de rigidez, esta no tiene relación con aquellas respuestas comportamentales aparentemente desorganizadas, con las cuales, en la mayoría de las veces, acostumbramos caracterizar la psicosis como una suerte de “enfermedad”. La rigidez tiene antes relación con la repetición de las tentativas de llenado y articulación de aquello que, espontáneamente, no se organiza en algunos momentos de nuestra vida, a saber, nuestro propio deseo, nuestros propios excitamientos.
Razón por la cual, por más rígidos que sean, los ajustes psicóticos, son verdaderos trabajos de creación en la frontera de contacto. No se trata de enfermedades, sino de ajustes creadores. Son formas de vivir de cara a las condiciones de campo en que la función de id se presenta de manera atípica. En los ajustes psicóticos, el self inventa –junto a los datos en la frontera de contacto- la historia que él no puede retener o espontáneamente obtener. Cuando bien sucedida, esa invención viene a sustituir los excitamientos que, frente al dato, i) o no se presentan, ii) o se presentan de modo fallado o, incluso, iii) se presentan de modo desarticulado. ¿Pero quién, entonces, es el agente de esa invención creadora, que aquí estamos llamando de ajuste psicótico?

3. Acciones de la función de ego en los ajustes psicóticos

El agente de esa invención es el aspecto del self denominada de función de ego. La función de ego, entretanto, no opera del mismo modo como ella operaría si tuviese a su disposición un fondo espontáneamente articulado. No se trata de encontrar, en el dato, posibilidades de expansión del fondo de excitamientos disponible. Al final, en los ajustes psicóticos, ese fondo no está disponible, al menos como un todo organizado, como una orientación intencional para la acción del ego. O, lo que es la misma cosa, en los ajustes psicóticos, a awareness sensorial está comprometida (ausente, fallada o desarticulada) y, consecuentemente, ella no se constituye como base, como motivo para la acción de la función de ego junto a los datos en la frontera.
Al ego resta entonces operar de un modo diferente. En vez de buscar, en los datos, posibilidades de expansión del excitamientos (awareness sensorial), él busca en el dato (sea este el propio cuerpo, o el cuerpo de otro, una palabra o una cosa mundana) el excitamiento que la función id no entregó, o entregó la mayor, como un elemento desarticulado. Todo pasa como si el dato pudiese llenar aquello que, espontáneamente, no se presentó, o como si el dato pudiese dar un límite a la angustia proveniente de múltiples excitamientos que, por cuenta propia, no se distinguirán en cuanto a su relevancia o emergencia.
Hasta el momento presente, nuestra investigación puede identificar tres tipos fundamentales de acción del ego en los ajustes psicóticos: los ajustes psicóticos de ausencia de fondo (autismos), los ajustes psicóticos de llenado del fondo y los ajustes de articulación del fondo. La diferencia en esas acciones tiene relación con el modo como el fondo se caracteriza en el momento de la vivencia del contacto.

3.1. Ajustes psicóticos de ausencia de fondo (autismo)

De acuerdo a la lectura que hemos podido hacer hasta aquí, hay ciertos tipos de ajustes en que la función de ego está presente, pero opera como si no dispusiese de un fondo de co-datos retenidos. Denominaremos tales ajustes de “ajustes de ausencia de fondo” o “autismos”. En ellos, la función id se presenta severamente comprometida. Nuestra hipótesis es que haya sucedido una falla en la operación de retención de formas relativas a las vivencias primitivas de interacción intercorporal del niño en el medio. En otras palabras, la intersubjetividad primaria, en los términos de la cual el infante inicia su proceso de constitución de una identidad especular, no se deja fijar como un fondo asimilado. Todo pasa como si los gestos desempeñados por el infante en la frontera de contacto no hayan diseñado ninguna cosa, tampoco respondiesen a los pedidos que vienen de sus semejantes.
Ese es el caso, por ejemplo, de los cuadros tradicionalmente descritos a partir de los criterios diagnósticos del Dr. Kanner. La función de ego es refractaria a los pedidos o necesidades provenientes de los semejantes, razón por la cual su acción parece acontecer sin meta, como si fuese acometida de una desorientación. El aislamiento, concretado en la forma de un mutismo, parece ofrecer un tipo de satisfacción sin objeto, sin cuerpo.
Hay, más allá de esos cuadros, aquellos clasificados como síndrome de Asperger. Diferentemente de los primeros, los segundos consiguen circular muy bien en determinados contextos producidos de manera simbólica. Aún así, en esos casos, el sufridor no consigue agregar, a esa producción cultural, un fondo emocional. Incluso disponiendo de verbalismo, se trata de un verbalismo abstracto que raramente es capaz de acompañar las sutilezas del uso cotidiano, como el uso metafórico, por ejemplo. De todos modos, podemos identificar una forma metonímica de producir ligaciones entre determinadas clases de abstracción, donde se deja verificar una cierta satisfacción.

3.2. Ajuste psicótico de llenado de fondo

En estos casos, la función de ego actúa como si fuera a llenar, por medio de alucinaciones de todo orden (auditivas, visuales, cinestésicas y verbales, como las logolalias y las ecolalias), la inexistencia de los excitamientos con los cuales podría responder al pedido del semejante en la frontera de contacto.
Como en los ajustes autistas, la función de ego está a las vueltas con la ausencia de un vivido (co-dato) que no fue retenido. Sin embargo, diferentemente de los ajustes autistas, los vividos no retenidos no se refieren a las experiencias intercorporales que constituyen nuestra intersubjetividad primaria (la percepción del mirar, de la voz, del gesto del semejante y así sucesivamente). Esta vez, lo no retenido tiene relación con las vivencias de contacto instituidas por el lenguaje, específicamente con las vivencias culturales en que se busca llevar para el campo simbólico los excitamientos primitivos originalmente vividos de manera corporal. En otras palabras, lo que no se retiene es el simbolismo en la forma por la cual transformamos en “valor” social el afecto, la agresividad, la curiosidad, en fin, todo orden de experiencias hasta entonces vividas con una intersubjetividad primaria, intercorporal.
Pero, frente a un símbolo que demanda un fondo de otros símbolos investidos de un valor afectivo, si estos otros símbolos no fueran retenidos, la función de ego necesita producirlos o, lo que es la misma cosa, la función de ego requiere alucinarlos. En este sentido, es frecuente que observemos acciones en que el agente de contacto parece abandonar las posibilidades abiertas por el dato en la frontera para ocuparse de algo anacrónico. Es como si él abandonase las evidencias en provecho de un irreal que no está anunciado como una posibilidad a partir de los datos, mas consiste en algo extraño, no disponible, precisamente, el excitamiento que debería dar sentido o tornar el dato en la frontera algo deseable.

3.3. Ajuste psicótico de articulación de fondo

En los ajustes psicóticos de articulación de fondo, lo que pasa es posiblemente algo bien diferente de lo que sucede en los dos anteriores. Eso porque, conforme a nuestra hipótesis acerca del génesis de los ajustes psicóticos, hay retención. Lo que significa decir que las vivencias del contacto anteriormente establecidas fueron asimiladas, sean ellas intercorporales o culturales. Sucede, sin embargo, que la falla ahora reposa en el proceso de repetición de este fondo junto a los nuevos datos de la frontera de contacto. O, más precisamente, los datos retenidos no aparecen, junto al dato, como un fondo de excitamiento articulado, integrado entre sí, como un solo sentimiento u orientación intencional. Es como si los muchos co-datos retenidos se presentasen como fondos diferentes, habiendo no sólo un fondo, sino muchos. Como resultado de esa desarticulación, también aquí el sistema self no dispone de una orientación intencional espontánea (awareness sensorial), o al menos de una orientación unificada. Consecuentemente, la función de ego no sabe con cual fondo operar, a partir de cual parámetro considerar el dato. Como resultado de esto, no se forma, para la función de ego, una figura definida. La función de ego necesita antes ocuparse del fondo, articularlo, establecer para los muchos co-datos una organización que, espontáneamente ellos no tienen.
Lo que nosotros podemos observar en el modo como la función de ego opera en este caso y en todos aquellos en que estuviera sucediendo un ajuste de articulación de fondo, es que ella establece al menos dos estrategias de organización.
Por un lado, tenemos la estrategia que consiste en articular los varios co-datos como si se tratara de algo que no pertenece al self. Se trata de una estrategia de alienación de los co-datos junto a los datos que se presentan en la frontera de contacto. Consecuentemente, el self no reconoce como suyos los co-datos que llegan hasta la frontera de contacto. Mientras la función de ego: i) o fragmenta, de manera delirante, el dato en múltiples partes, como una forma de poder atribuir a cada una de ellas los múltiples co-datos que se presentan (caso en que tenemos el delirio disociativo, el cual no debe ser confundido con la paranoia tal como es descrita por la psiquiatría); ii) o busca unificarlos, junto al dato que se presenta, mientras un semejante amenazador y que, en ese sentido, debe ser excluido (delirio persecutorio, el cual no es un episodio psiquiátrico de paranoia persecutoria).
Por otro lado, la función de ego puede intentar “identificarse” con esos co-datos. Mientras, o la función de ego tiende, en esa desarticulación, la pérdida de la unidad, la pérdida de la integración espontánea del self o, lo que es la misma cosa: la muerte del excitamiento (caso en que tenemos la identificación depresiva, que es mucho más de lo que un brote melancólico). O, entonces, la función de ego intenciona, en esa misma desarticulación, una suerte de ampliación al infinito del sistema self (caso en que tenemos la identificación eufórica, que tampoco es un episodio psiquiátrico de manía).
Por medio de estas dos estrategias (de alienación y de identificación), lo que la función de ego está intentando hacer es establecer un límite para ese fondo desarticulado. Por medio de ese límite, la función de ego convierte tal fondo desarticulado en algo soportable y, en alguna medida, parámetro para que pueda asumir o rechazar las nuevas posibilidades abiertas por los datos en la frontera de contacto.

5. El clínico como acompañante solitario

En el trabajo clínico con consultantes que, a veces o en la mayoría de ellas, se ajustan psicóticamente, (o en el modo de busca), los clínicos raramente identifican las categorías de las cuales, en este artículo procuramos caracterizar, las diferentes acciones de la función de ego (aislarse del medio social en el caso de los ajustes autistas, llenar el fondo de manera alucinatoria en el caso de los ajustes de llenado, articular el fondo de manera delirante o identificatoria en el caso de los ajustes de articulación). Los ajustes psicóticos, en la mayoría de las veces, son muy sutiles y, sobre todo, no dirigen al clínico una demanda que los denunciase, como en el caso de los ajustes neuróticos. En estos, los consultantes frecuentemente reclaman del clínico que éste se ocupe con la ansiedad derivada de los excitamientos que los propios consultantes inhibieron de manera inconciente. En este sentido, demandan del clínico: sea mi modelo (confluencia); sea mi ley (introyección); sea mi reo (proyección); sea mi verdugo, tal vez, mi cuidador (retroflexión); sea mi fans (egotismo) y así en adelante . En los ajustes psicóticos, a su vez, los consultantes no demandan nada. Cuando mucho, “hacen uso” de la imagen, de las acciones y de las palabras del clínico, sirviéndose de ellas para llenar o articular algo que, de ninguna forma, es una tentativa de manipulación o disimulación. Los consultantes, cuando se ajustan psicóticamente, están intentando comprender algo que pasa con ellos; lo que es diferente de cuando se ajustan neuróticamente, ocasión en que procuran huir de aquello que están sintiendo (como ansiedad derivada del excitamiento inhibido). Por eso, en los ajustes psicóticos, el clínico casi no tiene un lugar. Lo que no sólo dificulta cualquier tentativa de clasificación que el clínico en ese momento intentase hacer, lo que también desencadena, en ese mismo clínico, un insoportable estado de angustia. Al final, el clínico se queda sin saber lo que pasa y sin saber lo que de él se quiere. El clínico se siente un acompañante solitario.
La experiencia clínica nos enseñó esa dura lección: solamente cuando alcanzamos este estado de profunda inseguridad y angustia ante los ajustes producidos por nuestros consultantes es que nos volvemos aptos para participar del esfuerzo que estén emprendiendo para ajustarse. El hecho es que, después de tanto tiempo de acompañamiento y reflexión, nuestra acción parece estar instruida por un fondo de pensamientos ya establecido – y que este pequeño texto intenta hacer público. Pero la intervención es más intuitiva de lo que planificada; y consiste en ocupar un lugar de secretario, de auxiliar en las acciones que la función de ego en el consultante esté desempeñando, sean ellas autistas, alucinatorias, delirantes o identificatorias. Al final, no conseguimos comprender lo que el consultante elabora, donde él quiere llegar, lo que él está omitiendo o procurando. Él no da señales de eso, no percibimos en él trazos ansiogénicos, los cuales denunciarían para nosotros la presencia de una inhibición inconsciente. Al contrario, en los momentos en que se ajusta psicóticamente, el consultante actúa como si tuviese una certeza impenetrable: la de que sólo él puede tomar cuenta de la duda que lo abate. Intentar enfrentar esa condición o robar del consultante el lugar de protagonista redundaría en el fracaso de la terapia; ocasionalmente, en un pequeño brote.
Respetar ese límite y, al mismo tiempo, hacerse disponible para “secretariar” el ajuste que, en aquel momento estuviera aconteciendo es algo muy difícil de hacer. Implica, para el clínico, la suspensión de las propias expectativas, en alguna medida, debemos de tener el coraje de confiar en los consultantes y dejarnos llevar para donde ellos nos quisieran llevar – desde que eso no implique la aniquilación de los lazos de inclusión social. Pero no sólo eso. Necesitamos comprender que nuestro límite, el límite que imponemos a nuestros consultantes es un parámetro de extrema relevancia para que ellos puedan certificarse del éxito de sus ajustes. Nuestra puntuación del término de la sesión, la denuncia de nuestra propia ignorancia para acompañar el delirio que estén produciendo o la declaración de nuestro malestar frente al contacto físico muy intenso que buscan a veces establecer: todo eso ayuda a los consultantes a organizarse en sus ajustes, sea porque pueden entonces comprender la finitud de las solicitaciones que dirigimos a ellos, sea porque pueden, en fin, comprender que estamos acompañando lo que ellos están haciendo. De un modo general, podemos decir que la mejor intervención en ajustes psicóticos es aquella en que el clínico aprende, alucina, delira y se identifica junto con su consultante, de modo de poder establecer, “desde dentro”, el límite del ajuste que estuviere sucediendo.

6. Consideraciones finales

Con el presente trabajo, quisimos presentar una hipótesis que ampliase las formulaciones lagunares con las cuales los fundadores de la Terapia Gestáltica se refirieron a las psicosis. De esta forma, pretendíamos someter a las críticas de la comunidad de gestalt-terapeutas una elaboración que tuviese efecto en nuestras clínicas. Y, según tal elaboración, podríamos entender que la psicosis es, por un lado, el comprometimiento de la función id o, lo que es la misma cosa, de la capacidad del sistema self para espontáneamente articular, cuando no para disponibilizar, un fondo de co-datos (o excitamientos). Pero, por otro, la psicosis es un ajuste. Se trata de la efectiva capacidad de la función de ego para aprender, llenar y articular su propio fondo, y de ese modo poder operar fluidamente con los datos en la frontera de contacto. Cada una de estas actividades de la función de ego (aprender, llenar y articular) caracteriza un tipo de ajuste (autista, de llenado o de articulación) lo cual siempre depende del lazo social para poder hacerse efectivo. El brote, a su vez, es el malogro social de esos ajustes y la consecuente emergencia de un estado aflictivo, en el cual el sistema self no encuentra fuerza para operar con los datos y con los propios excitamientos, caso ellos se presenten. La función del terapeuta es asegurar derecho de ciudadanía a los ajustes psicóticos producidos por los consultantes –estén estos o no en brote. Mientras, los terapeutas deben poder promover el deslocamiento seguro de los ajustes con menor poder de contractualidad para ajustes con mayor aceptación social; lo que de forma alguna se confunde con la eliminación de los ajustes psicóticos en provecho de un padrón de comportamiento adaptado, frecuentemente neurótico. Se trata, al contrario, de apoyar al consultante para que este pueda hacer valer su modo de vida, sus ajustes psicóticos en los contextos en los cuales se insiere. Lo que, en última instancia, también ilustra el carácter “político” del trabajo de acompañamiento terapéutico de personas que se ajustan psicóticamente.


Referencias

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CALLIGARIS, Contardo. 1989. Introducción a una clínica diferencial de las psicosis.
Porto Alegre: Artes Médicas
MÜLLER-GRANZOTTO, M.J. & R.L. 2007. Fenomenología y Terapia Gestáltica. SP: Summus.
PERLS, Frederick. 1942. “Ego, hambre y agresión”. Trad. Georges Boris. San Paulo: Summus, 2002.
______. Terapia Gestáltica explicada. Trad. Georges Schlesinger. San Paulo: Summus. 1981.
PERLS, Frederick; HEFFERLINE, Ralph; GOODMAN, Paul. 1951. Gestalt Therapy: excitment and growth in the human personality. Second Printing.
Nueva York: Delta Book, 1965. Traducción utilizada: Terapia Gestáltica. Trad.
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ROBINE, Jean-Marie. 2004. S’apparaître à l’occasion d’um autre – Etudes pur la
Psychothérapie. Bordeaux: L’Exprimerie, 2004.
TATOSSIAN, Arthur. 2006. Fenomenologia das psicoses. Trad Célio Freire. San
Paulo: Escuta.

O texto que ora propomos não é um artigo científico. Ele tem como base nossa experiência clínica de acompanhamento terapêutico de pessoas que se ajustam psicoticamente e se destina a apresentar reflexões iniciais sobre uma possível leitura dos ajustamentos psicóticos à luz da teoria do self e de suas funções fenomenológicas apresentados por Perls, Hefferline e Goodman na obra Gestalt Therapy (1951). Conforme tal obra, a psicose é um tipo de ajustamento criador em que a função de ego opera em proveito da suplência do fundo temporal de vivências que, espontaneamente, a função de id não reteve ou não pôde articular como base para os processos de contato. O trabalho de intervenção gestáltica que estabelecemos procurou assegurar, às pessoas terapeuticamente acompanhadas, suporte para a constituição de laços sociais necessários às elaborações alucinatórias e delirantes, na forma das quais essas mesmas pessoas tentavam preencher e articular cada qual seu próprio fundo de excitamentos.

Abstract:

The text we here propose is not a scientific article. It is based on our clinical experience of therapeutic accompaniment with patients who adjust themselves psychotically and aimed, as well, at presenting initial reflections on a possible reading of psychotic adjustments under the light of the self theory and of its phenomenological functions presented by Perls, Hefferline and Goodman in the work Gestalt Therapy (1951). According to that work, psychosis is a sort of creative adjustment in which the functions of the ego operate on behalf of the supplying of the temporary living experiences background that, spontaneously, the function id could not retain nor articulate as a basis of the contacting process. The gestaltic intervention work we established tried to make sure, to therapeutically accompanied patients, support to the constitution of social bonds necessary to hallucinatory and delirious elaborations, in the form of which these same people tried to fill in and articulate each one his own background of excitements.

MÜLLER, M.J.; GRANZOTTO, R.L. Clínica dos ajustamentos psicóticos: uma proposta a partir da Gestalt-terapia. IGT NA REDE. URL: http://www.igt.psc.br/ojs/viewarticle.php?id=176&layout=html

1. Psicose na “literatura de base” da Gestalt-terapia

No prefácio à edição de 1945 da Knox Publishing Company da obra “Ego, Fome e Agressão”, Perls anuncia que “no presente momento estou envolvido em um trabalho de pesquisa sobre o mal funcionamento do fenômeno figura-fundo nas psicoses em geral e na estrutura da esquizofrenia em particular” (1942, p. 32). Mais do que sua relevância clínica, a pesquisa veicula uma hipótese que dá continuidade às intuições de Perls relativamente aos ajustamentos neuróticos: que todo ajustamento é um fenômeno figura-fundo e que a “psicopatologia” é tão-somente um mau funcionamento desse fenômeno. Mas, como se Perls soubesse de antemão que não poderia dar cabo deste projeto, anuncia: “(a)inda é cedo demais para dizer quais serão os resultados; parece que vai resultar em alguma coisa” (1942, p.32). E até os dias de hoje estamos no aguardo desses resultados que, entretanto, nunca se fizeram conhecer.
Alguns anos mais tarde, pela pena de Paul Goodman, Perls e seus companheiros de fundação da Gestalt-terapia afirmaram, em trecho que tratava da “neurose como perda das funções de ego”, que: “como distúrbio da função de self, a neurose encontra-se a meio caminho entre o distúrbio do self espontâneo, que é a aflição, e o distúrbio das funções de id, que é a psicose” (1951, p. 235). Para eles, a psicose pode ser entendida como “a aniquilação de parte da concretude da experiência; por exemplo, as excitações perceptivas ou proprioceptivas. Na medida em que há alguma integração, o self preenche a experiência: ou está degradado por completo ou incomensuravelmente grandioso, o objeto de uma conspiração total, etc.” (1951, p. 235). Com certeza, a passagem mais aprofundada escrita por Perls e seus companheiros sobre a psicose. Mas lacônica demais para orientar, por exemplo, uma prática clínica.
Já no livro “Gestalt-terapia explicada”, Perls escreve: “(e)u tenho muito pouco, ainda, a dizer sobre a psicose. [...] O psicótico tem uma camada de morte muito grande, e esta zona morta não consegue ser alimentada pela força vital. Uma coisa que sabemos ao certo é que a energia vital, energia biológica [...], torna-se incontrolável no caso da psicose. [...] o psicótico nem mesmo tenta lidar com as frustrações; ele simplesmente nega as frustrações e se comporta como se elas não existissem” (1969, p.173-5). Tudo se passa como se, no enfrentamento das demandas do cotidiano, às quais incluem tanto as necessidades biológicas quanto os pedidos formulados no laço social, o “psicótico” se visse desprovido daquela camada de excitamentos (também denominada de função id), a partir da qual ele poderia operar com seu próprio corpo ou responder aos apelos sociais. O que nos sinaliza para o entendimento de que, para Perls: a psicose poderia ser um ajustamento em que, mais do que dar conta dos excitamentos junto às possibilidades abertas pelos dados na fronteira de contato, vivemos uma tentativa de preenchimento ou organização do próprio fundo de excitamentos (função id) que, no dizer de Perls, apresenta-se como uma “camada de morte”.
De todo modo, dizer que a psicose é um ajustamento cuja meta é preencher ou organizar o fundo de excitamentos (função id) não é ainda uma conclusão; apenas uma hipótese psicodinâmica. Para ratificá-la, temos de esclarecer os possíveis empregos que os autores deram a expressões como “concretude da experiência”, “função id”, “mal funcionamento do fenômeno figura-fundo”, “preenchimento”, “degradação”, “engrandecimento”, “camada de morte”. Nesse sentido, propomos as seguintes questões norteadoras de nossa especulação: o que Perls, Hefferline e Goodman querem dizer quando se referem à aniquilação de parte da concretude da experiência? Em que sentido as excitações perceptivas e proprioceptivas constituem a concretude da experiência? Que ações são essas por cujo meio o self “preenche” a experiência, constitui um objeto de conspiração total, se “degrada” ou se “engrandece” incomensuravelmente? Trata-se de uma referência aos quadros clássicos da esquizofrenia, da paranóia, da melancolia e da mania?

2 Psicose como um ajustamento


Conforme se pode perceber pelas perguntas norteadoras, nosso trabalho toma partido das formulações sugeridas na obra “Gestalt-terapia”. Ele consiste numa tentativa de aprofundamento das “pistas” legadas pelos fundadores da Gestalt-terapia no sentido de pensar a psicose à luz da teoria do self. A partir de tais pistas propomos aos gestalt-terapeutas a seguinte hipótese psicodinâmica: a psicose poderia ser definida como uma forma de ajustamento do sistema self em que os dados vivenciados (na fronteira de contato entre o passado e o futuro desse mesmo sistema): i) ou não são assimilados e, nesse sentido, retidos como fundo de excitamento de novas vivências, ii) ou, uma vez assimilados, não se integram entre si, de modo a também não se constituírem como fundo para os novos dados na fronteira de contato. De certa maneira, é como se as experiências de contato: i) ou não pudessem ser “esquecidas” e, nesse sentido, inscritas como uma estrutura histórico-afetiva, ii) ou não pudessem estabelecer, depois de retidas, uma relação espontânea capaz de servir de alavanca para as novas experiências de contato. Por esse motivo, as novas experiências aconteceriam privadas de uma intencionalidade específica ou, conforme a linguagem própria da Gestalt-terapia, desprovidas de awareness sensorial. Em rigor, nessa forma de ajustamento, a função id (que justamente se caracteriza pela formação e mobilização do fundo de excitamentos) não cumpriria seu papel, razão pela qual a função de ego (caracterizada pela ação motora e linguageira) estaria desprovida dos meios para lidar com o dado (seja ele uma demanda social ou uma necessidade orgânica) na fronteira de contato. O sistema self seria, então, acometido de uma espécie de “rigidez (fixação)” (1951, p. 34), tal como aquela observável nos comportamentos por vezes descritos pela psiquiatria.
Aqui é preciso introduzir um parêntesis, em que possamos distinguir nossa hipótese sobre a psicose como um ajustamento da noção psiquiátrica de psicose. Afinal, de um modo geral, a psiquiatria se ocupa mais do malogro de nossas tentativas de elaboração social daquilo que em nós não se retém ou se articula espontaneamente; e menos de nosso esforço para estabelecer um ajustamento capaz de preencher ou articular, junto aos dados na fronteira de contato, o fundo (id) que deveria poder se repetir. Por outras palavras: a psiquiatria não descreve aquilo que, aqui, estamos chamando de ajustamento psicótico propriamente dito, mas a falência social dele. Exceção para a psiquiatria fenomenológica.D e um modo geral, podemos dizer que os psiquiatras fenomenólogos , assim como Jacques Lacan (em seus muitos trabalhos dedicados a pensar a psicose ), preocupam-se em fazer a distinção entre: i) a psicose enquanto um modo de funcionamento ou estrutura e ii) a psicose como um fenômeno propriamente patológico, o que significa dizer, como um quadro em que os envolvidos perdem a capacidade para administrar o próprio estado psíquico. Na esteira deles, insistimos na importância de não confundirmos o “surto” psicótico com o “ajustamento” psicótico, tal como o estamos propondo. O surto psicótico consiste no estado aflitivo que acomete aqueles que não encontram, nos diversos laços sociais dos quais participam, condições para estabelecer ajustamentos psicóticos. Os ajustamentos psicóticos, a sua vez, são tentativas socialmente integradas de organização do fundo de excitamentos espontâneos.
Uma alternativa que estamos ainda avaliando e que poderia contribuir para a melhor distinção entre o “surto” e o “ajustamento” psicótico talvez fosse utilizar uma nova nomenclatura para designar os ajustamentos psicóticos. Nesse sentido, estamos sugerindo o emprego da expressão “ajustamento de busca” como um termo equivalente à noção de ajustamento psicótico. Busca significaria aqui o trabalho criador de alucinação, delírio ou identificação de um fundo que está ausente, falhado ou desarticulado. O ajustamento de busca, nesse sentido, seria diferente do ajustamento de fuga (que é o ajustamento neurótico e no qual tudo se passaria como se algo devesse ser evitado, um excitamento devesse ser omitido, muito embora a “forma de evitação” ela mesma permanecesse ignorada). A desvantagem na utilização dessa nova nomenclatura repousaria no fato de ela afastar o gestalt-terapeuta de uma tradição multidisciplinar que emprega o termo psicose para designar não apenas o surto, mas certa estrutura ou psicodinâmica específica, se comparada à psicodinâmica neurótica. Por ora, no contexto desta apresentação, vamos manter a terminologia “ajustamento psicótico”. Em futuro próximo, almejamos abrir mão desses termos carregados de conotação patológica (como são os termos psicose e neurose, por exemplo) em proveito de uma terminologia mais afinada com a maneira como os fundadores da Gestalt-terapia consideram a neurose e a psicose, precisamente, como ajustamentos. Nesse sentido, apostaremos nas expressões: ajustamentos de busca (para a psicose) e ajustamento de fuga (para a neurose).
Nesse sentido, quando se diz que, nos ajustamentos psicóticos, percebemos uma espécie de rigidez, tal não tem relação com aquelas respostas comportamentais aparentemente desorganizadas, com os quais, na maioria das vezes, costumamos caracterizar a psicose como uma sorte de “doença”. A rigidez tem antes relação com a “repetição” das tentativas de preenchimento e articulação daquilo que, espontaneamente, não se organiza em alguns momentos de nossa vida, a saber, nosso próprio desejo, nossos próprios excitamentos.
Razão pela qual, por mais rígidos que sejam, os ajustamentos psicóticos são verdadeiros trabalhos de criação na fronteira de contato. Não se trata de doenças, mas de ajustamentos criadores, para usar a letra de Jean-Marie Robine . São formas de viver face às condições de campo em que a função de id se apresenta de maneira atípica. Nos ajustamentos psicóticos, o self inventa - junto aos dados na fronteira de contato - a história que ele não pode reter ou espontaneamente arranjar. Quando bem sucedida, essa invenção vem substituir os excitamentos que, diante do dado, i) ou não se apresentaram, ii) ou se apresentaram de modo falhado ou, ainda, iii) se apresentaram de modo desarticulado. Mas quem, então, é o agente dessa invenção criadora, que aqui estamos chamando de ajustamento psicótico?

3. Ações da função de ego nos ajustamentos psicóticos

O agente dessa invenção é o aspecto do self denominada de função de ego. A função de ego, entretanto, não opera do mesmo modo como ela operaria se tivesse a sua disposição um fundo espontaneamente articulado. Não se trata de encontrar, no dado, possibilidades de expansão do fundo de excitamentos disponível. Afinal, nos ajustamentos psicóticos, esse fundo não está disponível, ao menos como um todo organizado, como uma orientação intencional para a ação do ego. Ou, o que é a mesma coisa, nos ajustamentos psicóticos, a awareness sensorial está comprometida (ausente, falhada ou desarticulada) e, conseqüentemente, ela não se constitui como base, como motivo para a ação da função de ego junto aos dados na fronteira. Ao ego resta então operar de um modo diferente. Em vez de buscar, nos dados, possibilidades de expansão do excitamento (awareness sensorial), ele procura no dado (seja este o corpo próprio, o corpo de outrem, uma palavra ou uma coisa mundana) o excitamento que a função id ela própria não forneceu, ou forneceu a maior, como um elemento desarticulado. Tudo se passa como se o dado pudesse preencher aquilo que, espontaneamente, não se apresentou; ou, como se o dado pudesse dar um limite à angústia proveniente de múltiplos excitamentos que, por conta própria, não se distinguiram quanto a sua relevância ou emergência.
Até o presente momento, nossa pesquisa pôde identificar três tipos fundamentais de ação do ego nos ajustamentos psicóticos: os ajustamentos autistas, os ajustamentos de preenchimento alucinatório e os ajustamentos de articulação delirante e articulação identificatória.
Por ajustamentos autistas, entendemos aqueles comportamentos desprovidos de meta que pudesse ser reconhecida no laço social e, por meio dos quais, a função de ego tenta deter as demandas afetivas que o meio social lhe dirige, logrando assim um modo de satisfação totalmente alheio às expectativas abertas pelos demandantes. Nesses casos, aparentemente, a função id apresenta-se severamente comprometida. Nossa hipótese é de que tenha acontecido uma falha na operação de retenção de formas relativas às vivências primitivas de interação intercorporal da criança no meio. Por outras palavras, a intersubjetividade primária, nos termos da qual o infante inicia seu processo de constituição de uma identidade especular, não se deixa fixar como um fundo assimilado. Conseqüentemente, a criança não dispõe de um repertório de excitamentos com os quais pudesse lidar com a demanda social. Esse é o caso, por exemplo, dos quadros tradicionalmente descritos a partir dos critérios diagnósticos do Dr. Kanner. A função de ego é refratária aos apelos ou necessidades advindas dos semelhantes, razão pela qual sua ação parece acontecer sem meta, como se fosse acometida de uma desorientação. O isolamento, concretizado na forma de um mutismo, parece oferecer um tipo de satisfação sem objeto, sem corpo. Há, além desses quadros, aqueles classificados como síndrome de Asperger. Diferentemente dos primeiros, os segundos conseguem circular muito bem em determinados contextos produzidos de maneira simbólica. Ainda assim, nesses casos, o sofredor não consegue agregar, a essa produção cultural, um fundo emocional. Mesmo dispondo de um verbalismo, trata-se de um verbalismo abstrato que raramente é capaz de acompanhar as sutilezas do emprego cotidiano, como o emprego metafórico, por exemplo. De todo modo, podemos identificar uma forma metonímica de produzir ligações entre determinadas classes de abstração, onde se deixa verificar certa satisfação.
Nos ajustamentos de preenchimento alucinatório, a sua vez, a função de ego também está às voltas com a ausência de um vivido (co-dado) que não foi retido. Porém, diferentemente dos ajustamentos autistas, os vividos não retidos não dizem respeito às experiências intercorporais que constituem nossa intersubjetividade primária (a percepção do olhar, da voz, do gesto do semelhante e assim por diante). Dessa vez, o não retido tem relação com as vivências de contato instituídas pela linguagem, especificamente com as vivências culturais em que se procura deslocar, para o campo simbólico, os excitamentos primitivos originalmente vividos de maneira corporal. Por outras palavras, o que não se retém é o simbolismo na forma da qual transformamos em “valor” social o afeto, a agressividade, a curiosidade, enfim, toda ordem de experiência até então vivida como uma intersubjetividade primária, intercorporal. A função de ego, então, procura alucinar a palavra não retida, fazendo do corpo próprio e das coisas mundanas um corpo palavra, uma imagem palavra, uma voz palavra, tal como na caricatura que fazemos das pessoas ditas esquizofrênicas.
Nos ajustamentos psicóticos de articulação de fundo, o que se passa é possivelmente algo bem diferente do que acontece nos dois anteriores. Isso porque, conforme nossa hipótese acerca da gênese dos ajustamentos psicóticos, há retenção. O que significa dizer que as vivências de contato anteriormente estabelecidas foram assimiladas, fossem elas intercorporais ou culturais. Acontece, entretanto, que a falha agora repousa no processo de repetição desse fundo junto aos novos eventos de fronteira. Ou, mais precisamente, as vivências retidas não comparecem, junto ao novo dado, como um fundo de excitamento articulado, integrado entre si. É como se elas se apresentassem como fundos diferentes, havendo não apenas um fundo, mas muitos. Em decorrência dessa desarticulação, também aqui o sistema self não dispõe de uma orientação intencional espontânea (awareness sensorial), ao menos de uma orientação unificada. Conseqüentemente, a função de ego não sabe com qual fundo operar, a partir de qual parâmetro considerar o evento na fronteira de contato. Em decorrência disso, não se forma, para a função de ego, uma figura definida. A função de ego precisa antes se ocupar do fundo, articulá-lo, estabelecer para os muitos excitamentos uma organização que, espontaneamente eles não têm. A criação da função de ego nesses casos envolve pelo menos duas estratégias. A primeira consiste em alienar, por meio de associações e dissociações delirantes, os excitamentos junto aos dados disponíveis na fronteira de contato. Encontramos aqui as paranóias. A segunda estratégia consiste em eleger, na realidade, um dado com o qual a função de ego possa se identificar, de sorte a poder assumir todos os excitamentos co-presentes (caso em que temos a mania), ou se desviar de todos eles, por se haver identificado a algo morto (caso em que temos a depressão).
Não temos agora tempo para aprofundar a discussão sobre esses tipos de ajustamentos, especialmente sobre a maneira como eles se configuram na clínica e sobre as possíveis estratégias de manejo que desenvolvemos. Tais temáticas estão publicados em uma revista eletrônica brasileira de Gestalt-terapia, que se chama IGT na Rede, editada por Marcelo Pinheiro. Daremos continuidade a nossa exposição com breves comentários sobre a condição dos clínicos que se ocupam de acompanhar ajustamentos psicóticos.

4. O clínico como acompanhante solitário

No trabalho clínico com consulentes que, por vezes ou na maioria delas, se ajustam psicoticamente (ou no modo da busca), os clínicos raramente identificam as categorias com as quais, no artigo supra, procuramos caracterizar as diferentes ações da função de ego (isolar-se do meio social no caso dos ajustamentos autistas, preencher o fundo de maneira alucinatória no caso dos ajustamentos de preenchimento, articular o fundo de maneira delirante ou identificatória no caso dos ajustamentos de articulação). Os ajustamentos psicóticos, na maioria das vezes, são muito sutis e, sobretudo, não dirigem ao clínico uma demanda que os denunciasse, como no caso dos ajustamentos neuróticos. Nestes, os consulentes freqüentemente reclamam do clínico que este lide com a ansiedade advinda os excitamentos que os próprios consulentes inibiram de maneira inconsciente. Nesse sentido, demandam ao clínico: seja meu modelo (confluência); seja minha lei (introjeção); seja meu réu (projeção); seja meu algoz, talvez, meu cuidador (retroflexão); seja meu fã (egotismo) e assim por diante . Nos ajustamentos psicóticos, a sua vez, os consulentes não demandam nada. Quando muito, “fazem uso” da imagem, das ações e das palavras do clínico, servindo-se delas para preencher ou articular algo que, de forma alguma, é uma tentativa de manipulação ou dissimulação. Os consulentes, quando se ajustam psicoticamente, estão tentando compreender algo que se passa com eles; o que é diferente de quando se ajustam neuroticamente, ocasião em que procuram fugir daquilo que estão sentindo (como ansiedade advinda do excitamento inibido). Por isso, nos ajustamentos psicóticos, o clínico quase não tem lugar. O que não apenas dificulta qualquer tentativa de classificação que o clínico nesse momento tentasse fazer, quanto também desencadeia, nesse mesmo clínico, um insuportável estado de angústia. Afinal, o clínico fica sem saber o que se passa e sem saber o que dele se quer. O clínico sente-se um acompanhante solitário.
A experiência clínica nos ensinou essa dura lição: somente quando alcançamos este estado de profunda insegurança e angústia ante os ajustamentos produzidos pelos nossos consulentes é que nos tornamos aptos a participar do esforço que estejam empreendendo para se ajustar. É fato que, depois de tanto tempo de acompanhamento e reflexão, nossa ação parece estar instruída por um fundo de pensamentos já estabelecido – e que este pequeno texto tenta tornar público. Mas a intervenção é mais intuitiva do que planejada; e consiste em ocupar um lugar de secretário, de auxiliar nas ações que a função de ego no consulente esteja desempenhando, sejam elas autistas, alucinatórias, delirantes ou identificatórias. Afinal, não conseguimos compreender o que o consulente elabora, onde ele quer chegar, o que ele está omitindo ou procurando. Ele não dá sinais disso, não percebemos nele traços ansiogênicos, os quais denunciariam para nós a presença de uma inibição inconsciente. Ao contrário, nos momentos em que se ajusta psicoticamente, o consulente age como se tivesse uma certeza impenetrável: a de que só ele pode dar conta da dúvida que o abate. Tentar afrontar essa condição ou roubar do consulente o lugar de protagonista redundaria no fracasso da terapia; ocasionalmente, num pequeno surto.
Respeitar esse limite e, ao mesmo tempo, se fazer disponível para secretariar o ajustamento que, naquele momento, estiver acontecendo é algo muito difícil de fazer. Implica, para o clínico, a suspensão das próprias expectativas. Em alguma medida, temos de ter a coragem de confiar nos consulentes e nos deixar levar para onde eles quiserem nos levar – desde que isso não implique a aniquilação dos laços de inclusão social. Mas não apenas isso. Precisamos compreender que o nosso limite, o limite que impomos aos nossos consulentes é um parâmetro de extrema relevância para que eles possam se certificar do êxito de seus ajustamentos. Nossa pontuação do término da sessão, a denúncia de nossa própria ignorância para acompanhar o delírio que estejam produzindo ou a declaração de nosso mal-estar frente ao contato físico muito intenso que procuram às vezes estabelecer: tudo isso ajuda os consulentes a se organizarem em seus ajustamentos, seja porque podem então compreender a finitude das solicitações que dirigimos a eles, seja porque podem enfim compreender que estamos acompanhando o que eles estão fazendo. De um modo geral, podemos dizer que a melhor intervenção em ajustamentos psicóticos é aquela em que o clínico aprende, alucina, delira e se identifica junto com seu consulente, de modo a poder estabelecer, “de dentro”, o limite do ajustamento que estiver acontecendo.

5. Considerações finais

Com o presente trabalho, quisemos apresentar uma hipótese que ampliasse as formulações lacunares com as quais os fundadores da Gestalt-terapia se referiram às psicoses. Dessa forma, pretendíamos submeter às críticas da comunidade de gestalt-terapeutas uma elaboração que tivesse efeito em nossas clínicas. E, segundo tal elaboração, poderíamos entender que a psicose é, por um lado, o comprometimento da função id ou, o que é a mesma coisa, da capacidade do sistema self para espontaneamente articular, quando não para disponibilizar, um fundo de co-dados (ou excitamentos). Mas, por outro, a psicose é um ajustamento. Trata-se da efetiva capacidade da função de ego para aprender, preencher e articular seu próprio fundo, de modo a poder operar fluidamente com os dados na fronteira de contato. Cada uma dessas atividades da função de ego (aprender, preencher e articular) caracteriza um tipo de ajustamento (autista, de preenchimento ou de articulação), o qual sempre depende do laço social para poder se efetivar. O surto, a sua vez, é o malogro social desses ajustamentos e a conseqüente emergência de um estado aflitivo, no qual o sistema self não encontra força para operar com os dados e com os próprios excitamentos, caso eles se apresentem. A função do terapeuta é assegurar direito de cidadania aos ajustamentos psicóticos produzidos pelos consulentes – estejam estes ou não em surto. Para tanto, os terapeutas devem poder promover o deslocamento seguro dos ajustamentos com menor poder de contratualidade para ajustamentos com maior aceitação social; o que de forma alguma se confunde com a eliminação dos ajustamentos psicóticos em proveito de um padrão de comportamento adaptado, freqüentemente neurótico. Trata-se, ao contrário, de apoiar o consulente para que este possa fazer valer seu modo de vida, seus ajustamentos psicóticos nos contextos nos quais se insere. O que, em última instância, também ilustra o caráter “político” do trabalho de acompanhamento terapêutico de pessoas que se ajustam psicoticamente.

Referências

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CALLIGARIS, Contardo. 1989. Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre: Artes Médicas.
GRANZOTTO, M.J.M.; GRANZOTTO, R.L. 2007. Fenomenologia e Gestalt-terapia. SP: Summus.
PERLS, Frederick 1942. “Ego, fome e agressão”. Trad. Georges Boris. São Paulo: Summus, 2002.
_____. 1969. Gestalt-terapia explicada. Trad. Georges Schlesinger. São Paulo: Summus. 1981.
PERLS, F.; HEFFERLINE, R.; GOODMAN, P. 1951. Gestalt Therapy: excitement and growth in the human personality. Second Printing. New York: Delta Book, 1965.Tradução utilizada: Gestalt-Terapia. Trad. Fernando Rosa Ribeiro. São Paulo: Summus, 1997.
ROBINE, Jean-Marie. 2004. S’apparaître à l’occasion d’un autre – Etudes pur la psychothérapie. Bordeaux: L’Exprimerie, 2004.
TATOSSIAN, Arthur. 2006. Fenomenologia das psicoses. Trad. Célio Freire. SãoPaulo: Escuta.

A CLÍNICA GESTÁLTICA DA AFLIÇÃO E OS AJUSTAMENTOS ÉTICO-POLÍTICOS

MÜLLER, M.J., GRANZOTTO, R.L. “A clínica gestáltica da aflição e os ajustamentos ético-políticos”. Centro de Documentação da Gestalt-terapia Brasileira. URL: http://www.igt.psc.br/ojs2/index.php/cengtb/article/view/194/506

Resumo: Consiste este artigo numa tentativa de compreender, à luz da teoria do self formulada por Perls, Hefferline e Goodman (PHG), a falência social das experiências de contato em que os dados de realidade tornam-se inacessíveis ao agente do contato, precisamente, a função de ego encarnada por determinada personalidade. PHG denominam de “misery” (aflição) o estado de falência social de uma experiência de contato. Nessas situações, o sistema-self perde sua espontaneidade e a função personalidade acaba sendo destruída, tal como ocorre no luto, nos acidentes, no adoecimento somático, na crise reativa, no surto psicótico e na exclusão social. Conforme nosso entendimento, nessas situações, o sistema-self não deixa de funcionar. Não obstante a aflição na qual se encontra, ele produz um ajustamento criador, por nós denominando de ajustamento ético-político.

Palavras-chave: aflição sofrimento ético-político ajustamento ético-político personalidade


Introdução: o sentido ético-político da função personalidade para a Gestalt-terapia

A experiência do contato sempre envolve, conforme podemos ler na obra Gestalt-terapia (PHG, 1951, p. 48), três elementos principais: a preocupação atual (que inclui nossas necessidades fisiológicas e as demandas sociais formuladas na linguagem), os excitamentos (que retornam de um fundo de hábitos assimilados) e as soluções vindouras (que mais não são que nossos desejos formulados a partir da expectativa de nossos semelhantes). E é na forma da ação criadora que esses três elementos são enovelados como um só fenômeno de campo: “(c)ontato é ‘achar e fazer’ a solução vindoura. A preocupação é sentida por um problema atual, e o excitamento cresce em direção à solução vindoura mas ainda desconhecida” (PHG, 1951, p. 48). Qual o “resultado” dessa experiência? Cometeríamos um equívoco se pensássemos que a experiência do contato implica apenas um tipo de resultado. Afinal, os elementos antes mencionados descortinam três dimensões diferentes da experiência de contato. Os excitamentos são “assimilados” como forma impessoal, resíduo que escapa ao nosso saber, às nossas tentativas de elaboração intelectual (awareness reflexiva), permanecendo como fundo de hábitos motores e linguageiros impossível de ser significado: passado operativo. Os desejos são “produzidos” como aquilo que empurramos à frente, qual horizonte, domínio presuntivo do que queremos ser ou alcançar junto às expectativas de nossos semelhantes: futuro de possibilidades. Mas as expectativas dos semelhantes, as demandas sociais, as nossas necessidades atuais: elas implicam algum tipo de resultado? Sim. E eis aqui a base daquilo que constitui, segundo PHG (1951, p. 277), nossa função personalidade: um dos mais importantes resultados do “contato social criativo é a formação da personalidade: as identificações de grupo e as atitudes retóricas e morais viáveis”.
A função personalidade não é aqui uma espécie de síntese entre o que retorna como excitamento (awareness sensorial) e o que surge como horizonte de possibilidades ou, simplesmente, desejo (awareness deliberada). Ela é, sim, uma terceira dimensão de nossa existência, na qual, em grande parte das vezes, alienamos a angústia advinda do fato de nunca conseguirmos fazer coincidir, nas experiências de contato, o passado e o futuro ou, o que é a mesma coisa, os excitamentos e os desejos. Ela é o sistema de pensamentos, valores e instituições às quais recorremos no intuito de lograrmos uma identidade, um “ser social”. Assim compreendida, a função personalidade é uma espécie de Grande Outro Social que experimentamos junto aos grupos que integramos, aos valores que assumimos e aos expedientes lingüísticos de que nos servimos como “réplica verbal” de nossas vivências de campo (PHG, 1951, p. 188). Junto a esse Grande Outro, sentimo-nos amparados, inteiros, reconhecidos e, ao mesmo tempo, incumbidos de responsabilidade. O amor-próprio, o reconhecimento de nosso valor para nós mesmos e para alguém é sempre uma vivência da função personalidade, é sempre um tipo de prazer/desprazer que alcançamos em decorrência de nossa participação na vida desse Grande Outro Social no qual nos espelhamos. O lugar – ou éthos - que ocupamos ante os olhares desse Grande Outro, bem como as relações sociais – e, nesse sentido, políticas – que estabelecemos com os semelhantes que encarnam o Grande Outro são dimensões da função personalidade. O que nos permite concluir, a partir de PHG, que é apenas nos termos da função personalidade que a experiência do contato adquire um sentido ético-político. Afinal, conforme PHG (1951, p. 187), a função personalidade é “o sistema de atitudes adotadas nas relações interpessoais; é a admissão do que somos, que serve de fundamento pelo qual poderíamos explicar nosso comportamento, se nos pedissem uma explicação”.
Ora, conforme sabemos, as experiências de contato podem malograr. Tal significa dizer: uma determinada produção pode não acontecer. Os excitamentos, por exemplo, podem não ser assimilados (como no caso dos autismos e das esquizofrenias) ou, ainda, irromper de maneira desarticulada (como no caso das paranóias e dos comportamentos maníaco-depressivos). A inibição sistemática de um fundo de excitamentos, a sua vez, pode inviabilizar ações criativas em direção a um horizonte de futuro (tal como ocorre nos comportamentos neuróticos). Da mesma forma, pode ocorrer de as experiências de contato não resultarem como função personalidade, o que significa dizer, como identidade social a um grupo, a um valor ou a uma conduta. É nesse momento, então, que vamos nos deparar com uma situação para a qual a Gestalt-terapia brasileira cada vez mais tem voltado seus olhos, precisamente, o sentimento de aflição decorrente do fato de não encontrarmos um lugar ético em que possamos estabelecer relações políticas. Pensemos no que sentem as pessoas vítimas da violência gratuita praticada nos grandes centros urbanos; no que sentem aquelas que foram excluídas da cadeia produtiva ou que tiveram de se submeter a um regime paralelo de produção na condição de escravos. Pensemos ainda no sentimento de quem foi atingido por uma tragédia natural, ou acometido de uma doença. Ou, talvez, como não se sentem pessoas excluídas das relações sociais por conta de preconceitos e conflitos ideológicos. O que se passa com quem foi identificado a representações sociais indesejáveis, como a loucura, a diferença, a minoria, a marginalidade?
PHG tem uma expressão que pode nos ajudar a pensar esses sentimentos. Trata-se do significante “misery”, traduzido ao português como aflição, mas que propomos tomar como estado de sofrimento ético-político. Nas palavras de PHG: “(c)omo distúrbio da função de self, a neurose encontra-se a meio caminho entre o distúrbio do self espontâneo, que é a aflição, e o distúrbio das funções de id, que é a psicose” (PHG, 1951, p. 235). Ora, o que aqui se passa? Ante a impossibilidade de vivermos relações ético-políticas, o que acontece conosco, o que acontece com o sistema self no qual estamos inseridos? Podemos, nessa condição, produzir ajustamentos criativos? É o que pretendemos discutir no presente artigo, tendo como base nossa trajetória de intervenção no campo do sofrimento ético-político e os rudimentos teóricos fornecidos pela teoria do self.

Sofrimento ético-político e ajustamento ético-político

Apesar de mencionarem o sofrimento ético-político (misery) como uma dentre as formas malogradas do sistema self, PHG não aprofundaram a descrição deste “quadro”, menos ainda se ocuparam de descrevê-lo em um contexto clínico. Disseram apenas se tratar de uma falha no funcionamento espontâneo do sistema self, o que significa dizer, de uma falha na experiência de contato, cuja conseqüência é a não produção de uma função personalidade. Mas tal não quer dizer que o sistema-self tenha deixado de funcionar. Conforme admitiram para o caso da interdição da função de ego por uma inibição reprimida, qual seja tal admissão, que o sistema self ainda assim é capaz de produzir ações criativas, às quais chamaram de neurose (e que preferimos denominar de ajustamentos de evitação); tal como nós mesmos fizemos em relação àquilo que PHG chamaram de comprometimento da função id, a saber, que apesar de tal comprometimento o sistema self é capaz de produzir ajustamentos psicóticos (ou de busca); dessa vez, arriscamo-nos a dizer que, em se tratando do comprometimento da função personalidade, o sistema self segue criando. A criação, agora, não implica a produção de um laço amoroso/odioso com alguém que deve fazer algo “por nós”, como nos ajustamentos de evitação. Tampouco se trata de uma construção voltada exclusivamente para o fundo de excitamentos, não importando o horizonte de desejo descortinado na mediação das demandas do Grande Outro, como no caso dos ajustamentos psicóticos (de busca). A criação, em situações em que se pode verificar sofrimento ético-político, tem relação com a solidariedade, com os pedidos genuínos de inclusão, na forma da qual efetivamente atribuímos e reconhecemos o poder do semelhante para nos ajudar.
De fato, não é preciso ir muito longe para encontrarmos, em nosso cotidiano, situações que ilustram o que PHG estão chamando de sofrimento ético-político (misery). Os múltiplos conflitos sociais (econômicos, políticos, étnicos, religiosos...), os acidentes e adoecimentos em geral configuram situações de tensão, que aqui estamos chamando de sofrimento ético-político. Mas é importante não confundirmos o sofrimento ético-político propriamente dito com os fenômenos que o possam desencadear. Não obstante se tratar de algo diretamente relacionado à maneira como os estados da natureza e as múltiplas formas de poder viabilizam ou não a autonomia de uma função de ego para viver uma experiência de contato que culmine na produção de uma personalidade, o sofrimento ético-político é tão-somente a vivência da impossibilidade da identificação à determinada personalidade. Isso significa dizer que, em decorrência de uma privação natural ou de um conflito social, nossa função de ego não consegue encontrar dados de realidade (aos quais também chamamos de Grande Outro Social), por meio dos quais possa, por um lado, abrir uma dimensão de desejo a partir das possibilidades oferecidas por tais dados e, por outro, alienar-se nessas possibilidades, de sorte a alcançar uma imagem unificada da própria experiência de contato; imagem essa à qual denominamos de nossa personalidade. De onde se segue que o sofrimento ético-político é antes um efeito dos acidentes naturais e dos conflitos sociológicos e sua característica fundamental tem relação com o fato de a função de ego sentir-se privada dos dados sociais concretos em que pudesse fruir de determinada identificação. Por conta de uma limitação do meio – que assim se furta à livre ação da função de ego – sentimo-nos impedidos de encontrar dados de realidade ou, o que é a mesma coisa, laços sociais (instituições, valores, identidades ou valores), na mediação dos quais conseguíssemos viver o contato. Dizendo de outro modo: apesar de dispormos de um fundo de excitamentos (função id), a falta de dados (de uma realidade material e sociolingüística) impede o sistema self de agir, de desempenhar a função de ego. Conseqüentemente, o sistema não apenas deixa de estabelecer o contato entre sua dimensão passada (excitamentos) e sua dimensão futura (expectativas, desejos), como também se vê impedido de assumir um valor ou identidade objetiva no presente. A função personalidade, portanto, não se desenvolve e o processo self sofre em decorrência de não poder assumir uma identidade objetiva.
Nos contextos em que há sofrimento ético-político (privação de dados ou, o que é mesma coisa, privação de contexto material e sociolingüístico), a função de ego opera um tipo de ajustamento criativo, que chamaremos de “ético-político”. Nele, a função de ego faz da ausência de dados (da exclusão social ou da privação natural) um “pedido de socorro”. Dessa forma, ao mesmo tempo em que aliena seu poder de deliberação em favor do meio, dá ao meio o status objetivo de alteridade. Por outras palavras: o pedido de socorro faz do meio um “ego auxiliar”. O Grande Outro Social deixa de ser um demandante ou um arcabouço de possibilidades para se tornar um “semelhante”. Funda-se, assim, a experiência da ajuda desinteressada e um tipo especial de identificação personalista que é a solidariedade. À gratuidade do Grande Outro como semelhante, a função de ego responde com gratidão e a função personalidade, assim, alcança um patamar propriamente humano.
Mas é preciso atenção aqui. O Grande Outro enquanto “semelhante” não é, como nos ajustamentos neuróticos, a personalidade a quem nós manipulamos de sorte a ela se sentir responsável por nossa ansiedade (excitamento inibido). Tampouco é alguém a quem desejamos destruir (como nos ajustamentos anti-sociais) ou a quem tornamos representantes de nossos próprios excitamentos (como no caso dos ajustamentos de busca). Ao contrário, “o semelhante” é a personalidade em quem reconhecemos uma genuína capacidade de ajuda solidária, que favoreça nossa inclusão. Isso quer dizer: nos ajustamentos aflitivos, o semelhante não é responsabilizado por nosso “sofrimento”, alvejado por deliberações anti-sociais ou restringido à condição de instrumento. Ele é convocado a ajudar-nos, apoiar-nos; o que significa dizer que ele é simultaneamente reconhecido na condição de “ego fazedor”. Em vez de manipulação, destruição ou uso há, sim, autorização do semelhante. Supomos que ele (o semelhante) saiba como nos ajudar a lidar com isso que para nós é impossível naquele momento: a inclusão em determinado contexto social, que pode ser desde um horário para consulta a uma vaga de internação em um hospital.
O ajustamento ético-político, portanto, é um pedido de reconhecimento, mas um pedido especial, uma vez que ele parte de alguém que não consegue mais se identificar à realidade natural e social em que se encontra. Não há um pedido de reconhecimento específico voltado para esta ou aquela identidade. O sofredor não sabe sequer o que lhe falta. Seu pedido é para que ele possa voltar a pedir. Trata-se de um ajustamento cuja meta é encontrar “suporte” para que se possa voltar a criar, para que os ajustamentos criadores voltem a acontecer, sejam eles sincréticos, de busca, de evitação ou anti-sociais.

Modos clínicos do sofrimento ético-político

Não é incomum ouvirmos, mesmo entre profissionais psicólogos, que as situações que envolvem sofrimento ético-político não são objeto da intervenção clínica. Isso por que a solução daquelas situações implica ações políticas mais amplas, nas quais o psicólogo deve se inserir como mais um. Há dois grandes equívocos aqui. Em primeiro lugar, confunde-se a situação geradora de sofrimento ético-político com o sofrimento ético-político enquanto tal. Em segundo lugar, reduz-se o espectro de atuação clínica às práticas inspiradas no cuidado médico. Afiliados a uma compreensão de clínica enquanto “ética” - desvio em direção às manifestações do estranho enquanto excitamento (função id), ação criadora (função de ego) e identidade frente ao Grande Outro (função personalidade) -, acreditamos que o psicoterapeuta não é apenas mais um a intervir nos conflitos sociais ou nas variáveis naturais que possam estar gerando sofrimento ético-político. O psicoterapeuta é, sim, aquele que pode escutar, nesse sofrimento, o apelo por suporte, o apelo por inclusão, bem como aquele que, a partir desse apelo, pode acompanhar o processo de tomada de decisão que cada sujeito sofredor (cada função de ego) empreende face aos conflitos e dificuldades que esteja vivendo. O psicoterapeuta é aquele que cuida da autonomia dos sujeitos (funções de ego) envolvidos nas situações de exclusão social e privação natural. E a clínica, nesse sentido, não é uma prática curativa, que devesse ser exercida em um consultório a partir de uma farmácia ou de uma biblioteca; ela é sim a co-participação em uma forma de ajustamento criador, no caso, um ajustamento ético-político, cuja característica é justamente a formulação de um apelo, de um pedido de socorro. Afinal, tão difícil quanto sofrer as conseqüências de um acidente ou de uma exclusão social é, às vezes, conseguir pedir ajuda.
É tendo em vista a salvaguarda dessa dimensão ética, que se define como “abertura às manifestações do outro (seja ele um excitamento, um sujeito, um desejo ou a impossibilidade de um deles)”, que propomos um retorno ao significante “clínica”. Não estamos nos referindo às práticas de administração de uma saber junto ao leito (Klinikós), as quais caracterizam o modo de atuar do médico. Estamos, sim, nos referindo à prática do desvio (Clinamen) em direção ao outro. No caso que agora nos interessa: estamos fazendo menção ao desvio da nossa atenção em direção àquilo que se manifesta como sentimento de exclusão (sofrimento ético-político) e pedido de socorro (ajustamento ético-político). Mais do que ver qual é a necessidade material ou por qual razão alguém nos pede comida, dinheiro, emprego, escuta...; interessa-nos acompanhar o processo de reconstrução da autonomia e do auto-reconhecimento da função de ego que nos faz esse pedido. Interessa-nos estar junto dessa função de ego, onde quer que ela precise estar para reconquistar sua autonomia e voltar a fazer ajustamentos criadores, aconteça isso em nosso consultório, em uma agência de saúde, em uma empresa ou em praça pública. Mas para onde, então, essa deriva (clínica) ética nos conduz? Quais são as manifestações clínicas do outro em sofrimento ético-político?
Em nossa experiência clínica observamos alguns contextos em que se configuram, freqüentemente, manifestações de sofrimento ético-político. Basicamente estamos falando dos sofrimentos e dos ajustamentos ético-político que testemunhamos em situações de adoecimento somático, acidente e fatalidade, crise reativa, surto psicótico e exclusão social. Interessa-nos caracterizar os ajustamentos que aí se produzem e as possibilidades clínicas que tais ajustamentos reservam aos clínicos gestálticos.

O sofrimento e o ajustamento ético-político nos acidentes e fatalidades

A função de ego pode se deparar com uma privação de possibilidades de atuação em decorrência de acidentes e fatalidades. A morte de alguém por quem se tinha muito afeto, a destruição de um bem investido de valor (não importa qual), as vicissitudes e mudanças muito drásticas vividas em estado de natureza, todas essas ocorrências podem fazer desaparecer, do horizonte de futuro de uma função de ego, as possibilidades junto às quais ela poderia não apenas realizar (como desejo) um fundo de excitamentos como também lograr uma sorte de identificação ou regozijo personalista.
É o que, por exemplo, viveram as pessoas vítimas das catástrofes naturais que atingiram o Estado de Santa Catarina em dezembro de 2008. Após um período de mais de cem dias com chuvas contínuas, o litoral norte catarinense foi atingido por uma precipitação avassaladora, a qual provocou, além das inundações, deslizamentos que mudaram para sempre a geografia das cidades da região, causando a morte de 140 pessoas e o desalojamento de outras 79.000. As pessoas não apenas tiveram suas casas inundadas. Em diversas cidades bairros inteiros foram soterrados pela lama que desceu das encostas encharcadas, mesmo em locais cuja vegetação estava preservada. Os atingidos perderam familiares, amigos, bens e, por conseqüência, o horizonte de expectativas nos quais investiam no curto e médio prazo de suas vidas. Não apenas isso: também perderam as referências por meio das quais compartilhavam valores e histórias a respeito de si, das famílias, das comunidades e das instituições. Obrigados a viver em abrigos e alojamentos improvisados, não vislumbravam mais os objetos e, por vezes, as pessoas junto a quem celebravam suas próprias identidades sociais.
O encontro com as pessoas nessas condições é uma experiência marcante. Mais além da sombra de todas as nossas perdas, encontramos a aflição de quem não consegue encontrar um suporte a partir de onde possa voltar a agir. As expressões e movimentos por vezes desesperados não se confundem com a hebefrenia dos autistas que a todo custo tentam se livrar das injunções às quais não conseguem responder. A desorganização comportamental das pessoas vítimas de perdas tem relação com o fato de não acharem meios para agir, para tomar decisões, para elaborar o que estejam vivendo ou precisando. Repetem comportamentos totalmente desarticulados com as demandas sociais presentes e que, em parte, lembram as buscas empreendidas nos ajustamentos psicóticos. Mas a busca não é por um saber sobre si (como no caso dos ajustamentos de preenchimento) e, sim, por um saber sobre o que está acontecendo no meio social. Afinal, em decorrência do acidente, tal meio se tornou inóspito. Nesse sentido, aqueles movimentos desorganizados são, em verdade, pedidos de socorro.
A intervenção que acreditamos produzir um efeito de potencialização da autonomia da função de ego nos sofredores é aquela que empresta corpo ao desesperado. Um simples abraço, um olhar sem demanda, a escuta aos lamentos, dentre outras posturas que possamos assumir e que tem relação com os cerimoniais sociais de solidariedade que aprendemos, produz um efeito muito grande junto aos sofredores. Trata-se de ações que autorizam a função de ego nos sofredores a procurar uma solução. É como se nós estivéssemos a garantir o tempo necessário para que os sofredores pudessem se representar o que eles estão vivendo naquele momento, de sorte a compreenderem as possibilidades imediatas de que dispõem, muito especialmente, a possibilidade do luto.

O sofrimento e os ajustamentos ético-políticos na doença somática

A ampliação das políticas de saneamento e distribuição de renda, por um lado, e a ostensiva intervenção tecnológica (farmacêutica e biomecânica) no corpo humano, por outro, aumentou consideravelmente a longevidade nos seres humanos, ao menos se compararmos os tempos de hoje aos do século XVIII. Isso significa dizer que, em alguns casos, nós conseguimos erradicar moléstias, noutros, conseguimos um maior controle dos sintomas e dos efeitos do adoecimento. Esse maior controle, a sua vez, possibilitou a sobrevida aos doentes, mas, também, uma maior convivência com os sintomas e com os efeitos do adoecimento. Ás vezes pacífica, noutras muito dolorosa, essa maior convivência com a doença aprofundou, mais além do fenômeno da dor e da falência metabólica e funcional, nosso contato com o “sofrimento psicossocial ou sociolingüístico” desencadeado por aqueles sintomas e efeitos. Depois que um quadro agudo é revertido, a convivência com as seqüelas orgânicas é, em certas ocasiões, mais tranqüila do que a convivência com a piedade alheia. Ou, ainda, a convivência com as limitações motoras e cognitivas é mais fácil do que a convivência com as demandas “otimistas” dos “terapeutas da alegria”, os quais, no intuito louvável de ampliar as possibilidades de vida nos adoecidos, acabam demandando aquilo que nem sempre os doentes podem e querem oferecer. Em certa medida, o meio social não tolera bem o luto; e as exortações animistas, a interdição da queixa e as demandas oportunistas dirigidas aos doentes acabam desencadeando um quadro de sofrimento ético-político.
O sofrimento ético-político nos contextos de adoecimento somático tem muitas semelhanças com o que acontece nos contextos marcados por acidentes e perdas. Há também aqui a falência de um dado social que impede a função de ego de produzir uma personalidade à qual pudesse se identificar. Mas, dessa vez, o dado que está se perdendo é o corpo anatomofisiológico (base de qualquer evento social). Sem esse dado, como o sabemos, o sistema self não opera sua função ego. Na doença, entretanto, é apenas parte desse corpo que está indisponível. Ainda assim, essa limitação impede a função de ego de almejar no futuro (como horizonte de desejo), modos de satisfação (de seus excitamentos) especificamente ligados ao corpo agora adoecido. Não apenas isso, o corpo adoecido priva a função de ego do desfrute da imagem social à qual ele se identificava até então. “Já não sou mais aquele trabalhador bem disposto, que sabia tudo o que se passava em meu setor”, afirma o trabalhador vítima de um acidente vascular cerebral. As limitações motoras que restaram como seqüela da intercorrência orgânica ameaçam seu posto de trabalho e sua estima. E os exercícios e comandos da fisioterapeuta, às quais o doente tenta corresponder, em alguns momentos são ouvidos como verdadeiros atestados de sua incapacidade laboral. A aflição toma conta do trabalhador, porquanto, em seu horizonte de futuro, ele não encontra mais lugar para si mesmo.
A intervenção nos casos de adoecimento somático não se volta, evidentemente, ao tratamento da patologia orgânica. Não é essa a função do clínico gestáltico. A intervenção destina-se sim a salvaguarda e restabelecimento da autonomia possível que o adoecido possa sustentar. Trata-se, nesse sentido, de vitalizar a função de ego que o adoecido possa desempenhar. Mas, se o corpo está adoecido, o que significa dizer, com parte de sua constituição anatomofisiológica indisponível, a tarefa do clínico nesse momento é oferecer um corpo auxiliar. Afinal, o doente precisará encontrar um duplo que o ajude a se ajustar no campo. Por outras palavras, a função de ego no consulente aflito necessita de um corpo auxiliar, que dê a ela condições de, por um lado, continuar operando a partir de seus excitamentos e, por outro, continuar criando um horizonte de expectativas (desejo), o que inclui o luto. O corpo substituto pode ser a escuta do terapeuta, um recurso lúdico, uma técnica de arte-terapia, dinâmicas em terapia de grupo...
É no contexto hospitalar que mais nos deparamos com quadros de sofrimento ético-político motivado por doença somática. E aqui é sempre importante distinguir a queixa relativa aos sintomas da doença e o sofrimento em decorrência da perda de uma determinada identidade subjetiva frente às expectativas sociais. Somente esse segundo faz parte do que estamos denominando de sofrimento ético-político. Mesmo do ponto de vista das manifestações comportamentais, o sofrimento ético-político é muito diferente das manifestações corporais de dor. Diferentemente destas, aquele não é um comportamento sem-meta. Ao contrário, trata-se de comportamentos que claramente dirigem um pedido de ajuda a alguém, mesmo que de forma não verbal. Diante desses quadros, os clínicos não se sentem manipulados (o que caracterizaria um ajustamento neurótico), mas convocados a ouvir e a falar sobre o que está mais além do quadro de convalescência que os doentes estão vivendo, precisamente, a finitude ou morte. As perguntas sobre a doença não são especulações teóricas sobre o que seja a doença ela mesma, mas tentativas de compreensão sobre as conseqüências e possibilidades que, a partir da doença, o doente poderá contar ou perder. Eis aqui o ajustamento ético-político propriamente dito. Frente a ele, a intervenção consiste no oferecimento de recursos expressivos, com os quais os sofredores possam:
1. elaborar o luto do órgão e da função que esteja sendo perdida;
2. celebrar o passado;
3. discutir possibilidades de nova inserção social (quando não se tratar de pacientes terminais).
Desse modo, oferecemos, aos consulentes aflitos, uma oportunidade de aceitação social de suas experiências passadas, de suas expectativas, e também da experiência de perda.

O sofrimento e o ajustamento ético-político nas situações de crise reativa

O estado crônico de formação reativa em pessoas que estejam vivendo a falência social de seus ajustamentos neuróticos (ou de evitação) também caracteriza um quadro de sofrimento ético-político. Suponhamos uma situação em que o meio social não tolera mais as manipulações neuróticas por cujo meio alguém tenta diminuir a ansiedade decorrente da inibição inconsciente de seus próprios excitamentos. Por conta dessa intolerância, nosso personagem neurótico não pode mais produzir ajustamentos de evitação. Mais além da ansiedade, ele agora vai enfrentar um quadro de aflição em decorrência da exclusão social de seus comportamentos. A alternativa que encontra é promover a destruição do sistema-self do qual faz parte, especialmente as identificações nas quais se apoiava até ali. Eis a crise reativa, que é um estado crônico de formação reativa voltada contra si.
É verdade que, por vezes, a frustração social de um ajustamento de evitação pode favorecer o neurótico. A recusa das pessoas em participar de uma manipulação pode levar o neurótico à suspensão de seus próprios hábitos inibitórios em proveito de novos ajustamentos criadores. Mas, mesmo nessas situações, é preciso que o meio social forneça suporte para que aqueles ajustamentos criadores aconteçam. Caso esse suporte não seja oferecido, não há como a função de ego no neurótico retomar a regência da vivência do contato. Tal função vai ficar no vazio, no vazio de possibilidades, o qual é um estado aflitivo, de sofrimento ético-político. De sorte que, seja por não dar direito de cidadania a um ajustamento neurótico, seja por privar uma função de ego de dados que lhe permitissem ultrapassar os ajustamentos neuróticos, a exclusão social está na gênese desse tipo específico de sofrimento ético-político, ao qual chamamos de crise reativa e que outra coisa não é senão a falência social da neurose.
Um exemplo dessa situação é a crise (ou ataque) de pânico. Os dados na fronteira de contato não corroboram os expedientes de defesa que, inconscientemente, alguém desempenha. Ao contrário, é possível que esses dados aproximem ainda mais o sujeito ansioso dos excitamentos que ele evita habitualmente. A ansiedade torna-se então intolerável e ele não encontra no meio social nenhum suporte, seja para aliená-la, seja para enfim operar uma ação criativa a partir dos excitamentos agora debelados. A alternativa que sobra é a defesa fóbica, a regressão a um estado ou posição espacial anterior, em que possa se sentir mais seguro. Isso poderia nos levar a pensar se tratar de um ajustamento de busca – alucinação dissociativa, especificamente paranóica. O que não é o caso, uma vez que o sujeito consegue reconhecer a natureza da demanda que a ele é dirigida (porquanto ele dispõe de um fundo de excitamentos), o que não acontece nos ajustamentos alucinatórios. Ainda assim, ele não tem dados de realidade com os quais pudesse operar. E a própria função de ego começa a entrar em falência: crises respiratórias, espasmos musculares, desmaios...
Tais reações, em verdade, são apelos desesperados por ajuda. Desesperados porquanto não sabem o que pedir, o que esperar. A regra básica é não confrontar o agente desses comportamentos reativos, que geralmente é a própria inibição reprimida. Ao contrário disso, recomenda-se reforçar o controle da função de ego na pessoa aflita, começando com um trabalho de atenção à respiração, depois ao controle da motricidade e, finalmente, atenção aos conteúdos semânticos (função personalidade) que tal pessoa possa articular com a fala.
Quando as crises reativas acontecem em situações de consultório ou de trabalho terapêutico com grupo, não é recomendável qualquer tipo de pontuação a respeito de hábitos motores e linguageiros (os quais constituem as formas ou excitamentos presentes). Tal pontuação somente seria o caso se o consulente respondesse às intervenções por meio de ajustamentos de evitação. Mas, a crise reativa é justamente a falência do ajustamento de evitação. Nessa situação é fundamental que o clínico possa ajudar o consulente a identificar qual é o dado (ou necessidade) faltante que possa restabelecer a segurança no sistema self que esteja sendo vivido.

Sofrimento e ajustamento ético-político em situações de surto psicótico

Se a crise reativa é a falência social de um ajustamento de evitação, o surto psicótico é a falência social de um ajustamento de busca. O buscador (que é aquele para quem o fundo de excitamentos está ou ausente ou desarticulado) freqüentemente procura no meio social os recursos que lhe permitem alucinar, delirar ou identificar criações que façam às vezes de fundo de excitamentos. Talvez por não priorizar o horizonte de expectativas aberto (ou demandado) pelo meio social, ou, simplesmente, por não desejá-lo (tal como se esperaria), o buscador têm atitudes “estranhas” à cultura dominante. Ou, então, ele faz uso dos recursos oferecidos pelo meio social sem neles se alienar. Afinal, o buscador não pode abrir mão da regência de suas próprias ações, as quais sempre visam fazer da realidade seu próprio horizonte de excitamentos. Por conta disso, ele é freqüentemente tachado de inconveniente e, por extensão, excluído dos laços sociais. Tal exclusão tem para ele conseqüências muito sérias. Por um lado, o buscador vê sua angústia aumentar, uma vez que foi impedido de buscar suplência para seus próprios excitamentos. Por outro, sua angústia passa a ser tratada pelas múltiplas formas de poder instituídas na sociedade como uma ameaça à ordem e a paz social. O buscador é então interditado, impedido de exercer seus direitos civis e submetido a um regime carcerário “branco”, que é a internação psiquiátrica. Talvez aqui encontremos o lado mais sombrio do sofrimento ético-político.
A exclusão social do buscador acontece de várias formas, especialmente por juízos de atribuição, que fazem dele um “louco”, um “desajustado”, um “sem juízo”... O buscador passa a ser estigmatizado não apenas por representações sociais desqualificadoras, mas também pelo próprio saber psicológico e psiquiátrico. O psicodiagnóstico, quando utilizado mais além dos estritos limitas da comunicação entre os agentes de saúde, torna o buscador alguém assujeitado a um saber e a um tipo de curatela com a qual ele não pode interagir. O psicodiagnóstico, ademais, torna o buscador alguém indesejável aos olhos de sua comunidade de referência. O quadro evolui para um estado de extrema angústia, que se deixa perceber na radicalização dos ajustamentos de busca (alucinações, delírios e identificações). Estes acontecem cada vez mais isolados das formas de interação social e aquilo que antes era angústia agora se transforma em aflição, verdadeiro estado de sofrimento ético-político. Na fronteira de contato, testemunhamos uma espécie de desistência em relação às possibilidades que o meio social poderia oferecer. Os buscadores se fecham em alucinações, delírios e identificações descoladas das relações sociais. E passam a sofrer todo tipo de discriminação.
A pior delas, certamente, é a que obriga os buscadores à internação psiquiátrica. Afastados de seu meio social, os buscadores perdem as poucas referências de realidade com as quais enfrentavam aquilo que para eles em algum momento torna-se muito angustiante, precisamente, a ausência ou a desarticulação do fundo de excitamentos. Sem seus objetos cotidianos, sem os espaços habituais e a intimidade das pessoas próximas, os buscadores não podem produzir suplências para tal fundo. Ao contrário disso, são submetidos a um regime institucional que os priva de singularidade e autonomia, pois já não podem ter objetos pessoais, tampouco decidir sobre sua própria rotina. Não há mais como operar ajustamentos de busca, pois é preciso antes lutar para readquirir a liberdade de criar, quando não para defender a vida. É o que ouvimos freqüentemente de nossos consulentes e, sobretudo, dos usuários do programa substitutivo CAPS, os quais têm histórico de internação. Enquanto estiveram internados, mesmo em clínicas “altamente qualificadas”, com setor de psicologia instalado, os buscadores conviviam cotidianamente com a violência do confinamento e da administração de drogas, as quais interditam a criatividade da função de ego em cada qual. A recusa à participação do tratamento geralmente é encarada como uma “resistência” que deve ser domada; e não são poucas as denúncias de maus tratos sofridos por pacientes em hospitais e clínicas psiquiátricos. Vide o livro, escrito em forma de dossiê, intitulado “A instituição sinistra – mortes violentas em hospitais psiquiátricos no Brasil” (SILVA, 2001). Organizado por este eminente militante da luta antimanicomial brasileira, que é Marcus Vinícius de Oliveira da Silva, ex-presidente do Conselho Federal de Psicologia, o livro reúne sete estudos sobre casos hediondos de mortes ocorridas em instituições psiquiátricas no Rio Grande do Sul, Goiás, Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Bahia. Nas palavras de Oliveira da Silva: “(o) que mais impressiona, quando tomamos conhecimento de cada um desses crimes da paz, é o caráter naturalizado e banal assumido por estes ‘eventos’ na dinâmica das instituições nas quais eles ocorrem” (2001, p. 8). Pior ainda, continua o autor é “o caráter conspiratório e farsante que cerca, de modo geral, a apuração das responsabilidades nesses casos”. Afinal, “o silenciamento, a cumplicidade e a impunidade consituem uma espécie de marca registrada. Ninguém viu, ninguém ouviu, ninguém sabe de coisa alguma. Aconteceu e pronto! A única urgência é fechar a ocorrência e encerrar o caso” (2001, p. 8). Ora, o horror vivido dentro dos hospitais psiquiátricos retorna às vezes como um efeito anatomofisiológico (afinal, a violência física deixa marcas visíveis e, às vezes, permanentes) outras ainda como rejeição social crônica, porquanto, depois da internação, os buscadores têm muitas dificuldades para se reintegrarem à cadeia produtiva.
E mesmo nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), o despreparo da equipe para operar o manejo dos usuários que chegam aflitos, em estado de sofrimento ético-político (o que significa dizer, vitimizados pelos efeitos da internação psiquiátrica e pela rejeição social), hiperboliza o quadro de desajuste social. Ante a angústia de quem não consegue encontrar suporte social para continuar a buscar a si mesmo, os profissionais muitas vezes recorrem a práticas censuradas por inúmeras portarias moralizadoras do Ministério da Saúde e efetivamente expungidas pelos princípios que orientam o acolhimento num CAPS. Tomam-se medidas de contenção, aciona-se a polícia e, nos casos de lesão corporal, em vez de encaminharem o usuário a um hospital geral, fazem-no retornar a um hospital psiquiátrico. Parte da responsabilidade por essa situação é dos gestores de saúde nos municípios, que não investem na qualificação dos profissionais e, por vezes, mantêm o serviço sem a presença de psicólogos. Mas qual deveria ser, então, a intervenção?
Nos surtos psicóticos, a melhor intervenção é aquela que tenta amarrar a produção de busca às possibilidades oferecidas pelo ambiente social. Tal pode ser feito por meio de um processo de AT (acompanhamento terapêutico). A função de um acompanhante terapêutico é restabelecer a função de ego que, no surto, está perdida. A intervenção consiste num trabalho de inclusão do ajustamento falido (desqualificado socialmente). É de fundamental importância se salientar que o que se trata de incluir é o ajustamento falido, o qual não coincide com nossa expectativa social a respeito do que seria melhor ao nosso consulente. Muitas estratégias de inclusão (oficinas terapêuticas, programas de re-inserção social no campo do trabalho...) são antes modos de alienação dos consulentes nos interesses do estado e da comunidade. Inclui-se uma personalidade, mas exclui-se uma função de ego (um ajustamento). Por isso, não podemos confundir a assistência ao aflito com a aplicação de um programa de metas (seja ele definido pela comunidade, pelo estado, por nossa categoria profissional ou por nossa abordagem). Mesmo ante as reações violentas, os profissionais devem saber identificar qual é o elemento que encarna a organização paranóica que o usuário está tentando elaborar. E o manejo consiste em simbolizar, para o usuário, que ele está em segurança. Para tanto, é fundamental que o psicólogo possa estar acompanhando o histórico das produções buscadoras do usuário. O que significa dizer que, tal histórico é tão ou mais importante que as metas de integração social estipuladas pelo programa.

O sofrimento ético-político nas situações de exclusão econômica e interdição política

A exclusão de alguém (função personalidade) ou de um comportamento (ajustamento da função de ego) diz respeito ao laço social, de onde esse alguém ou esse comportamento são afastados. Tal laço pode ser compreendido desde dois pontos de vista distintos e complementares. Ou se compreende o laço do ponto de vista econômico, o que significa dizer, do ponto de vista de uma determinada cadeia de produção de valor a partir da natureza. Ou se compreende o laço do ponto de vista das relações políticas a ele implícitas e que dizem respeito aos contratos por meio dos quais se formam as diferentes personalidades.
A exclusão política, na maioria das vezes, tem como fundo uma exclusão econômica. Na exclusão econômica, priva-se um sistema self da única fonte possível de riqueza, que é a natureza. Como sabemos, a natureza está quase sempre alienada, na forma de propriedade, emprego ou valor de circulação (moeda), em favor do interesse de nosso semelhante ou de nossa identidade objetiva frente ao semelhante (função personalidade). Nas situações de sofrimento ético-político, especificamente econômico, somos privados dos laços sociais em que uma natureza pudesse estar alienada (valorada) em nosso favor. Esse é o caso dos sem-teto, dos sem-terra, dos sem-chance-de-inclusão-no-mercado-de-trabalho, seja por razões étnicas, religiosas, de gênero... Ou, então, participamos de laços sociais (como o emprego) em que aquilo que seria, para nós, uma fonte de riqueza (nosso corpo ou o que ele tenha produzido), é expropriado em seu valor em favor de um terceiro (seja este o estado de direito, uma corporação econômica ou uma causa ideológica, como a defesa do meio ambiente, ou a salvaguarda da saúde das instituições financeiras...).
No caso da exclusão política, somos privados dos contratos sociais (sejam eles institucionalizados ou não) que reconheceriam nosso direito de exercer uma forma de poder (como o voto, a petição, a autodefesa...). A exclusão política geralmente tem uma motivação econômica. Quando não cumprimos a função ou desempenho esperado pela cadeia produtiva, somos privados do direito de decidir sobre ela. A exclusão acontece por diferentes formas, algumas delas politicamente institucionalizadas, como a que tira, dos buscadores surtados, a autonomia civil. A institucionalização da exclusão política, ademais, não depende da existência de instituições políticas. Ela pode ser exercida na forma de representações sociais que infligem, às personalidades indesejáveis, as mais diferentes formas de sanções.
Intervir em situações de exclusão sócio-política significa disponibilizar-se a acompanhar os excluídos em seus pedidos de socorro, de modo a ajudá-los a encontrar os meios pelos quais eles possam ser ouvidos e atendidos em seus apelos. Tal envolve: i) ajudá-los a identificar as suas necessidades (e não seus excitamentos ou desejos); ii) ajudá-los a reconhecer e constituir o “semelhante” junto a quem possam merecer atenção e resultado; iii) e ajudá-los a executar as tarefas que possam valer o resgate de um lugar social Porém, isso não significa “fazer por”. O trabalho de acompanhamento de alguém em sofrimento ético-político não caracteriza uma forma de assistência social. Trata-se, como em toda clínica gestáltica, de um “treinamento” ou “ampliação” da autonomia da função de ego. No caso dos ajustamentos ético-políticos, trata-se de favorecer a autonomia da função de ego na construção de um pedido de inclusão. Ademais, a intervenção gestáltica nunca é normativa. Ela não visa “defender” ou “criticar” uma ideologia especificamente. Trata-se de ajudar alguém a compreender e fazer sua opção econômica e política.


Referências Bibliográficas


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GRANZOTTO, M.J.M. & GRANZOTTO, R.L. 2007. Fenomenología y Terapia Gestalt. Santiago de Chile: Cuatro Vientos, 2009.

PERLS, Frederick; HEFFERLINE, Ralph; GOODMAN, Paul. 1951. Terapia Gestalt: Excitación y crecimiento de la personalidad humana. Trad. Carmen Vázquez. Madrid: AETG y CTP, 2006, v. II.

GRANZOTTO, R. L.; MÜLLER, R.L. \"Temporalité dans le champ clinique: phénoménologie du self\". Cahiers de Gestalt-therapie. Sain Romain la Virvée: l\'exprimerie - Collège Européen de Gestalt-Thérapie, n. 24 (\"Self\" en questions), 2009.

TEMPORALITE DANS LE CHAMP CLINIQUE : PHENOMENOLOGIE DU SELF

Traduccion : Sène Demba

Résumé : Ce travail consiste en une recherche sur l\\\'usage que les auteurs de l\\\'ouvrage Gestalt-thérapie (1951) ont fait de la théorie phénoménologique de l\\\'intentionnalité opérative formulée par Edmund Husserl. Selon nous, ce fut à partir d\\\'elle qu\\\'ils ont élaboré, dans les termes d\\\'une théorie du self, la présentation clinique Gestaltiste comme un flux d\\\'expériences vécues de contact entre l\\\'actuel et l\\\'inactuel pour le clinicien et son patient.

Mots-clés : Phénoménologie Intentionnalité Awareness Temporalité Système self


1.Une nouvelle manière de comprendre l\\\'expérience clinique

Dans la préface de l\\\'ouvrage Gestalt-thérapie (1951), les auteurs (Perls, Hefferline et Goodman, dorénavant dénommés par le sigle PHG) font connaître l\\\'objectif de cette entreprise écrite à la frontière entre la pratique clinique et la réflexion théorique ; et par rapport à laquelle la théorie du self correspond au dénouement : « (...) formuler la base d\\\'une psychothérapie consistante et pratique (...), au moyen de l\\\'assimilation de tout ce que nous offre de valable les sciences psychologiques de notre temps » (PHG, 1951, p.32). Mais s\\\'il en est ainsi : « pourquoi, (...) comme le titre le suggère, nous donnons la préférence au terme « Gestalt » quand nous prenons en considération également la psychanalyse freudienne et parafreudienne, la théorie reichienne de la cuirasse, la sémantique et la philosophie ? » (PHG, 1951, p.33) Et c\\\'est dans la réponse à cette question que, pour la première fois, dans le texte de la Gestalt-thérapie, apparaît le signifiant « phénoménologie » pour désigner la discipline qui rendra compréhensible la relecture que PHG ont fait de la pratique analytique en tant que nouvelle « totalité » dénommée Gestalt. Or, dans quel sens les Gestalten sont-elles des totalités ? Dans quelle mesure s\\\'appliquent-elles à l\\\'expérience clinique ? Pourquoi une telle application caractériserait-elle une phénoménologie ? Quelle relation y aurait-il entre cette phénoménologie et la théorie du self ?
Le fait que le premier emploi technique de la notion de Gestalt ait eu lieu au sein des discussions philosophiques de la fin du XIXe siècle et dont la finalité était de déterminer quelles relations il pouvait y avoir entre le « tout » et ses « parties », n\\\'est pas une nouveauté. Mais ce fut dans la tradition phénoménologique que la notion de Gestalt a commencé à désigner une totalité spécifique qui, à la différence des totalités non-phénoménologiques (qui dépendent d\\\'un agent extérieur qui les formule ou les constitue), caractérise des « corrélations spontanées » entre les parties actuelles et inactuelles co-présentes dans un même vécu. Et, peut-être, le meilleur exemple fourni par les phénoménologues pour désigner ce type de totalité est-il le vécu du temps. Considéré comme la matrice pour penser tous les autres vécus, le vécu du temps est une « corrélation spontanée » entre notre matérialité actuelle et l\\\'inactualité du passé et du futur. Bien que nous le puissions, nous n\\\'avons pas besoin de nous représenter (par le jugement) le passé et le futur qu\\\'un vécu présent mobilise. Dans certaines occasions – comme cela est décrit dans l\\\'expérience anthologique de la « madeleine trempée dans le thé » dont l\\\'arôme exhalé fait revivre au personnage de Charles Swann (Proust, 1913, p.48-51) son enfance dans le Combray factice sans qu\\\'il ait besoin de l\\\'évoquer – nous n\\\'avons pas besoin de réunir par un acte intellectuel une série de profils retenus, car ceux-ci se présentent sous la forme d\\\'une unité naturelle et primordiale. Tout se passe comme si le propre passé revenait comme une émotion vive. Dans d’autres cas, c’est le futur lui-même qui nous déloge de nos occupations présentes, de sorte que sans necessité de délibération spécifique, nous expérimentons certaines situations comme une unité historique jamais entièrement réalisée. Cette expérience est une Gestalt.
Si nous voulons être précis sur l\\\'origine de cette compréhension phénoménologique des Gestalten, nous serons conduits à l\\\'oeuvre de Franz Brentano (1874). C\\\'est en elle que, pour la première fois, est mentionné le signifiant Gestalt pour désigner la formation spontanée de cette corrélation que nous appelons vécu du temps. Mais ce fut Edmund Husserl (1900-1) qui s\\\'est chargé de penser la dynamique spécifique des Gestalten, dynamique qu\\\'il a appelé « intentionnalité opérative » et qui se distingue de l\\\' « intentionnalité de l\\\'acte » (relative à notre capacité mentale de représenter (,) sous la forme d\\\'un objet de connaissance, l\\\'unité de notre vécu opératif). Selon l\\\'historien de la phénoménologie Herbert Spiegelberg (1960), la notion d\\\'intentionnalité opérative a fait fortune sous la plume des élèves de Husserl à Göttingen (jusqu\\\'en 1907) et à Frankfort (jusqu\\\'en 1924), ayant reçu d\\\'eux les formulations les plus diverses. Certaines d\\\'entre elles ont servi de base à la consolidation de la Gestalttheorie, qui est parvenue jusqu\\\'au neurophysiologiste Kurt Goldstein (1967) par les mains d\\\' Adhémar Gelb et d\\\'autres assistants de Wolfgang Köhler et Max Wertheimer, parmi lesquels Lore Polsner, future épouse de Fritz Perls. Dans les termes d\\\'une théorie sur l\\\'auto-régulation de l\\\'organisme dans l\\\'environnement, Goldstein (1933) a incorporé l\\\'idée d\\\'une intentionnalité non mentale, laquelle fut comprise sur le modèle des plus simples formes d\\\'organisation de la nature, ce qui l\\\'a amené à parler d\\\'une « intentionnalité organismique ». Fritz Perls (1969, p.77) malgré le peu de crédit qu\\\'il accordait à Goldstein quand il l\\\'assistait à l\\\'Hôpital Général des Soldats Lésionnés à Frankfort, fut convaincu quelques années plus tard par sa femme, désormais appelée Laura Perls, des avantages de l\\\'utilisation de la notion d\\\' « intentionnalité organismique » pour désigner l\\\'inconscient des pulsions (qui, de cette manière, se distinguait de l\\\'inconscient du refoulement et de la forme causale tels que Freud les a conçus). Et pour ne pas confondre l\\\'« intentionnalité organismique » et l\\\'« intention mentale », ce qui nous conduirait à un psychologisme, Fritz Perls (1942, p.69) a mis en relief le caractère spontané de cette notion en la désignant avec une expression issue de sa familiarité avec la langue anglaise en Afrique du Sud : awareness. Raison pour laquelle, dans la préface à l\\\'ouvrage Gestalt-thérapie (1951, p.33), Fritz Perls, Laura Perls, Ralf Heferline et autres collaborateurs – maintenant associés à la rigueur philosophique et à l\\\'irrévérence que Paul Goodman a rapporté de ses études de doctorat en Allemagne et de son intense activité littéraire aux Etats-Unis – vont répondre à la question « pourquoi donnons-nous la préférence au terme Gestalt ? » Mentionnée comme la tâche que nous devons accomplir : élaborer une « phénoménologie de l\\\' awareness ». Selon nous : décrire la psychothérapie comme une Gestalt, c\\\'est établir la phénoménologie des processus intentionnels opératifs inhérents à la pratique clinique, c\\\'est comprendre les processus d\\\' awareness qui constituent la pratique clinique. Ou, selon les propres auteurs (1951, p.33) :

« il se trouve que dans ce processus nous avons dû faire passer l\\\'angle d\\\'approche de la psychiatrie du fétiche de l\\\'inconnu, de l\\\'adoration de l\\\' « inconscient » [du refoulement, selon l\\\'interprétation que nous donnons pour les guillemets utilisés par les auteurs pour le terme « inconscient »] aux problèmes et à la phénoménologie de l\\\'awareness : quels facteurs opèrent-ils dans l\\\'awareness et comment des facultés qui peuvent opérer avec succès seulement dans l\\\'état d\\\' awareness perdent-elles cette propriété ? »

Or, si la phénoménologie de l\\\' awareness est l\\\'explication de la psychothérapie en tant que Gestalt, en tant qu\\\'un tout spontané de corrélation entre le clinicien et son consultant, la théorie du self n\\\'est pas la présentation systématique de la phénoménologie de l\\\' awareness.
Ou, ce qui est la même chose, la théorie du self est la présentation temporelle (comme nous le verrons plus loin) des fonctions et des dynamiques spécifiques de ce tout spontané de corrélation qui se configure dans le champ clinique, comme une sorte d\\\'union ambiguë entre le clinicien et son consultant. Comment – dans le champ clinique – ces corrélations se forment-elles ? Pourquoi fonctionnent-elles et parfois non ? Comment en elles pouvons-nous occuper un lieu, de clinicien ou de consultant ? La théorie du self peut-elle servir de base pour répondre à ces questions ?

2 – Une phénoménologie particulière

Ainsi conçue, la théorie du self caractérise une phénoménologie très particulière. Finalement, elle a pour tâche de décrire les Gestalten au niveau de l\\\'expérience empirique. Mais elle diverge de la phénoménologie prônée par Edmund Husserl, dont l\\\'ouvrage de Paul Goodman affirme s\\\'être inspiré, selon l\\\'extrait de la lettre qu\\\'il a envoyé à Wolfgang Köhler pour s\\\'expliquer sur ses intentions programmatiques de Gestalt-terapia : « quant à la forme d\\\'exprimer ces idées, je m\\\'associe modérément aux Ideen de Husserl ou, pour la raison opposée, aux idées de Dewey » (Goodman apud Stoehr, 1994, p.103 – c\\\'est nous qui traduisons) .
Pour Husserl, la pleine compréhension d\\\'une Gestalt dépend d\\\'un travail de réduction, d\\\'un travail de passage du niveau empirique – pratiqué dans le langage quotidien et scientifique – à un niveau strictement conceptuel, chargé de penser des situations singulières, telles que celles qui caractérisent, par exemple, un vécu clinique. Ainsi, Husserl admettait que les éclaircissements fournis par une recherche conceptuelle ne feraient pas plus qu\\\'exprimer, de manière indubitable, une compréhension déjà présente dans notre insertion ingénue dans le monde des choses et de nos semblables, quelle que soit cette compréhension : que dans toutes nos expériences nous retrouvons ce pouvoir spontané de corrélation entre ce qui est donné et ce qui est inactuel : Gestalten. De toute manière, pour Husserl, cette compréhension mondaine des Gestalten n\\\'aurait pas de force pour s\\\'imposer comme une vérité. Les Gestalten dans le monde de la vie seraient seulement des intuitions ambiguës, jamais des unités clairvoyantes, véritables objets de connaissance. Ce à quoi Goodman (1951) – inspiré de la pragmatique de l\\\'américain John Dewey (1922) – répond en disant que, s\\\'agissant de l\\\'expérience clinique à propos de laquelle l\\\'ambiguïté de la relation du clinicien et du consultant est plus importante que n\\\'importe quelle vérité, les intuitions sont plus révélatrices que les pensées et les connaissances. Pour cela, pour percevoir l\\\'un l\\\'autre (ce qui ne signifie en aucune manière coincider), clinicien et consultant n\\\'ont pas besoin de pratiquer la réduction au champ de l\\\'idéalité. La phénoménologie de l\\\'expérience clinique se produit au niveau de la propre expérience. Elle est d\\\'avantage une éthique qu\\\'une science. Et les Gestalten, dans la clinique, sont d\\\'abord des manifestations d\\\'étrangeté plutôt que des objets de connaissance.
Et c\\\'est peut-être cette primauté accordée à l\\\'expérience, la principale caractéristique phénoménologique de la théorie du self. En fin de compte, indépendamment du fait que les Gestalten ne sont pas traitées sur un plan strictement conceptuel – comme le voulait Husserl- elles continuent à désigner, comme requis par un traitement phénoménologique, des corrélations spontanées qui impliquent, dans la théorie du self, le clinicien et le consultant. Comme pour les phénoménologues qui ne considèrent pas les Gestalten en tant que propriétés d’une substance étendue ou pensante mais en tant que phénomènes de terrain, corrélations spontanées des actes intersubjectifs et des inactualités publiques(appelées « essences » par Husserl et « expérience clinique » par les fondateurs de la Gestalt-thérapie), l’expérience clinique que la théorie du self doit décrire, n’est pas l’occurrence d’un esprit privé ou un fait isolé que le clinicien peut observer à distance. Elle est un phénomène de terrain, la corrélation publique entre le consultant et le clinicien (où chacun est pour l\\\'autre l\\\'inatteignable, l\\\'inactuel ou, si l\\\'on veut, une essence). D\\\'où déduit-on que – contrairement à ce qu\\\'on pourrait penser à partir de son emploi quotidien dans la langue anglaise, ou de son apparition dans le discours de la psychologie – le signifiant self ne désigne pas le psychisme individuel. Il désigne au contraire une expérience intersubjective ou, si l\\\'on préfère, une subjectivité élargie, enfin, un phénomène de champ, tout comme les ambiguïtés inhérentes aux fonctions et aux processus caractéristiques de ce champ. Self, ce n\\\'est pas le consultant ou le clinicien, mais l\\\'indivision de l\\\'expérience qui fait qu\\\'ils se distinguent, sans jamais pouvoir coïncider.

3 – Une nouvelle manière de comprendre le « transfert » clinique : contact.

Qu\\\'est-ce que l\\\'on veut dire quand – dans les termes de la théorie du self – on affirme que l\\\'expérience clinique est une Gestalt, un tout spontané de corrélation entre le clinicien et le consultant ? Que devons-nous entendre exactement par corrélation ? En elle, qui est l\\\'agent s\\\'il y a encore un sens à revendiquer un sujet ?
En vérité, la définition de la clinique comme une sorte de corrélation est une stratégie phénoménologique pour penser une autre définition que Fritz Perls a rapporté de la psychanalyse et qui a donné sa singularité à la pratique analytique, précisément, la notion de transfert (Freud, 1912a). Déjà dans Le Moi, la Faim, l’Agressivité (1942), Perls s\\\'occupait des théoriciens de la psychanalyse qui, à l\\\'époque de Freud, discutaient le sens clinique du transfert et du contre-transfert. Il faut citer ici les noms de Paul Federn (1949) et de S. Ferenczi (1909), lequel préconisait l\\\'utilisation du contre-transfert comme une ressource clinique. Fritz Perls reconnaissait que la notion de transfert cherchait à éclaircir la relation de champ qui s\\\'établissait entre l\\\'analyste et l\\\'analysé mais au-delà ou en-deçà des conventions sociales que les deux partagent. Il s\\\'agit d\\\'une manière de décrire la communication de l\\\' « inconscient vers l\\\'inconscient » qui, selon Freud, (1912b, p.154) se produisait après s\\\'être établie la rectification subjective du consultant qui, dorénavant, sera appelé analysant. Impliqué dans son propre processus, l\\\'analysant se laisserait guider par ce qui se manifesterait spontanément à lui. Et ce qui se manifestait spontanément à lui, selon Freud (1914g), c\\\'était beaucoup plus que le « souvenir » d\\\'une scène. Il s\\\'agissait de la « répétition » involontaire de cette scène, de ce phantasme vis-à-vis duquel l\\\'analysant se trouvait en situation de conflit pulsionnel et du refoulement exigé par un tel conflit. Et c\\\'est sur ce point, précisément, que s\\\'opérait le transfert : de manière involontaire, l\\\'analysant répéterait, dans sa relation avec l\\\'analyste, la scène refoulée, transférant sur l\\\'analyste les respectives affections impliquées. Le travail de l\\\'analyste, sur ce point, serait de permettre que l\\\'analysant « élabore » cette répétition, de manière à donner aux affects impliqués une autre destination, une destination plus acceptable et productive du point de vue social. Et bien que ce ne soit pas dans nos objectifs de discuter la justesse de l\\\'équivalence que les freudiens d\\\'une manière générale établissent entre les notions de « répétition » et de « transfert », nous ne pouvons pas ignorer les questionnements que Lacan dans son cours sur « Les concepts fondamentaux de la psychanalyse » (1963, p.36) a adressé aux psychanalystes de l\\\'IPA (International Psychoanalysis Association), dès lors qu\\\'ils ne prenaient pas en considération la différence que faisait Freud entre pulsion et phantasme ; de sorte que, pour Lacan, ce qui se répète dans l\\\'analyse n\\\'est pas la scène, mais la pulsion, qu \\\'il appelait, à ce moment de son travail « objet petit a(autre) ». L\\\'interrogation de Lacan, dans une certaine mesure, va à l\\\'encontre des critiques que, bien avant, Fritz Perls faisait à ses collègues freudiens, qui visaient à souligner que, dans l\\\'analyse, les affects qui impliquaient l\\\'analyste et l\\\'analysant n\\\'avaient pas nécessairement de relation avec une supposée scène provenant du passé. S\\\'il est vrai que les affects viennent du passé, cela ne signifie pas qu\\\'ils rapportent du passé le contenu qui leur donne sens car, dans une analyse, le sens attribué à un affect, même quand on se réfère au passé, est toujours construit dans le présent. De sorte que, la répétition d\\\'un affect est d\\\'abord à rattacher à l\\\'actualité de la relation de l\\\'analyste et de l\\\'analysant, laquelle représente toujours une nouvelle chance pour les affects de trouver une destination dans la réalité plutôt que dans une supposition abstraite sur l\\\'occurrence d\\\'une scène traumatique. Voici donc une première raison pour Fritz Perls de renoncer à la notion de transfert.
Mais ce n\\\'est pas seulement cela. Telle qu\\\'elle était utilisée par les freudiens des années 1940, la notion de transfert laissait penser que l\\\'analyste n\\\'aurait qu\\\'à ne pas interpréter pour l\\\'analysant la scène supposée que les deux auraient à répéter. Toutefois, selon l\\\'interprétation de Fritz Perls, si la répétition s\\\'appuie sur l\\\'actualité de la relation, s\\\'offrant à elle-même une nouvelle résolution, le travail analytique ne peut pas consister à retrouver quelque chose mais à créer une nouveauté. C’est pourquoi Fritz Perls a commencé à travailler l’analyse en participant au vécu de la consultation. Il ne s\\\'agit pas ici d\\\'un contre-transfert mais d\\\'un faire ensemble. Ou bien, comme le diront plus tard Erving et Miriam Polster (1973), commentant l\\\'affirmation de Fritz Perls selon laquelle le « thérapeute est son propre instrument » :

Quand le thérapeute entre en lui-même, il ne rend pas seulement disponible au patient quelque chose qui existe déjà, mais il aide aussi à la survenue de nouvelles expériences, basées sur lui-même et sur le patient. C\\\'est-à-dire qu’il ne devient pas seulement quelqu\\\'un qui répond et qui donne un feedback mais aussi un participant artistique dans la création d\\\'une nouvelle vie. Il est plus qu\\\'un catalyseur qui reste immuable tandis que se produit la transformation chimique. Le thérapeute change ; il devient plus ouvert à une amplitude d\\\'expériences qu\\\'il peut connaître en première main, découvrant avec le patient qu\\\'est-ce que s\\\'impliquer selon les nombreux modes qui leur sont offerts.


Or, pour les raisons mentionnées plus haut, Perls a considéré que le terme \\\'transfert\\\' ne pouvait plus définir sa pratique clinique. C\\\'est alors que, à partir de la terminologie utilisée par Kurt Golstein (1933), Perls a choisi un nouveau signifiant pour désigner l\\\'expérience clinique : « contact ». La corrélation entre le consultant et le clinicien, la communication d\\\'inconscient à inconscient, n\\\'est qu\\\'un épisode de contact. En lui, d\\\'une part, se répète quelque chose d\\\'incompréhensible, qui est le passé, tel qu\\\'il revient en tant qu\\\'orientation déjà acquise et indéchiffrable (et qui se laisse percevoir seulement à travers ces effets affectifs). Et d’autre part, le contact, se donne comme la construction d\\\'un inattendu, d\\\'une nouveauté, dont on ne sait jamais clairement, du clinicien ou du consultant, qui en est l\\\'auteur. Selon la lecture phénoménologique que Paul Goodman fait de ce signifiant, \\\'contact\\\' est la propre réalisation de la corrélation entre le clinicien et le consultant.
Il s\\\'agit ici d\\\'un phénomène de terrain, d\\\'un « sujet » qui ne se réduit à aucune des parties de cette relation, ni ne coïncide avec elles. Dévier en direction de ce « sujet », c\\\'est le contact : c\\\'est ce qui fait de quelqu\\\'un un clinicien. Permettre en soi-même les effets de ce « sujet », de cette corrélation vécue sur le terrain clinique : c\\\'est ce qui rend quelqu\\\'un consultant. Mais, s\\\'il y a contact dans l\\\'expérience, si elle est réellement un système self, le clinicien et le consultant changent constamment de place.

4- Intentionnalité du contact : awareness

Bien qu\\\'ils ne considèrent pas nécessaire de traiter les Gestalten à un niveau philosophique ou idéalisé, PHG tentent de faire, à leur manière, une description phénoménologique du contact. Ils essaient d\\\'éclaircir les fonctions et les dynamiques spécifiques de l\\\'expérience de contact. Pour ce faire, ils considèrent la nécessité d\\\'opérer, en premier lieu, la suspension des catégories psychologiques (esprit, corps, ego psychophysique) qui pourraient laisser entendre que le contact se produirait sur le plan de l\\\'immanence psychique de chaque individu, par exemple, du clinicien et du consultant. Or, le contact est une expérience vécue intersubjective. Elle ne se produit ni dans ni en dehors des parties impliquées (que ce soient des individus ou non). Elle se produit à la frontière (de contact) entre ce qui est actuel et ce qui est inactuel pour ces parties impliquées. Plus précisément, le contact se produit à la frontière entre le passé et le futur de ce que nous disons et faisons. Nous supposons un épisode d\\\'interruption dans la communication du clinicien avec son consultant. Le fait que le consultant ne comprenne pas la question n\\\'est pas seulement dû à la manière maladroite avec laquelle le clinicien, d\\\'aventure, l\\\'aurait interpellé. La maladresse du clinicien, tout comme la « surdité » du consultant peuvent dénoter que, à ces corps et à ces mots, correspondent beaucoup plus qu\\\'un sens. Il peut s\\\'être présenté à eux, comme horizon des signifiants choisis par le clinicien, la possibilité de parler à nouveau sur ce qui s\\\'est passé à la séance antérieure, qu\\\'aucun des deux ne sait vraiment ce que ce fut et où cela va mener... De sorte que, dans cet exemple, le contact ne s\\\'est pas établit entre le clinicien et son consultant mais entre les actions des deux et un passé qui s\\\'est insinué dans le dialogue encore à venir. Or, le nom que Fritz Perls a donné à ce processus temporel de passage entre l\\\'actuel et l\\\'inactuel, événement quotidien dans la clinique, est awareness.
La notion de « awareness sensorimotrice » était déjà utilisée par Fritz Perls dans son livre Ego, faim et agression Le moi, la faim, l’agressivité (1942,p.69). Elle y accomplissait la tâche de réviser la métapsychologie freudienne. Tout comme la notion de contact se substituerait à la notion freudienne de transfert, la notion d\\\' awareness introduirait, au lieu d\\\'une approche économique des pulsions, une approche plus centrée sur la « dynamique pulsionnelle », ce qui épargnait à Fritz Perls d\\\'avoir à se soucier des discussions quasi métaphysiques qui entouraient le contenu spécifiques des pulsions. Se limitant à désigner une orientation temporelle, la notion de pulsion – dorénavant dénommée awareness – ne serait plus la recherche d\\\'un substitut de l\\\'expérience originale de satisfaction, ou la propre tentative (toujours vaine) de répétition de cette expérience : pulsion de vie et pulsion de mort, respectivement. La pulsion – en tant qu\\\' awareness – signifierait une « tendance » ambiguë, présente dans n\\\'importe quelle expérience que nous établissons dans le cabinet de consultation et dans notre vie dans la nature, soit en faveur de l\\\'accroissement (moment où elle équivaudrait à la pulsion de vie), soit en faveur de la conservation (moment où elle équivaudrait à la pulsion de mort).
Dans Gestalt Thérapie, PHG reprennent cette notion, maintenant comme l\\\'équivalent des processus intentionnels décrits par la phénoménologie. Que signifie dire qu’en 1951, à l\\\'occasion de l\\\'écriture de Gestalt Thérapie, ses auteurs ont traduit définitivement la psychanalyse en langage phénoménologique ? Dans une certaine mesure, dans Le moi, la faim, l’agressivité, Perls avait déjà commencé ce travail, dès lors que les notions de conservation et de croissance, empruntées à Goldstein pour substituer la pulsion de mort et la pulsion de vie, ont été pensées par lui à partir de la théorie phénoménologique de l\\\'intentionnalité. Mais maintenant, le lien entre les notions psychanalytiques et phénoménologiques est devenu explicite. Comme leurs corrélatives, PHG ont choisi les deux principaux processus intentionnels opératifs décrits par Husserl pour expliquer le vécu du passage du temps, respectivement : i) le processus de « rétention » involontaire des formes (au moyen duquel se donne la formation et la répétition des habitudes) et ii) le processus de « synthèse passive » (forme sous laquelle s\\\'établit, spontanément, le lien entre les formes retenues et les possibilités d\\\'action offertes par l\\\'expérience actuelle). Dorénavant, pulsion de mort signifie rétention et répétition d\\\'une habitude. Pulsion de vie, synthèse spontanée entre les habitudes et les nouvelles possibilités offertes par le milieu social et naturel.
Il est important de percevoir ici comment la notion d\\\'awareness – substitut gestaltiste de la notion d\\\'intentionnalité – a conservé son ambiguïté fondamentale présente aussi bien dans la manière psychanalytique de concevoir les pulsions que dans la manière phénoménologique de décrire les processus intentionnels inhérents à la formation d\\\'une Gestalt primordiale, qui est le vécu du temps. C\\\'est en ce sens qu’après 1951, la notion d\\\' awareness sensorimotrice (formulée par Fritz Perls en 1942) s\\\'est dédoublée :

- il y a, d\\\'un côté, l\\\' « awareness sensorielle » (1951, p.42) ou « primaire » (1951, p.223), qui est une dynamique de conservation (laquelle inclut l\\\'assimilation et la répétition) de ce qui surgit dans le présent en tant que passé ;
- d\\\'un autre côté, il y a l\\\' « awareness délibérée (1951, p.49) ou, comme ils l\\\'emploient plus fréquemment, la « réponse moteur » motrice ou « comportement moteur » (1951, p.42). Celle-ci répond par la dynamique de croissance (laquelle inclut la destruction de l\\\'actualité et le déplacement vers la nouveauté).

Les deux formes de présentation de l\\\' awareness traduisent les dimensions temporelles du contact : telle que l\\\'intentionnalité opérative rétentionnelle décrite par la phénoménologie, l\\\' awarenes sensorielle concernant les processus d\\\'assimilation et de répétition du passé ; processus que PHG préféreront appeler « sentir » et « excitation » : le premier comme correspondant de l\\\'assimilation et le second comme équivalent de la répétition. L\\\'awareness délibérée quant à elle, ou réponse motrice que traduit la notion de synthèse passive de la phénoménologie, est en relation avec le vécu du futur ou, selon ce que préfèrent PHG, avec la « formation et destruction de Gestalten ». Ce qui enfin, nous éclaire sur les rapports entre les signifiants de la seule définition d\\\' awareness fournie par Gestalt Thérapie (1951,p.33) et que nous transcrivons plus bas : awareness est ce qui se donne dans le contact (en tant que sa dynamique spécifique), à partir d\\\'un sentir et dans une forme d\\\'excitation (ce qui configure la dimension passée ou sensorielle d\\\' awareness) ; et au profit de la formation \\\'Gestalt\\\' (qui est la dimension future ou moteur de l\\\'awareness). Parlons un peu plus de cela.

– Awareness sensorielle

Selon ce que nous avons déjà dit, l\\\' awareness sensorielle, dimension passée du contact, se caractérise : a) par la rétention de la forme des comportements antérieurs et b) par la répétition de cette forme en tant qu\\\'habitude motrice ou verbale. Et, pour ne pas être trahis par la « culture spécialisante » de la Psychologie, nous devons nous souvenir que la notion phénoménologique de rétention n\\\'a pas de parenté avec la notion psychologique de mémoire. Celle-ci ne correspond pas à l\\\'inscription d\\\'un trait mnésique dans un système psychique ou anatomophysiologique. La rétention ne se produit pas en un lieu, ou alors, elle n\\\'a pas de place dans notre actualité. Elle concerne, fondamentalement, ce qui perce la consistance ontique de la réalité, introduisant le passé qui s\\\'est perdu (et ceci pour ce qui peut être lié à la pulsion de mort). Ce qui est retenu n\\\'est pas une entité dans le temps et dans l\\\'espace physique. Elle n\\\'appartient à personne, au clinicien ou au consultant. C\\\'est une habitude impersonnelle, la co-présence d\\\'un apprentissage que je partage avec mes semblables et qui, cependant, ne se laisse pas appréhender par lui-même, seulement par ses effets et à travers nos actions, ce qui revient à dire, toujours après, ce qui fait de lui une sorte d\\\'anticipation spontanée par rapport à nos compréhensions. Ou, alors, le retenu est le fond dans notre expérience perceptive, l\\\'horizon non localisé à partir duquel la figure rencontre sa position, ce qui nous oblige à reconnaître une fonction pour ce qui n\\\'a pas de localisation définie. A ce processus de rétention et de répétition de ce qui est devenu impersonnel et indéfini, PHG vont donner le nom, respectivement de « sentir » et d\\\' « excitation ».
Commençons à réfléchir sur la notion de sentir. En fonction de l\\\'orientation phénoménologique que nous avons choisie, quand nous parlons de sentir en tant qu\\\'une unité de sensation et de perception, les auteurs de Gestalt Thérapie ne se réfèrent pas aux processus physiologiques ou psychiques de réception et d\\\'enregistrement de stimulus, qu\\\'ils soient extéroceptifs, intéroceptifs ou proprioceptifs. Comme pour Husserl, pour PHG, sentir n\\\'est pas la faculté (sensible) d\\\'une substance, d\\\'un esprit, d\\\'un ego psychophysique, que cette substance soit le clinicien ou le consultant. Sentir est lié au fait que nous sommes traversés par une histoire impersonnelle, que Merleau-Ponty appelait corps habituel (1945, p.97). C\\\'est cette histoire qui choisit tacitement les objets, à travers lesquels on aperçoit des possibilités d\\\'émancipation ou de reprise. Ce qui revient à dire, pour PHG, que la sensibilité n\\\'est pas une faculté passive face aux stimulus matériels. Au contraire, la sensibilité est notre propre passivité face à une histoire impersonnelle (dont nous ne savons même pas si elle est la nôtre), qui choisit d\\\'elle même, dans l\\\'univers des faits matériels actuels, ceux qui ouvrent un certain horizon futur.
Evidemment, ceci ne signifie pas nier que je sois capable de faire des choix volontaires (lesquels caractérisent une intentionnalité d\\\'acte, selon la terminologie husserlienne). Je peux parfaitement « décider » de prendre la direction de gauche quand, « dans mon coeur, quelque chose me dit que, pour arriver chez le fleuriste, peut-être serait-il meilleur de prendre la direction de droite ». Cette décision n\\\'appartient pas à la sphère de la perception sensible puisque la perception sensible n\\\'a pas besoin de la caution d\\\'un jugement, du support d\\\'une décision. Une fois prise la direction de droite, que j\\\'ai décidé de prendre, les visages que je croisent ne perturbent pas mon attention, je continue concentré sur le but que je veux atteindre, ou peut-être occupé par la frustration de ne pas avoir suivi mon « coeur », jusqu\\\'à ce que, subitement, au milieu de cet océan de physionomies anonymes, j\\\'aperçoive quelqu\\\'un de familier, dont je ne sais pas encore exactement qui c\\\'est. Si on me demandait, tandis que je cherche à identifier le nom de cette physionomie : pourquoi s\\\'est-elle présentée à moi, pourquoi l\\\'ai-je vue, pourquoi n\\\'est-elle pas restée anonyme, comme les autres, je comprendrais immédiatement que quelqu\\\'un , qui ne se réduit pas aux pensées et aux images à partir desquelles je peux décider, me regardait ou, plus exactement, exerçait mon regard, au point de choisir, à partir de critères que je ne comprends pas intégralement, mais qui paraissent avoir une relation avec le passé, ce que ou qui regarder, que ou qui percevoir, enfin sentir. Ce quelqu\\\'un anonyme, aussi anonyme que ma musculature optique dans l\\\'acte de regarder, est une histoire impersonnelle, que je peux « connaître » seulement après – et son activité, vis-à-vis de laquelle je suis passif, ma sensibilité. Ce qui nous permet de comprendre l\\\'affirmation de PHG, selon lesquels : « (le) sentir détermine la nature de l\\\' awareness, qu\\\'elle soit distante (par ex., acoustique), proche (par ex. tactile) ou dans la peau (proprioceptive) » (PHG, 1951, p.33). Le sentir – qui n\\\'est pas le corps habituel, l\\\'histoire de généralité que je partage avec ma communauté – choisit qui et quoi percevoir, avec quel élément se mettre en relation, avant même que j\\\'ai le temps d\\\'y penser.
Or, s\\\'il est vrai que c\\\'est à partir de ce qui « en moi se fait sentir » que, tacitement, les choix sensibles sont faits, il est aussi vrai que le sensible, lui-même, ne se réduit pas à ce que je perçois. Au contraire, les choses devant nos yeux ont le pouvoir de nous conduire à des compositions que, même si nous le tentions, nous ne pourrions jamais parvenir à réduire, ce qu’à posteriori, nous pourrions dire de nous-mêmes. Merleau-Ponty (1945, p.372), sur ce point particulier, éclaire le paradoxe spécifique autour de la chose perçue :

On ne peut, disions-nous, concevoir de chose perçue sans quelqu\\\'un qui la perçoive. Mais encore faut-il que la chose se présente à celui-là même qui la perçoit comme chose en soi et qu\\\'elle pose le problème d\\\'un véritable en-soi-pour-nous.

Pour Merleau-Ponty (1945, p.368-369), comme mon existence a une histoire anonyme et impersonnelle, un corps habituel qui opère à son propre compte,

Il y a dans la chose une symbolique qui relie chaque qualité sensible aux autres. (...) Le déroulement des données sensibles sous notre regard ou sous nos mains est comme un langage qui s\\\'enseignerait lui-même, ou la signification serait sécrétée par la structure même des signes, et c\\\'est pourquoi l\\\'on dit à la lettre que nos sens interrogent les choses et qu\\\'elles leur répondent.

Or, selon PHG, l\\\' « excitation » spontanée – selon le terme de la définition de l\\\'awareness sensorielle – n\\\'est pas la puissance que l\\\'histoire impersonnelle – à laquelle nous sommes sujets – a pour glisser parmi les possibilités ouvertes par ce que cette propre histoire a senti avant. En d\\\'autres termes, l\\\'excitation spontanée, c\\\'est la capacité de transcendance, c\\\'est la migration d\\\'une histoire vers un domaine étranger, vers un domaine autre, qui est le domaine virtuel des possibilités ouvertes par les choses et par les corps semblables découverts par le sentir. Par conséquent, nous ne savons jamais précisément d\\\'où part l\\\'excitation spontanée, ni vers où elle se dirige. Elle n\\\'a pas de source spécifique – sa source est l\\\'anonymat d\\\'une histoire oubliée, qui est l\\\'habitude. Elle n\\\'a pas de but déterminé(e), car les buts sont liés aux directions ouvertes par les choses perçues. Elle n\\\'a pas non plus de forme spécifique d\\\'anéantissement : les excitations spontanées ne peuvent pas être anéanties, elles ne peuvent qu\\\'être réalisées, ce qui signifie : transcendées pour d\\\'autres domaines, pour les possibilités ouvertes par les prochaines choses découvertes dans le sentir. Par conséquent, les excitations spontanées sont des forces constantes. Et ces caractéristiques rappellent beaucoup celles avec lesquelles, dans Trois essais sur la sexualité, Freud (1905d) a défini la dynamique pulsionnelle. C\\\'est pourquoi, pour les auteurs, la notion d\\\'excitation spontanée « inclut la notion freudienne de catexis, (...), et nous donne la base pour une théorie simple de l\\\'anxiété » (PHG, 1951, p.33), telle que nous pouvons la lire dans les parties finales de la théorie du self qui traitent des ajustements névrotiques.


– Awareness délibéré ou réponse motrice

L\\\'awareness délibérée ou réponse motrice est en relation avec les actions – toujours individuelles, mais destinées à quelqu\\\'un ou élaborées à partir d\\\'autrui – avec lesquelles, aussi de manière spontanée, ce qui revient à dire, de manière non pensée ou représentée, nous instituons une totalité présomptive ou Gestalt. Une telle totalité n\\\'est pas le désir par lequel nous essayons de synthétiser, de manière toujours imminente, les habitudes, vis-à-vis desquelles nous sommes passifs et les possibilités que l\\\'environnement nous offre et que nous pouvons choisir (aussi bien opérativement que mentalement).
Jusqu\\\'à maintenant, la notion d\\\' awareness sensorielle nous a aidé à comprendre que le contact est un écoulement temporel, ce qui ne veut pas dire qu\\\'il s\\\'agisse de quelque chose d\\\'entièrement aléatoire. S\\\'il est vrai que, dans chacune de mes expériences, il y a une histoire qui se révèle par elle-même, il est vrai aussi qu’à chaque nouvelle opportunité, j\\\'assume cette histoire comme si c\\\'était la mienne et, à partir d\\\'elle, je cherche à m\\\'expérimenter comme une totalité, ma propre totalité. Dans le cas de la clinique, à chaque nouvelle séance, ce qui se réalise est beaucoup plus qu\\\'un passage à un nouvel ordre de signifiants ou d\\\'affects. Au moyen d\\\'actes individuels, pour lesquels je décide de manière opérative, sans nécessité de réflexion, j\\\'établis, d\\\'une séance à l\\\'autre, l\\\'expérience de montage et de démontage d\\\'une unité, qui est l\\\'unité de moi-même comme quelque chose toujours à découvrir. C\\\'est l\\\' awareness délibérée. Mon action introduit – au-delà du mystère qui s\\\'est révélé à moi-même comme awareness sensorielle – mon espoir de trouver ce qui me fait en propre. Mais cette nouvelle totalité, je ne la rencontre jamais de fait. Elle est toujours à faire, comme si ses parties restaient indéterminées. Elle continue à manquer, devenant ainsi mon désir, ce qui me fait revenir à la séance et aux autres activités où j\\\'ai la possibilité de la réaliser.
Il faut ici faire une parenthèse. Le fait que ce soit mon action qui déclenche l\\\'awareness délibérée – laquelle consiste en cette recherche de mon tout présomptif – ne signifie pas que dans toutes les actions il y ait awareness délibérée. Finalement, il y a expérience vécue de contact, de transcendance effective d\\\'une histoire passée vers le futur, où ne se donne pas cette expérience de « compréhension » de soi comme totalité, bien qu\\\'indéfinie, étrange, transcendante. Ou simplement, il y a expérience vécue de contact, où l\\\'on peut vérifier une action en cours, sans que cela implique l\\\'ouverture d\\\'un horizon de désir. C\\\'est le cas, par exemple, de nos processus physiologiques de base, comme la méiose et la mitose. De tels processus, sans aucun doute, sont investis d\\\'une historicité, mais ne sont pas à appréhender comme un tout. C\\\'est pour cela que je « dis » que je ne perçois pas, spontanément, ma propre division cellulaire, que je ne la « vois » pas se produire au fil des heures, comme je vois passer la physionomie d\\\'une de « mes » connaissances, ou les sentiments que je nourris pour elle. Pour percevoir mes divisions chromosomiques, je dois me « représenter » l\\\'unité de ce processus à travers un modèle objectif, le fameux code génétique. Ainsi, on ne peut pas dire que ces processus configurent une expérience vécue d\\\' awareness délibérée, bien qu\\\'il s\\\'agisse d\\\'un processus de contact. Selon PHG : « (le) contact, en tant que tel, est possible sans awareness, mais pour l\\\'awareness le contact est indispensable » (1951, p.33, ce sont les auteurs qui soulignent). Contrairement aux expériences vécues de contact caractéristiques de ma physiologie primaire, dans le contact de l\\\'awareness délibérée, je vis un tout présomptif possible où s\\\'annonce une personnalité objective que je ne suis pas encore, que je ne serais jamais entièrement. Je vis un tout présomptif qui n\\\'est pas le « représentant » d\\\'une « représentation future », laquelle n\\\'est pas encore établie.
Or, cette idée selon laquelle l\\\' awareness délibérée implique la constitution d\\\'un représentant de ma propre représentation future nous rappelle la manière dont la phénoménologie husserlienne (1900-1) a interprété la thèse formulée par Franz Brentano (1874) selon laquelle – en-deçà de nos actes de représentation, nous pourrions compter sur les représentants intuitifs de ce que, tardivement, ces actes auraient dû représenter. De tels représentants des représentations futures (Vorstellungen Representanz) ne seraient pas plus que des actions dont les parties ou contenus seraient indéterminées (awareness sensorielle) que, plus tard, notre jugement tenterait de déterminer. Cette unité présomptive spontanément formulée par nos actions, Brentano (1874) l\\\'a appelée « Gestalt », comme nous l\\\'avons dit. Et c\\\'est pour cela que, dans leur description de l\\\' awareness, entendue comme dynamique spécifique de contact – PHG se réfèrent à la « formation de Gestalten comme étant le troisième terme constitutif de l\\\' awareness, en particulier de l\\\' awareness délibérée. L\\\'expérience vécue de mon unité historique dans la transcendance est formation de Gestalt.
Enfin, pour dire d\\\'une manière synthétique ce que nous avons vu jusqu\\\'ici sur l\\\'awareness : d\\\'un côté, elle est la co-présence (retenue) d\\\'une histoire impersonnelle qui veut se répéter (excitation) avec les possibilités ouvertes par les donnés dans l\\\'actualité de notre expérience ; d\\\'un autre côté, elle est l\\\'unification présomptive de cette histoire au moyen d\\\'une action individuelle. La première, nous l\\\'appelons awareness sensorielle ; la seconde, awareness délibérée. Les deux désignent la double orientation temporelle du contact ; ce qui fait du contact la propre expérience vécue du temps qui, d\\\'après PHG (1951, p. 48) se formule ainsi :

Contact, c\\\'est « trouver et faire » la solution à venir :
La préoccupation est sentie par un problème actuel, et l\\\'excitation augmente vers une solution à venir, mais encore inconnue. L\\\'assimilation de la nouveauté se donne au moment actuel dans la mesure où celle-ci se transforme dans le futur. Son résultat n\\\'est jamais une simple agrégation de situations inachevées de l\\\'organisme, mais une configuration qui contient un matériel nouveau de l\\\'environnement. C\\\'est donc quelque chose de différent de ce qui pourrait être rappelé (ou conjecturé), comme l\\\'oeuvre d\\\'un artiste devient nouvelle et imprévisible pour lui à mesure qu\\\'il manipule l\\\'environnement matériel (1951,P.48)

– Le « se rendre compte » : awareness réflexive

Mais, awareness n\\\'est-ce pas le \\\'se rendre compte\\\', l\\\' \\\'avoir conscience\\\' de ce qui est senti ou fait ? Oui et non. Malgré la compréhension diffuse au sujet de l\\\' awareness comme une perception réflexive, elle est seulement un troisième aspect de la notion effectivement employée par PHG. Il y a, dans le texte de Gestalt Thérapie (1951, p.44), une référence explicite à une troisième modalité d\\\' awareness qui est l\\\' « awareness réflexive ou consciente ». Il s\\\'agit, en ce sens, d\\\'un passage qui justifie la traduction, dans certains cas, du terme \\\'awareness\\\' par « se rendre compte », « prendre conscience »,etc. En vérité, selon l\\\'orientation phénoménologique adoptée par les auteurs, nous allons rapidement être confronté à la différence existante entre : i) l\\\'intentionnalité opérative qui est liée à la manière avec laquelle se donne l\\\'expérience vécue du temps et à partir de laquelle PHG ont conçu l\\\' awareness sensorielle (relative au vécu du passé) et l\\\' awareness délibérée (relativement au vécu du futur) ; ii) et l\\\'intentionnalité réflexive (ou d\\\'acte), qui est la forme sous laquelle nous nous « représentons » tout ce que nous avons vécu opérativement. Or, l\\\' awareness réflexive est le corollaire gestaltiste de cette intentionnalité intellectuelle.
L\\\' awareness réflexive apparaît généralement dans le cabinet de consultation après une expérience de contact. Acte qui suit son occurrence, le consultant peut répondre par une élaboration théorique qui peut stabiliser l\\\'angoisse face à l\\\'inhabituel, ou inhiber ce qui promettait d\\\'être inédit. De toute manière, l\\\'important est de signaler que l\\\' awareness réflexive est toujours postérieure aux expériences opératives. Le \\\'se rendre compte\\\' ne coïncide pas avec le sentir ni avec l\\\'agir. Pour cela, dans la clinique gestaltiste, personne ne peut se rendre compte de ce qu\\\'il sent ou fait, à moins qu\\\'il ait senti ou fait avant. Et ceci explique le primat que les cliniciens gestaltistes donnent aux expériences déclencheuses de situation de contact. Ou, alors, ceci explique la primauté que les cliniciens gestaltistes donnent à l\\\'acte, au point de comprendre le langage d\\\'abord comme une action plutôt que comme une transmission de savoir.

5 – Self comme système de contact

Comme nous l\\\'avons vu, un des aspects de l\\\'awareness (entendue comme dynamique spécifique de contact) est le vécu présomptif – et jamais réalisé – de ma propre unité historique, que je peux assumer comme étant la mienne ou celle de mon consultant. A chaque expérience de contact, je m\\\'expérimente moi-même comme quelque chose qui est lancé devant comme synthèse encore à faire, coïncidence encore à atteindre, désir. Et c\\\'est de cette idée d\\\'unité présomptive que PHG déduisent la notion d\\\'une subjectivité élargie qui n\\\'est pas différente du flux de contact. « Nous nommerons « self » le système de contacts à n\\\'importe quel moment. (...) Le self est à la frontière-de-contact [organe de l\\\' awareness] en fonctionnement ; son activité est de former des figures et des fonds » (1951,p.49). Ou, selon les auteurs : « Le self est le système de contacts présents et l\\\'agent de croissance » (1951, p.178). Ou, encore :

Nous appelons self le système complexe de contacts nécessaire à l\\\'ajustement dans le champ imbriqué. Le self peut être considéré comme étant à la frontière de l\\\'organisme, mais la propre frontière n\\\'est pas isolée de l\\\'environnement ; elle entre en contact avec celui-ci ; et appartient aux deux, à l\\\'environnement et à l\\\'organisme. (1951,p.178)

Pour cela : « On ne doit pas penser le self comme une institution fixée ; il existe où il y a de fait une interaction de frontière et à chaque fois qu\\\'elle existe » (1951, p.179)
Le self, en ce sens, est toujours la production d\\\'un potentiel, qui ne peut jamais être atteint comme actualité mais qui, en même temps, s\\\'annonce dans cette actualité comme un horizon d\\\'orientation par où, finalement, la propre actualité s\\\'écoule. Il n\\\'est pas une entité, un subsistant ontique, mais l\\\'ensemble de fonctions et de dynamiques, au moyen desquelles le champ organisme/environnement, en même temps qu\\\'il se « conserve » en tant que dimension historique générique, « augmente » (en tant qu\\\'organisme) et se transforme (en tant qu\\\'environnement) conjointement aux horizons de futur qui s\\\'ouvrent (pour sa propre historicité). Ainsi envisagé, le self est une sorte de spontanéïté que nous somme nous-mêmes, toujours engagés dans une situation – qui est le champ organisme/environnement – dans lequel nous expérimentons des uniques (et, en ce sens, finis) de différentes manières : comme êtres anonymes (dans les fonctions végétatives, dans le sommeil, dans la synesthésie, l\\\'habitude, les rêves,etc.), comme individus (dans la sensorimotricité, dans les formes de conscience qui l\\\'habitent, dans la parole, etc.) et comme « réalités » objectives (dans les identifications imaginaires, dans les formations linguistiques déjà sédimentées comme acquisition culturelle, dans les institutions, dans les idéaux,etc).
Ceci revient à dire qu\\\' « on ne doit pas penser le self comme une institution fixée ; il existe partout où il y a de fait une interaction de frontière, et à chaque fois que celle-ci existe. Paraphrasant Aristote : « quand on se pince le pouce, le self existe dans le pouce douloureux » (PHG, 1951, p.179). En tant que système de contact – qui intègre toujours les fonctions perceptivo-proprioceptives, les fonctions motrices musculaires et les nécessités organiques – le self n\\\'est pas une « structure » fixe. Le self n\\\'est pas la régularité d\\\'une combinatoire pour laquelle il ne peut pas y avoir de changement. Au contraire, en tant que processus, le self est une intégration active : il est l\\\' « ajustement créatif » de l\\\'historicité du champ organisme/environnement. Il s\\\'agit d\\\'un système intentionnel (ou système-awareness) : à partir d\\\'un fond d\\\'habitudes qui surgit comme passé à orienter, affectivement, ce qui se passe se donne comme figure présente, s\\\'ouvre – au moyen de cette figure – comme un horizon de futur, un horizon de possibles destinations pour les affects apparus. En ce sens, « dans les situations de contact, le self est la force qui forme la Gestalt dans le champ ; ou mieux, le self est le processus de figure/fond dans les situations de contact » (PHG, p.180). En conséquence de ceci, PHG (1951) vont dire que le self est « la réalisation du potentiel » (1951, p.180) que je suis moi-même en tant qu\\\'historicité disponible à chaque contact, à chaque nouvel événement de frontière dans le champ organisme/environnement.
Et c\\\'est toujours dans le champ organisme/environnement que, spontanément, je m\\\'expérimente comme self, ce qui ne signifie pas que je m\\\'expérimente toujours de la même manière. Dans la respiration, je suis moi-même, bien que je me distingue mal de l\\\'atmosphère que j\\\'inspire et que j\\\'expire. Ce qui est différent de ce moi qui décide, pour quelques secondes, de suspendre sa respiration. Ou encore, de cet autre qui, ayant expérimenté l\\\'impossibilité d\\\'exister indépendamment de l\\\'air qu\\\'il respire, « se représente » comme un être dans le monde. Voici, dans ces trois formes élémentaires d\\\'expérience vécue de moi-même comme fonctionnement moyen de l\\\'expérience, la direction selon laquelle PHG décrivent les opérations basiques ou fonctions du self.

6 – Les fonctions du self

Selon ce que nous avons dit plus haut, malgré la manière particulière dont ils s\\\'approprient la phénoménologie, PHG conservent de Husserl la systématique, qui consiste en : « réduire » l\\\'analyse du système de contacts (également dénommé self), premièrement, ses structures ou fonctions essentielles et, ensuite, ses dynamiques de base (dont nous parlerons au point suivant). Comme nous le savons, chaque séance est un système self différent , une nouvelle tentative de répétition de ce qui a été conservé jusqu\\\'ici et une nouvelle recherche d\\\'autorisation de soi : du clinicien comme quelqu\\\'un de capable d\\\'accompagner l\\\'autorisation d\\\'autrui ; du consultant comme protagoniste de sa propre vie. Ainsi, à chaque session, nous pouvons reconnaître, dans les termes d\\\'une analyse phénoménologique (tâche de la psychologie phénoménologique formelle), des fonctions qui se répètent et qui ne sont pas plus que des inventions du Gestalt-thérapeute pour l\\\'aider dans la reconnaissance technique des processus intentionnels qui peuvent se produire ou non ; ce qui lui ouvre des possibilités d\\\'insertion et, en ce sens, de réalisation de son désir, du désir du clinicien : accompagner l\\\'autorisation d\\\'autrui. Et c\\\'est en ce sens que les fondateurs de la GT diront que « (le) thème d\\\'une psychologie formelle », discipline phénoménologique proposée par Husserl, mais qui, dans l\\\'esprit des fondateurs de la Gestalt-thérapie, est devenu une phénoménologie appliquée, empirique, « serait la classification, la description et l\\\'analyse exhaustives des structures possibles du self (c\\\'est le thème de la phénoménologie) » (1951, p.184).
D\\\'un point de vue clinique – ce qui revient à dire, d\\\'un point de vue qui prenne en compte la possibilité de constitution d\\\'un tout présomptif appelé « mon-autre-moi-même » - nous pouvons décrire au moins trois fonctions différentes opérant dans le processus de contact qui s\\\'établit au cours d\\\'une session. Il s\\\'agit, en vérité, d\\\'une présentation psychologique ( ça, ego et personnalité) des trois processus intentionnels (awareness sensoriel, awareness délibérée et awareness réflexive) qui composent les ajustements créatifs produits en régime de contact. Dans les termes de PHG : « en tant qu\\\'aspect du self dans un acte simple spontané, le ça, l\\\' Ego et la Personnalité sont les étapes principales de l\\\'ajustement créatif » (1951, p. 154).
Tout comme les trois dimensions du système-awareness, les trois fonctions cliniques ne sont pas trois parties du système self, ou trois étapes que je pourrais observer en une succession chronologique. Au contraire, les trois fonctions sont seulement trois points de vue différents que je peux avoir d\\\'une même expérience, qui est le système self en fonctionnement – dans notre cas : une session thérapeutique. Ceci signifie que, dans chaque expérience vécue (c\\\'est-à-dire dans laquelle il y a un flux d\\\' awareness), j\\\'ai les trois fonctions de manière concomitante. Le choix de l\\\'une ou de l\\\'autre est un choix théorique fait par celui qui décrit l\\\'expérience. Si, dans la session, le consultant dit : « c\\\'est moi qui respire en ce moment », il s\\\'agit là d\\\'un ajustement créatif qui formalise, simultanément : i) une personnalité, une réplique verbale d\\\'un « contenu objectif » (marqué par le pronom « je »), lequel représente l\\\'unité d\\\'une expérience qui a précédé la phrase en question et avec laquelle le consultant s\\\'identifie ; ii) une fonction de l\\\'ego, qui est l\\\'action même de dire, laquelle n\\\'est possible que si le consultant reprend, au moyen de son appareil phonique et de ses possibilités d\\\'articulation moteur, une forme langagière acquise dans le passé ; iii) et une fonction ça, qui est la propre forme langagière, qui n\\\'est pas encore un contenu objectif avec lequel le consultant peut s\\\'identifier (fonction personnalité). La forme langagière est seulement l\\\'indice impersonnel du lien mondain du consultant avec le clinicien et avec les locuteurs de la langue en portugais et qui, au moment de la session, tente de répéter, impulsant la fonction de l\\\'ego à créer une nouvelle manière de dire au moyen des possibilités ouvertes par l\\\'actualité physique de la situation. Au-delà de cette forme langagière, il y a d\\\'autres habitudes motrices dont le locuteur ne s\\\'aperçoit pas, qu\\\'il répète et qui, en ce sens, se manifestent aussi à lui comme une fonction ça, répertoire de conduites amples et indéterminées qui se font « sentir » conjointement aux actions individuelles (fonction de l\\\'ego) comme orientation intentionnelle ou « excitation ».
Ce n\\\'est pas notre objectif de disserter sur les trois fonctions décrites par PHG. Nous l\\\'avons déjà fait dans un autre travail (Müller-Granzotto & Müller-Granzotto, 2007, p. 211-220). Notre désir de les mentionner est lié à la tâche que nous nous proposons dès maintenant qui est d\\\'éclairer comment se donne cette dynamique de réalisation d\\\'un potentiel qu’est le système self.

7 – Self et temporalité.

Tout comme ils l\\\'ont fait par rapport à l\\\'expérience de contact prise individuellement, PHG ont compris la nécessité d\\\'une élucidation temporelle de la dynamique spécifique du système complexe de contacts, qu’est le self. De cette manière, les auteurs non seulement ont respecté la rigueur analytique exigée par la phénoménologie, qui va toujours du phénomène considéré topologiquement vers son mode de manifestation temporelle, mais ont aussi amplifié, pour le domaine du système self, ce qu\\\'ils avaient déjà reconnu pour le micro-univers de chaque expérience de contact, précisément : que le vécu de corrélation – dont le self n\\\'est qu\\\'une lecture possible – se caractérise par un flux par lequel nous visons une unification toujours présomptive et, pour cela, passagère de notre vie de généralité. Si, précédemment, pour éclaircir la dynamique spécifique de ce vécu qui se substitue à la notion psychanalytique de transfert – quelque soit ce vécu, le contact – les auteurs ont proposé une « phénoménologie de l\\\' awareness », maintenant, pour comprendre l\\\'enchaînement des sessions ou, ce qui est la même chose, le flux de l\\\'expérience vécue de contact, il leur faudra proposer une « phénoménologie du self ». C\\\'est pourquoi nous reprenons les notions de « sentir » et d\\\'excitation » (relatives à l\\\' awareness sensorielle) et celles de « formation » et de « destruction » de Gestalt (relatives à l\\\'awareness délibérée) – lesquelles correspondent aux micro-dynamiques de chaque expérience de contact – attribuant à ces notions une caractéristique encore plus formelle qui leur permet de décrire l\\\'intégration des deux formes opératives d\\\'awareness ; ce qui revient à décrire le passage d\\\'une expérience vécue de contact à une autre ou encore, le système self « en fonctionnement ». Comme succédané des notions de sentir, d\\\'excitation, de formation et de destruction de Gestalt, ils ont introduit les termes : post-contact, pré-contact, contactant et contact final. Or, qu\\\'est-ce que ces termes désignent-ils exactement ? En quel sens caractérisent-ils la dynamique temporelle spécifique du self en tant que système de contact ?
Dès les premières pages de la troisième partie du second volume du livre Gestalt Therapie, ses auteurs rendent explicite le caractère éminemment phénoménologique de la description dynamique qu\\\'ils se proposent de faire du self. Il s\\\'agit de comprendre le self comme la « réalisation du potentiel », ce qui signifie :

le présent est un passage du passé en direction du futur, et ces temps sont les étapes d\\\'un acte du self à mesure qu\\\' il rentre en contact avec la réalité (il est probable que l\\\'expérience métaphysique du temps soit d\\\'abord une lecture du fonctionnement du self) (PHG, 1951, p. 180-1)

L\\\'affirmation laconique, mais cruciale, qui reconnaît dans l\\\' « expérience métaphysique du temps » le « sens profond du fonctionnement du self », ne laisse pas de doutes sur l\\\'orientation phénoménologique des descriptions que ces auteurs prétendent faire. Finalement, l\\\'expérience métaphysique du temps est justement le thème dont s\\\'occupe Husserl dans ses Leçons sur la phénoménologie de la conscience intime du temps (1893) ; ce thème réapparaît articulé à la notion de réduction transcendantale dans Idées (1913) qui, cette fois, a servi de base à Goodman pour proposer la rédaction définitive de la théorie du self, selon ce qu\\\'il a admis lui-même dans une lettre à Köhler (selon STOEHR, 1994, p.103).
Dans sa tentative pour expliquer de quelle manière nous vivons, avant de représenter l\\\'unité de notre insertion opérative dans le monde de la vie, Husserl propose un diagramme, dans lequel il symbolise les deux dynamiques fondamentales qui constituent notre expérience mondaine la plus fondamentale, c\\\'est-à-dire le vécu intime du temps. Selon ce diagramme, à chaque fois que nous sommes affectés par une impression, par exemple, une note de musique, si cette expérience a été capable de donner, à mes expériences vécues passées, l\\\'occasion d\\\'une reprise, elle ne disparaît pas aussitôt que j\\\'entends une autre note. La première note reste « retenue » comme horizon durable pour de nouvelles perceptions, ce qui ne veut pas dire qu\\\'elle reste inaltérée. A chaque nouvelle expérience, celle qui est restée retenue subit une petite modification. Ainsi, l\\\'attente de reprise reste comme fond disponible. Raison pour laquelle, la valeur de chaque nouvelle note écoutée ne se limite pas aux propriétés matérielles que cette même note est capable de mobiliser mais inclut un fond d\\\'expériences passées, pour lesquelles la note actuelle ouvrira des perspectives, des possibilités de reprise. Et, autour de chaque expérience matérielle, se forme un « champ de présence » temporel (Husserl, 1893, p. 141) où le passé et le futur ne sont pas absents, mais apparaissent comme horizon virtuel. La formation de ce champ, Husserl l\\\'appelle « synthèse passive » de mes propres expériences (Husserl, 1893, p. 107). Il s\\\'agit d\\\'une synthèse passive, qui ne requiert donc pas de travail de représentation (de jugement) de ma propre unité ou de l\\\'unité des choses et des personnes qui m\\\'entourent.
De la même manière, cette synthèse ne reste pas éternellement. Rapidement une nouvelle donnée surgit qui demande la participation de mes horizons passé et futur, elle disparaît au profit de la configuration de l\\\'autre, ce qui configure une nouvelle forme de synthèse qu\\\' Husserl appelle « synthèse de transition » (Husserl, 1924, p.256-7). Cette synthèse qui assure à ma propre histoire une auto-apparition fluide, donc, à chaque nouvelle apparition, c\\\'est la même histoire qui recommence, mais avec une configuration différente. Avec les mots d\\\'Husserl (1893, p. 107-108), il s\\\'agit d\\\'une synthèse :

pré-phénoménale, pré-immanente, elle se constitue intentionnellement, comme forme de la conscience constituante du temps, et en soi-même. Le flux de conscience immanente constitutive du temps n\\\'est pas seulement, mais il est d\\\'une manière si notable, et pourtant compréhensible, qu\\\'en lui se donne nécessairement une auto-apparition du flux, à partir duquel le propre flux doit pouvoir être capté dans son écoulement.

Le diagramme qui suit, que nous adaptons (Müller-Granzotto & Müller-Granzotto, 2007, p.226) à partir de la lecture que Merleau-Ponty (1945, p.477) a fait des représentations graphiques élaborées par Husserl lui même (1893, p. 177), montre l\\\'orientation temporelle déclenchée à partir et autour de chaque donnée matérielle survenue dans la « série des maintenant » (A,B,C,D...). Pour Husserl, les évènements de cette série ne sont pas connectés entre eux, il n\\\'y a pas entre eux de relation de complicité ou de cause à effet. Chacun, par conséquent, se lie aux autres de manière oblique, au moyen des rétentions de passé ou des att

Estilo gestáltico de intervenção clínica nos ajustamentos neuróticos

Gestaltic style of clinical intervention in neurotic adjustment

MÜLLER, M.J.M.; GRANZOTTO, R.L. “Estilo gestáltico de intervenção clínica nos ajustamentos neuróticos”. IGT NA REDE. Vol 4, nº 7 Artigo 6. www.igt.psc.br/ojs/viewarticle.php?id=148&layout=html


Resumo: Consiste o presente artigo numa leitura sobre o estilo de intervenção que se deixa reconhecer na prática clínica da Gestalt-terapia, tal como esta é caracterizada na literatura de base da abordagem, especialmente no que diz respeito aos ajustamentos neuróticos. Nosso propósito é esclarecer em que sentido a prática clínica é, para a Gestalt-terapia, uma experiência de campo e em que sentido os temas da frustração habilidosa e do suporte comparecem nos contextos em que podemos perceber a presença de um ajustamento neurótico.

Palavras-chave: Ajustamento neurótico Inibição reprimida Frustação habilidosa Experimento Experiência de campo

Abstract: The present article consists of a reading on the style of intervention acknowledged in the Gestalt-therapy clinical practice, such as it is characterized in the base approach literature, especially what concerns neurotic adjustments. Our purpose is to make clear in which sense the clinical practice is, for Gestalt-therapy, a field experience and in which sense skillful frustration and support themes are present in the context in which we can sense the presence of a neurotic adjustment.

Key-words: Neurotic adjustment Repressed inhibition Skillful frustration, Experiment Field experience



1 - INTRODUÇÃO

Não são poucos, mesmo entre os próprios praticantes da Gestalt-terapia, aqueles que consideram tal abordagem clínica uma coleção de técnicas úteis à prática psicoterapêutica concebida, entrementes, a partir de um outro referencial teórico, dado que a Gestalt-terapia estaria desprovida de um. E não se trata aqui de fazer a refutação desse equívoco – uma vez que não se pode argumentar contra aquilo que não faz sentido . Trata-se, antes, de mostrar o quanto os recursos clínicos adotados pelos gestalt-terapeutas - que levam em conta o sentido ético dessa prática clínica e, portanto, o primado daquilo que nela gera uma deriva, precisamente, o “outro” - estão articulados com as reflexões que, já na fundação da abordagem, se faziam presentes: a teoria do self, a teoria da inibição reprimida, a teoria da neurose como perda das funções de ego para a fisiologia secundária, as quais, dentre outras, são tão somente leituras possíveis daquilo que se estabelece espontaneamente na sessão terapêutica. Ademais, é preciso acrescentar não haver, na história da Gestalt-terapia, qualquer sorte de recomendação sobre quais técnicas usar ou evitar. Afinal, sendo a vivência clínica uma experiência de campo em que se constitui um sistema-self e sendo a espontaneidade a principal propriedade desse sistema, é de se supor que as formas de “pontuação do como” estabelecidas pelos clínicos sejam fundamentalmente intervenções criativas e exclusivas a cada ajustamento vivido. Ainda assim, podemos encontrar no livro de fundação da abordagem uma reflexão sobre o sentido ético de algumas formas de ajustamento e de intervenção estabelecidos em regime clínico – e que podem pautar aquelas inventadas por nós mesmos a cada nova sessão.


2 – CONTATO INICIAL E CONFIGURAÇÃO DO CAMPO CLÍNICO

A chegada dos consulentes é uma ocorrência de extrema relevância para o clínico. Afinal, já nesse “contato inicial” o clínico pode perceber - em função do lugar que é ou não convidado a ocupar - a presença das funções de self ou o comprometimento de alguma delas.
Evidentemente, essas funções e respectivos comprometimentos não são ocorrências “visíveis”. O que se mostra de modo visível são alguns cerimoniais, alguns comportamentos socialmente sancionados, especialmente pela “cultura” psicoterapêutica, como por exemplo: as posturas sedutoras (“ouvi dizer que o doutor é...” ou “não acredito em psicoterapia...”), as posturas desafiadoras (“o que o doutor sabe sobre isso?”), posturas exibicionistas (“já fiz seis anos de análise...” ou “tenho algo horrível para lhe dizer...”), as auto-vitimizações (“não sei se posso pagar o valor de sua sessão...”) dentre outros infinitos expedientes, os quais sempre carregam, como sua dimensão invisível, um “apelo” a nossa participação. Ou, então, somos surpreendidos pela total ausência de apelos, como se o consulente não tivesse consulta a fazer, como se não tivéssemos nada a lhe oferecer. Nossa presença para ele é tão contingente quanto à do quadro artístico pendurado na parede. Ou, ainda, deparamo-nos com consulentes, sobretudo usuários da rede pública ou dos serviços substitutivos de saúde, os quais, não obstante tentarem apelar por nossa intervenção, comportam-se como se não soubessem fazê-lo, como se lhes faltassem aqueles expedientes socialmente sancionados.
De toda sorte, essas formas “visíveis” de apresentação geram um “efeito invisível” em nós mesmos (como clínicos). Somos convocados a ocupar um lugar em um “campo” pelo qual não deliberamos. E quanto mais cedo nos deixamos conduzir a esse lugar, mais rapidamente vislumbramos, como a um “outro” com quem, ainda assim, não podemos coincidir: i) tentativas criativas de aniquilação ou disfarce de excitamentos ansiogênicos, ii) tentativas de preenchimento ou articulação de excitamentos que não são sentidos como se fossem próprios, iii) buscas desesperadas por dados que não estão disponíveis. Quanto mais cedo nos deixamos conduzir a esses lugares para os quais estamos sendo convocados, mais rapidamente percebemos o tipo de ajustamento que os consulentes estão tentando estabelecer e, por conseqüência, qual função do self em cada qual está comprometida. Por outras palavras: a percepção das funções comprometidas, dos ajustamentos estabelecidos, da satisfação possível alcançada por cada consulente, tudo isso passa pela capacidade que nós terapeutas devemos ter de nos deixar descentrar. Ou, ainda, a percepção desses “invisíveis” tem relação, para nós clínicos, com nossa passividade ao campo.
No caso dos consulentes em quem testemunhamos buscas desesperadas por dados que não estão disponíveis, se os dados realmente não estiverem disponíveis (por exemplo, um pouco de alimento que pudesse ser oferecido a um desempregado subnutrido, em crise de hipoglicemia, encaminhado ao psicólogo de um posto de saúde), a função de ego neles não poderá ser desenvolvida. Conseqüentemente, o contato não poderá acontecer e nada poderá ser assimilado, nem mesmo uma identidade objetiva, base constitutiva da função personalidade. É provável que estejamos diante de um ajustamento aflitivo. Não é nosso objetivo, por ora, dissertar sobre os ajustamentos aflitivos e sobre as formas de intervenção gestáltica nesses casos. Mas desde já alertamos para a importância dessa clínica e a urgência em desenvolvê-la junto à nossa comunidade.
Se pudermos, entretanto, observar junto aos consulentes uma função de ego desempenhando uma ação qualquer, é preciso atentar para qual lugar essa ação nos reserva (enquanto terapeutas). Ou essa ação acontece à revelia de nossa presença no campo; o que não significa que, em alguns momentos, não possamos ser convocados a atuar como “figurantes”, meros colaboradores dos reais protagonistas da ação, precisamente: as funções de ego que estejam fazendo um ajustamento psicótico (como no caso daqueles consulentes que tentam preencher ou articular excitamentos que eles próprios não demonstram sentir como seus). Ou, então, essa ação nos implica diretamente como agentes “co-adjuvantes”, como se a função de ego nesse campo dependesse de nossa participação efetiva – caso em que, provavelmente estaremos envolvidos em um ajustamento neurótico. Esse é o caso daqueles consulentes que, para aplacar a ansiedade decorrente de um excitamento que eles próprios estejam a inibir de maneira habitual, “apelam” por nossa intervenção direta, “apelam” para que assumamos uma determinada função em favor da aniquilação da ansiedade por eles sentida: “modelos” a quem eles possam imitar na esperança de preencherem o vazio ansiogênico que os afeta; “mestres” que os ensinem a suportar uma ansiedade que não pode ser mais ignorada; “réus” em quem reconheçam a causa da ansiedade que os atinge; “cuidadores” de quem esperam um linimento que, enfim, abrande a ansiedade que os torna vítimas; “admiradores” em quem encontram confirmação para continuar adiando a realização do excitamento ansiogênico.
No caso dos ajustamentos neuróticos, os únicos que nos interessam por ora, os apelos dirigidos ao clínico estão freqüentemente relacionados às diversas formas de interrupção da expansão da ansiedade pelas etapas do processo de contato. O apelo é ele mesmo a ação da inibição reprimida, que assim tenta pulverizar a ansiedade decorrente das ameaças de deflagração do excitamento inibido desencadeadas pela situação clínica. Ou, então, o apelo é a própria realização social da inibição reprimida em regime clínico. Não se trata, ao menos nas primeiras sessões, de um ataque ao clínico, mas de uma tentativa de inclusão deste.
O clínico é requisitado a participar dos ajustamentos neuróticos desempenhados pelo consulente. Ele é convidado a ajudar o consulente no trabalho de produção de um sintoma, o qual mais não é que a própria interrupção do excitamento ansiogênico nas diversas etapas do processo de contato.
Quando o consulente dirige ao clínico o apelo “seja meu mestre” é à presença da ansiedade no momento do “pré-contato” que se trata de aplacar. Caso exercesse a função de mestre, o clínico estaria corroborando um ajustamento introjetivo. Quando dirige ao clínico o apelo “seja meu réu” é à presença da ansiedade no momento do “contatando” que o consulente tenta dissipar. O clínico que assumisse essa função estaria ratificando um ajustamento projetivo.
Também o apelo “seja meu cuidador” diz respeito ao momento do “contatando”. Mas, agora, o clínico é convocado a validar a retroflexão que o consulente imputa a si mesmo, também com o propósito de aniquilar a ansiedade.
No caso de o apelo ao clínico ser “seja meu fã”, o consulente está tentando implicar o clínico em um ajustamento egotista. Caso validasse às múltiplas formas de controle que o consulente tenta exercer sobre sua própria vida, o clínico pouparia o consulente de ter de enfrentar a ansiedade implicada no “contato final”.
O apelo “seja meu modelo”, a sua vez, é uma tentativa do consulente de empenhar o clínico no trabalho de dissolução da ansiedade advinda do fato de não haver, para o próprio consulente, um excitamento disponível; haja vista a inibição reprimida ter interrompido a assimilação do excitamento no momento do “pós-contato”. O consulente tenta preencher esse vazio incorporando algo que ele solicita do próprio clínico. Caso fornecesse esse modelo, o clínico estaria ratificando um ajustamento confluente.
Mas, uma vez atingido pelo apelo que se configura no campo, uma vez descentrado no ajustamento que é para ele algo inopinado, o gestalt-terapeuta começa a perceber um modo de funcionamento nas mais das vezes ignorado pelo consulente. Se esse descentramento se produzir mais de uma vez, o gestalt-terapeuta terá então atingido, mais além do “assunto”, da “queixa”, enfim, das “personalidades” promulgadas pelo consulente, a vigência de uma ansiedade, de um excitamento inibido, o qual se presume associado a uma forma específica de inibição. O gestalt-terapeuta terá atingido a vigência de algo “outro”. Trata-se de algo “outro” não apenas para o clínico, mas, também, para o próprio consulente. Razão pela qual, não cabe ao clínico gestáltico identificar o excitamento inibido, ou a origem da inibição apresentada, tampouco exigir que o consulente o faça. Ao clínico gestáltico somente interessa pontuar, no curso da própria sessão, o momento exato em que esse “estranho” esteja se repetindo, o momento preciso em que ele torne a se produzir. Tal pontuação concorrerá para uma eventual implicação do consulente em seu próprio ajustamento. O campo clínico estará configurado. Uma figura “estranha”, “outra”, estará sinalizada. O que dará início à clínica gestáltica, ao trabalho não do clínico, mas do consulente.

3 – O CONTRATO CLÍNICO

A pontuação estabelecida pelo clínico relativamente ao momento em que ele mesmo é surpreendido pela repetição de um inesperado, no aqui/agora da sessão, é a pedra fundamental de todo e qualquer processo de intervenção gestáltica nos ajustamentos neuróticos. Essa pontuação pode acontecer em qualquer momento da primeira sessão, ou depois de transcorridas muitas sessões. O importante é que o clínico se deixe afetar por tal inesperado, no momento em que ele estiver se repetindo, porquanto ele é o “objeto” específico a partir do qual poderá propor, ao consulente, um contrato terapêutico.
No caso da clínica dos ajustamentos neuróticos, não interessa ao clínico dar conta dos assuntos ou problemas formulados pelo consulente em termos de queixa; ainda que, no início, antes do estabelecimento do contrato, o consulente possa esperar soluções para os problemas corriqueiros que esteja a formular. Mas, tão logo o consulente estabeleça na sessão um ajustamento de evitação ou de criação em que ele próprio se surpreenda, o clínico tem a ocasião ética de esclarecer, enfim, qual é o “objeto” da clínica gestáltica dos ajustamentos neuróticos, precisamente: a pontuação das “formas” (gestalten) de evitação, ou de criação, nas quais, por obra do próprio consulente, o clínico foi envolvido. Evidentemente, o clínico vai se servir dos próprios elementos discursivos e comportamentais fornecidos pelo consulente para pontuar a eventual manifestação de uma forma de evitação. Ainda assim, deixará claro que a questão clínica pela qual o consulente pagará não diz respeito às representações objetivas produzidas por este; diz respeito sim à manifestação de algo espontâneo, surpreendente, que foge ao controle das representações deliberadas estabelecidas seja pelo clínico seja pelo consulente.
Mais do que isso, o clínico esforçar-se-á para mostrar que tais formas não existem em um lugar prévio ou iminente, como se fossem conteúdos a serem descobertos ou buscados. Ao contrário, ao clínico cabe esclarecer que o objeto da terapia gestáltica (apareça ele como um ajustamento neurótico, como uma formação reativa ou como uma retomada da criatividade) é uma ocorrência atual, imanente ao aqui/agora da sessão, o que não significa que não inclua vivências passadas e expectativas futuras. Afinal, o aqui/agora é para o clínico um campo de presença; e os horizontes de futuro e de passado são desse campo dimensões co-participantes. Rigorosamente falando, o aqui/agora é a maneira pela qual se dá o “contato” entre nossos horizontes de passado e futuro. É a própria realização desse contato, que não é senão uma síntese de passagem apoiada em um dado material atual. A sessão terapêutica é esse dado, uma oportunidade para o consulente se apropriar do modo como ele vive essa passagem entre um passado imutável e novas possibilidades futuras. E o objeto da experiência clínica, a própria vivência atual da inibição ou da realização daquela passagem, daquele fluxo de contato temporal na atualidade da sessão.
A noção de aqui/agora como campo de presença fundamenta, ademais, uma leitura gestáltica do que seja o tempo da sessão. Do ponto de vista da experiência de contato, o tempo da sessão não diz respeito ao relógio, ao cronômetro, mas à configuração de uma síntese de passagem, por cujo meio se revele uma “gestalt”; seja esta uma forma habitual de inibição dos próprios excitamentos, uma formação reativa desencadeada pela inibição reprimida ou uma criação inédita a partir de um fundo de angústia.
O tempo de uma sessão é, portanto, o tempo de revelação de uma “gestalt” em que há manifestação de uma inibição reprimida, ou a superação dela. Tal pode levar segundos, como pode não acontecer por meses a fio. Isso não significa que o clínico tenha de abandonar o relógio. A forma de trabalho de Perls (1973, p. 106), nesse particular, ajuda-nos a elaborar uma compreensão sobre a forma de utilização do tempo cronológico em benefício da manifestação do tempo do contato (tempo vivido). Em seus trabalhos de demonstração (workshops) – os quais mais não eram que “terapias individuais em contextos de grupo”, Perls (1973, p. 105) não cronometrava os atendimentos. Quando muito, atinha-se a um limite máximo, que variava de grupo para grupo e também em função do número de participantes em cada grupo. Mas, tão logo uma forma de ajustamento evitativo fosse flagrada e dela o participante se apercebesse, ou um ajustamento criador fosse estabelecido para a surpresa do próprio consulente, o atendimento era encerrado. Às vezes isso levava minutos ou menos do que isso. Razão pela qual, é freqüente os clínicos contratarem, com seus consulentes, sessões que tenham um teto cronológico máximo, o qual pode ser muito variado. Mas o estabelecimento desse teto não implica que ele deva ser cumprido. Implica apenas que, a cada sessão, clínico e consulente disponham de até ‘X’ minutos para pontuarem o surgimento de um inesperado, a configuração de um ajustamento evitativo, de uma formação reativa ou de uma criação a partir de um estado de angústia. Qualquer um dos dois pode fazer essa pontuação. E quando ela estiver estabelecida, é hora de fechar a sessão, mesmo que o teto cronológico não tenha sido atingido. A continuidade da sessão não agregaria mais do que um falatório irrelevante, não raro devotado a solapar as conquistas da sessão até aquele momento.
Essa forma de entender o tempo da sessão também tem efeito sobre os temas da assiduidade e do atraso. Resguardado o acordo que possibilite, ao consulente e ao clínico, um tempo confortável de antecedência para cancelamento das sessões, as faltas não comunicadas constituem sessões realizadas, pelas quais o consulente irá pagar. Afinal, enquanto uma alta não for solicitada (pelo consulente) ou comunicada (pelo clínico), os “horários” de sessão contratados continuam surtindo efeito no clínico. E é dever ético do clínico “devolver” ao consulente esses efeitos para que este os elabore, sobretudo, por meio do pagamento.
O mesmo vale para os atrasos, que devem ser religiosamente descontados do tempo contratado para cada sessão. Em rigor, um consulente nunca está atrasado para a sessão. Ele simplesmente “deliberou” usar o tempo da sessão de outra forma; o que, ainda assim, surte um efeito no clínico, ainda assim o faz aguardar... A recíproca, entrementes, não é verdadeira. O retardo do clínico deve ser ressarcido, uma vez que, durante o período em que estava atrasado, o clínico não se ocupava do consulente. Portanto, não é ético que o clínico considere os atrasos que ele próprio provocou terapêuticos. A decisão de como ocupar o tempo da sessão é prerrogativa exclusiva do consulente – a menos que, antes do fim da sessão, o clínico possa pontuar, no consulente, a manifestação de um ajustamento de evitação, o qual, vale lembrar, é o objeto da terapia, o “fim” da sessão (na dupla acepção do termo fim: término e finalidade).
Da mesma forma, o intervalo entre as sessões, assim como o tempo do tratamento não são itens que possam ser, do ponto de vista do tempo vivido, acordados previamente. A necessidade das sessões, assim como a compreensão do momento da alta - da conquista da autonomia em relação ao clínico - são fenômenos de campo, sobre os quais o consulente deve deliberar. Exceção para o período de férias ou para a eventualidade de o clínico não se sentir mais disponível para acompanhar o consulente. Afora esses casos, cabe ao consulente, portanto, aumentar ou espaçar a distância entre as sessões ou decidir pelo fim do processo terapêutico.
Outro aspecto de suma importância e que diz respeito ao contrato terapêutico é o valor que o consulente vai pagar por cada sessão. Se o objeto da sessão terapêutica é a manifestação de uma inibição reprimida (via ajustamento neurótico ou formação reativa), ou o retorno da função de ego ao comando do processo de contato; e se esses acontecimentos têm antes relação com a configuração de um campo no qual o consulente é o principal protagonista; o pagamento não deve ser relacionado, exclusivamente e em primeiro lugar, com os honorários do profissional, mas com a importância que o consulente dá a seu próprio sintoma, ou ao seu próprio ajustamento criador. Por outras palavras, o pagamento não deve valorar o clínico, mas o quanto de importância o consulente dá a isso que ele ignorava de si, mas que na sessão veio à tona, precisamente: que ele é acometido de uma fisiologia secundária que interfere em sua regulação organísmica e social, mas, ainda assim, é capaz de ultrapassá-la. Por conseguinte, é muito importante que: no fechamento do contrato, o clínico vincule o objeto da experiência clínica - precisamente, as formas de evitação que o consulente imputa a si ou a revelação de uma capacidade criativa que o próprio consulente ignorava em si - e o valor que essas formas possam assumir na vida oficial desse mesmo consulente.
Tal vinculação vem ao encontro de algo que, tão logo o “objeto” do tratamento tenha sido pontuado e contratado, o consulente passa a admitir de si mesmo, a saber: que é ele próprio quem estabelece tal “objeto”, que é ele mesmo quem interrompe seus próprios excitamentos, ou que os elabora criativamente. Tal significa dizer que, o consulente “sabe” que o que vai ser tratado na experiência clínica tem relação consigo – e não com o clínico. É isso, ademais, o que torna o tratamento algo interessante para o consulente. É isso que gera vínculo. Se ignorasse esse “saber”, o clínico estaria correndo o risco de ambicionar maior importância que aquela que o consulente dá a si próprio.
Isso posto, abre-se para nós a possibilidade de comentar algo sobre o famoso “vínculo” terapêutico. Em rigor, este não é mais que o encantamento do consulente por suas próprias gestalten, por seus próprios modos de interrupção do processo de contato e, mais ainda, por suas próprias repetições disponíveis e inibidas, que são os excitamentos que constituem a função id. Engana-se aquele que pensa que o retorno do consulente à sessão tem relação com um suposto saber atribuído ao clínico. O consulente “sabe” que o clinicamente interessante, pelo qual ele vai pagar, vem dele mesmo, embora freqüentemente formule o contrário, numa tentativa de manipulação neurótica. Nesse sentido, o consulente não faz vínculo com o clínico. Ele faz vínculo consigo, com isso que é outro para si. Acontece que esse outro só pode surgir numa relação de campo, onde as defesas do consulente contra isso que ele mesmo deseja sejam desafiadas. É aí que entra o clínico.
Evidentemente, para que o consulente possa se apropriar dos próprios ajustamentos neuróticos, ou de sua capacidade de recriação, ele necessita contar com a disponibilidade do clínico, necessita contar com a capacidade do clínico para se deixar arrebatar, descentrar. O clínico, em algum sentido, precisa abrir mão de suas próprias teorias, curiosidades, vaidades, enfim, personalidades, em proveito das formulações criativas e autônomas desempenhadas pelo consulente. E é por esse desprendimento que o clínico “cobra”.
Do ponto de vista do clínico, o valor da sessão em verdade paga o quanto o profissional “deixa” o consulente trabalhar. Gestalt-terapeutas que têm dificuldade para valorar e cobrar seu próprio trabalho (seja para mais ou para menos) não apenas depreciam ou supervalorizam seu ofício. Eles também conspiram contra a orientação ética do tratamento. Afinal, se o pagamento remunera o “quanto de autonomia” os clínicos asseguram aos seus consulentes, a falta de cobrança ou a cobrança a menor (ou, em alguns casos, a maior) demarcam a resistência desses clínicos em favorecer a “alforria” de seus acompanhados. Ou, ainda, a falta de cobrança ou a cobrança freqüentemente a menor demarcam o apego dos clínicos ao lugar de poder a que foram conduzidos pelo “apelo” dos consulentes. Nesse sentido, é preciso ressaltar que os clínicos não são representantes oficiais dos consulentes, não são prestadores de serviço, não foram investidos no lugar de gestalt-terapeutas pela força dos contratos civis, dos preceitos morais ou dos códigos de defesa do consumidor. Por conseguinte, não podem cobrar por isso, não podem cobrar em nome dos contratos estabelecidos no campo da função personalidade.
É fato que os gestalt-terapeutas dão recibos, declaram seus rendimentos ao fisco, prestam informações não-sigilosas para sua categoria profissional ou para as autoridades civis de sua comunidade. Entretanto, essas delegações não são ofícios do clínico, mas de um profissional, de uma personalidade à qual o clínico se identifica, e com a qual precisa se identificar para poder atuar numa determinada comunidade objetiva. Mas não é algo com que o clínico deva operar quando efetivamente se ocupa do consulente. Dar recibos, preencher formulários, prontuários e etc. não é prática clínica. É exercício de uma personalidade, de uma função personalidade, a qual não é objeto da visada ética da clínica gestáltica dos ajustamentos neuróticos. A ética dessa clínica diz respeito ao que se mostra como “estranho”, como “outro”, diz respeito àquilo que está fora do alcance do clínico. Conseqüentemente, o clínico não tem nada a fazer por esse estranho, tampouco a cobrar. Ele só pode cobrar por sua diligência em não atender aos apelos desse estranho, depois de tê-los ouvido e não obstante continuar a ouvi-los.
Da mesma forma, o consulente não é um “cliente”, que paga por um serviço. Menos ainda um “paciente”, assujeitado a um saber médico, psicológico, jurídico, filosófico... O consulente é quem consulta, consulta a si mesmo em um campo onde o interlocutor, assim denominado “clínico”, permite àquele aperceber-se, tomar posse de seu próprio fluxo de awareness, ou do modo como o interrompe. Até que ele saia da condição de consulente e seja para si mesmo um clínico, um desviante ou, para introduzirmos um neologismo: um ‘clinicante’.


4 – DIAGNOSE E INTERVENÇÃO CLÍNICA: UMA EXPERIÊNCIA DE CAMPO

Para Perls, Hefferline e Goodman, “(a) diagnose e a terapia são o mesmo processo” (1951, p. 250). Afinal, se é a partir do lugar que somos (ou não) convidados a ocupar no “apelo” do consulente que identificamos ajustamentos aflitivos, psicóticos ou neuróticos, porquanto ocupar (ou não) aquele lugar é um ato “clínico” (um descentrar-se ante o que faz derivar), toda identificação diagnóstica implica intervenção terapêutica. Mas no que exatamente intervimos? Quais lugares, precisamente, passamos (ou não) a ocupar?
Do fato de distinguirmos entre três gêneros fundamentais de ajustamento disfuncional não se segue que acreditemos que eles sejam estruturas totalmente incomunicáveis. É verdade que cada ajustamento descreve o comprometimento de uma determinada função do self. Mas, assim como as funções são sempre funções num só campo, denominado sistema self, os comprometimentos estão a sua vez articulados entre si, de modo a constituírem um sistema único. O que significa dizer ser possível observarmos, num mesmo consulente, em momentos diferentes de uma mesma sessão, os três tipos de ajustamentos disfuncionais de que se ocupa a Gestalt-terapia. Um consulente pode, numa mesma sessão: chegar aflito (carente de um dado); fazer uma formação reativa tão logo esse dado lhe seja oferecido (haja vista o fato de esse dado ameaçar uma inibição reprimida); e, depois da intervenção do clínico, responder de modo delirante aos excitamentos desarticulados que ele mesmo carrega em seu fundo e que porventura tivessem sido despertados por aquela intervenção. Ainda assim, os três ajustamentos serão diferentes entre si e, por conseguinte, requererão intervenções diferentes. Por outras palavras, eles são comprometimentos de funções diferentes, o que implica lugares diferentes a serem ocupados pelo clínico para efeito de intervenção e diagnose (entendidos como um só ato).
Conforme já anunciado, no presente capítulo, nós estamos dissertando sobre os ajustamentos neuróticos, exclusivamente. Estamos investigando os diferentes modos pelos quais, nas diversas etapas do processo de contato, a inibição reprimida interrompe o avanço do excitamento, estabelecendo laços sociais, cujo propósito é dispersar a ansiedade decorrente daquela interrupção. Do ponto de vista clínico, cada um desses laços constitui uma forma de apelo ao clínico: “seja meu modelo” (confluência), “seja meu mestre” (introjeção), “seja meu réu” (projeção), “seja meu cuidador” (retroflexão), “seja meu fã” (egotismo)... E nunca é demais lembrar que, assim como os três gêneros de ajustamento acima mencionados (aflição, psicose e neurose) constituem um só sistema, os vários tipos de “apelos” - que correspondem às diferentes formas de interrupção que caracterizam o ajustamento neurótico - constituem também eles um comportamento único. Segundo Perls, Hefferline e Goodman, a “tipologia” em que se apresentam os vários momentos de ação da inibição reprimida (com o propósito de interromper o avanço do excitamento inibido nas várias etapas do processo de contato) “não é uma tipologia de pessoas neuróticas” (1951, p. 259). Ou, ainda, “o esquema”: por cujo meio se descrevem as interrupções na progressão do excitamento inibido seja no pós-contato (confluência), no pré-contato (introjeção), no contatando (projeção e retroflexão) ou no contato final (egotismo): tal esquema “não é uma classificação de pessoas neuróticas, mas um método único de decifrar a estrutura de um comportamento neurótico único” (PHG, 1951, p. 259).
De um ponto de vista clínico, essa “decifração” da estrutura de um comportamento único não se presta a determinar características, ou a explicar os motivos (conteúdos) implicados em cada etapa de um ajustamento neurótico. Ao contrário, trata-se apenas de uma descrição do modo de funcionamento da inibição reprimida na fronteira de contato. Ou, então, trata-se da descrição dos tipos de “laço social” produzidos pela inibição reprimida nas sessões terapêuticas; e por cujo meio ela própria demandaria ao clínico uma colaboração no trabalho de aniquilação da ansiedade decorrente da pressão exercida por um excitamento que, a sua vez, deveria permanecer inibido, mas que acabou sendo mobilizado por algum dado na fronteira de contato.
O propósito dessa descrição é orientar o clínico sobre “como” ele está sendo requisitado e sobre o que ele poderia “esperar” caso se deixasse arrebatar por tal requisição. Afinal, se o ajustamento neurótico é um comportamento único, os vários tipos de laço social produzidos pela inibição reprimida na sessão estão articulados entre si. Essa orientação, obviamente, não tem em vista capacitar o clínico para que, dessa forma, ele possa corresponder aos apelos estabelecidos pela inibição reprimida no interior de cada ajustamento. Trata-se, ao contrário, de oferecer ao clínico um panorama amplo sobre os possíveis modos de conexão dos ajustamentos entre si, o qual favoreça o trabalho de “frustração habilidosa” de cada qual.

5 – “FRUSTRAÇÃO HABILIDOSA” COMO ESTILO DE INTERVENÇÃO

A intervenção clínica nos ajustamentos neuróticos visa estabelecer uma relação de campo, uma situação de contato em que possam figurar: por um lado, a inibição reprimida (que está a atuar nos ajustamentos neuróticos) e, por outro, a angústia característica da presença de algo que se repete como função id. No presente tópico, vamos discutir a ação do clínico no que tange ao surgimento da inibição reprimida. Tal ação, conforme já mencionamos, é a pontuação da forma como o consulente habitualmente interrompe seu próprio fluxo de excitamentos. Para fazer essa pontuação, também o vimos, o clínico precisa se deixar descentrar nos apelos que tais interrupções lhe dirigem. O que não quer dizer que deva ser condescendente a eles. Ao contrário, para Perls, muito especialmente, a intervenção gestáltica nos ajustamentos neuróticos é, fundamentalmente, uma tentativa de frustração habilidosa dos apelos veiculados por aqueles ajustamentos. Habilidosa em dois sentidos: i) primeiramente porque estabelecida em um contexto no qual o consulente está protegido e ii) também porque eticamente comprometida com a promoção da autonomia da função de ego no consulente – e não com a vaidade do clínico.
Para Perls (1973, p. 104), existem tantas formas de frustração habilidosa dos ajustamentos neuróticos quantos a criatividade do clínico permitir existirem. De modo geral, pode-se dizer que as frustrações habilidosas são intervenções clínicas, por cujo meio o clínico “não” atende ao apelo – que o consulente lhe dirige – para atuar como modelo, como mestre, réu, cuidador, fã... Um simples olhar, um bocejo, uma interrupção da frase, o permanecer em silêncio, às vezes, são mais que suficientes para estabelecer tal frustração. Via de regra, se o clínico está descentrado no fluxo do consulente, essas atitudes estão integradas ao ajustamento que o consulente desempenha.
Se este demanda, com seu falatório, “seja meu fã”, o clínico pode inventar múltiplas maneiras de mostrar desinteresse ou desconfiança relativamente a esse ajustamento egotista, por exemplo, solicitando: “conte-me uma situação concreta em que você viveu isso sobre o que você está especulando”.
No caso de o ajustamento ser uma retroflexão, um pedido de cuidado, o clínico pode perguntar: “o fato de você me dizer que é um fracassado modifica, em alguma medida, a possibilidade de você realmente ser um fracassado?”.
Se logo a seguir o consulente fizer um ajustamento projetivo, acusando alguém ou o próprio clínico de alguma coisa, este pode propor ao consulente que troque de lugar com o acusado (num experimento de “cadeira vazia”, por exemplo), e possa dizer o que acontece consigo nesse novo lugar.
É freqüente, depois de intervenções que debelam um ajustamento projetivo, o consulente se aperceber de sua implicação na projeção e, imediatamente, se afixar a um propósito de mudança. Nesse sentido, ele pode solicitar ao clínico que lhe diga se o que ele está pensando fazer está certo. A esse pedido introjetivo (“seja meu mestre”, meu “orientador”), o clínico pode “desorientar” dizendo: “o que lhe faz acreditar que você realmente quer mudar?”.
Isso pode levar o consulente a se deparar com suas próprias necessidades e, não as encontrando – como se presume num ajustamento confluente – de chofre devolver a pergunta ao clínico: “o que eu devo querer? Você o sabe?”. Para sair dessa condição de modelo – a quem o consulente “imita” reproduzindo o comportamento interrogativo – o clínico pode pontuar a posição corporal, o tônus muscular, o tom de voz com o qual o consulente faz a pergunta.
Talvez, então, para fugir do vazio que possa encontrar, o consulente inverta a seqüência de ajustamentos, ou comece pelo egotismo, mais uma vez. E essa dialética pode se prolongar nas sessões por meses, até que o clínico se torne mais íntimo dos ajustamentos e, por conseguinte, uma ameaça mais intensa à inibição reprimida. As possibilidades de acontecer uma formação reativa aumentam e, com ela, o risco de o consulente abandonar o tratamento ou, finalmente, entrar em contato com seus próprios excitamentos.
É importante não confundir as intervenções do clínico com “interpretações” sobre quais haveriam de ser os excitamentos que o consulente estaria a interromper. Diferentemente da postura interpretativa, a postura de confrontação não é uma tentativa de “costurar”, dar sentido, buscar o excitamento inibido ou a inibição reprimida. Isso não só pouparia o consulente de fazer operar uma função de ego, como poderia expulsá-lo da terapia. O consulente poderia se sentir invadido, ou cobrado por palavras que, em verdade, foi o clínico quem as introduziu na sessão. Ou, então, o consulente poderia se sentir desbancado em seu lugar de consulente pelo próprio clínico, o qual, em seu afã de “dar sentido”, acabaria vítima de suas próprias teses, tendo de defendê-las diante do consulente. Fatalmente, o consulente acabaria perdendo o interesse pela terapia, porquanto as discussões das sessões não versariam mais sobre palavras ou ações que fossem suas. Versariam, sim, sobre os interesses desse “consulente-gato”, no qual o clínico se transformou.
Ou, num sentido inverso, as interpretações poderiam trabalhar em favor do êxito dos ajustamentos neuróticos, o que significa: ajudá-los a pulverizar a ansiedade advinda do excitamento inibido. O consulente sairia das sessões sentindo-se “confirmado”, “cuidado”, “vingado”, “justificado” e, sobretudo, “iludido” sobre seu próprio processo. Clínico e consulente poderiam doravante estabelecer um pacto em torno do suposto êxito do tratamento, quando em verdade, o que se passa é algo bem diferente. Mesmo porque o suposto êxito do tratamento não vai além da porta do consultório; em seu cotidiano, o consulente continua acometido das mesmas dificuldades de antes. Razão pela qual, o consulente – por perceber a insignificância do processo terapêutico no contexto geral de sua vida - abandona o clínico.
Aliás, para o clínico, a ansiedade do consulente não é algo a ser aplacado, seja pela interpretação, pela sugestão, enfim, por qualquer tentativa de se “fazer pelo consulente”. A presença da ansiedade indica que um excitamento inibido está sendo requisitado na fronteira e que a inibição não está conseguindo dar conta dele. É uma ocasião para a função de ego no consulente recuperar o posto (que a inibição reprimida lhe roubara) e criar, para o excitamento até então inibido, novos núcleos significativos, o que significa integrar a ansiedade a esses novos núcleos. A interpretação – se estabelecida pelo clínico – acabaria fazendo pelo consulente aquilo que, neste, seria tarefa da função de ego. Diferentemente da interpretação e de outras formas de “cuidado”, a frustração equilibrada visa escancarar a ansiedade e, assim, disponibilizá-la para a ação criativa da função de ego no consulente.
Essas objeções à interpretação não significam que Perls, Hefferline e Goodman desaconselhassem-na de todo. Os fundadores da Gestalt-terapia reconhecem uma relativa funcionalidade para a interpretação quando – e somente quando - esta é desempenhada pelo consulente. Por um lado, a interpretação é uma maneira de o consulente “operar” com isso que a frustração habilidosa revelou, precisamente, a presença da ansiedade. Ou, por outro lado, ela é uma das formas com as quais o consulente pode “enfrentar” a própria inibição reprimida, depois que ela se manifestou em um experimento proposto pelo clínico. Um desses experimentos pode ser, por exemplo, a própria associação livre – desde que esta “não” seja entendida como a metabase de onde o analista retiraria o material para as interpretações. É preciso aqui apresentar as reservas de Perls, Hefferline e Goodman sobre a função da associação livre nas sessões terapêuticas.

“A genialidade da psicanálise foi mostrar que essas associações livres não se sucediam de fato meramente por essa lei de associação por partes; mais exatamente, elas tinham uma tendência a se organizar em todos ou conjuntos significativos, e a prosseguir numa determinada direção, e que esses conjuntos significativos tinham uma relação importante e significativa com o estímulo original, o detalhe do sonho, e com o problema subjacente do paciente. O paciente não estava de fato produzindo “mecanicamente” o fluxo, mas estava, embora não tivesse consciência disso, expressando determinadas tendências, retornando a certas necessidades emocionais e tentando preencher uma figura inacabada. Isto foi, naturalmente, uma prova fundamental da existência do inconsciente; o problema é se isto é útil para a psicoterapia” (PHG, 1951, p. 135).

Evidentemente, Perls, Hefferline e Goodman não utilizam à associação livre visando os mesmos fins almejados pela psicanálise. Não se trata de esperar, por meio da associação livre, que o consulente se aperceba de um desejo inconsciente. A associação livre não é para eles uma metodologia de acesso ao inconsciente. Trata-se de uma provocação que o clínico dirige ao consulente ou, trata-se de um experimento de linguagem cujo propósito é quebrar o controle rígido (egotista) com o qual o consulente costumeiramente dissimula sua ansiedade.

“Existe uma virtude mais essencial na livre associação, mais próxima do uso que a psicanálise classicamente fez dela. A razão pela qual se pede ao paciente que faça associações livres em lugar de contar sua história e responder a perguntas é naturalmente porque sua conversa costumeira é neuroticamente rígida, é uma integração falsa de sua experiência. A figura da qual tem consciência é confusa, obscura e desinteressante porque o fundo contém outras figuras reprimidas das quais ele não tem consciência, mas que distraem sua atenção, absorvem energia e impedem um desenvolvimento criativo. A livre associação rompe essa relação rígida entre figura e fundo, e permite que outras coisas venham para o primeiro plano” (PHG, 1951, p. 137).

Mas isso não significa, necessariamente, que o consulente consiga se apropriar dessas “outras coisas”, desses invisíveis, da própria presença da inibição reprimida ou do excitamento inibido. De um modo geral, quem se apercebe disso é o clínico – e, com muita freqüência, apenas o clínico.

“Note que o terapeuta está se concentrando no fluxo e criando figuras totais nele (achando-as e produzindo-as): presta atenção aos conjuntos, cronometra as associações que se prolongam e que indicam resistência, percebe o tom e a expressão facial. Desse modo torna-se consciente de algo sobre o paciente, a saber, o comportamento do paciente na inconsciência. Contudo, o objetivo da psicoterapia não é de o terapeuta ter consciência de algo a respeito do paciente, mas de o paciente ter consciência de si próprio” ( PHG, 1951, p. 135-136).

E mesmo que o clínico se ocupe de explicar “ao paciente o que ele (o T) agora sabe sobre ele (o P)” (PHG, 1951, p. 136), tal não faz mais que corroborar o pedido neurótico dirigido ao clínico: explique-me, mostre-me como eu sou interessante, e assim por diante.

“Dessa maneira, o paciente adquire, sem dúvida alguma, muitos conhecimentos interessantes a respeito de si próprio, mas é de se perguntar se ele intensifica por meio desses a awareness de si mesmo. Porque o conhecimento-sobre tem um certo caráter abstrato, não é pleno de interesse; além de, mais uma vez, estar ocorrendo no seu contexto costumeiro de introjeção da sabedoria de uma autoridade. Se pudesse vir a reconhecer o objeto do conhecimento como sendo ele mesmo, então esse tipo de conhecimento – do qual estávamos a par e não sabíamos que estávamos a par – seria íntimo e tremendamente pleno de interesse. O objetivo da terapia é fazer com que ele reconheça isso, mas este é exatamente o ponto de onde partimos em primeiro lugar” (PHG, 1951, p.136).


Contra esse estado de coisas, Perls, Hefferline e Goodman exortam os clínicos a estabelecerem um uso da livre associação em que o próprio consulente se sinta responsável por seu discurso e capaz de estabelecer – agora sim - a interpretação daquilo que neste se produziu. Por outras palavras, o uso que um clínico pode fazer da livre associação é aquele em que se solicita ao consulente que este seja “parceiro no processo de interpretar” (PHG, 1951, p. 137). Para tanto, é importante que o clínico comece, por um lado, estabelecendo algumas interpretações, que funcionem de maneira didática, encorajando o consulente a fazê-las por si. Por outro, é fundamental que o clínico frustre essas interpretações, denunciando as tentativas de controle da ansiedade que nelas se produziu. Dessa forma, o consulente tem acesso, mais do que à ansiedade, ao modo como ele mesmo tenta aniquilá-la. Ele tem acesso a um estilo, a seu próprio modo de interpretar, o que significa: ele tem acesso a seu próprio modo de construir e desconstruir a presença da ansiedade, a presença do excitamento ansiogênico. A interpretação deixa de ser a expressão do interesse epistêmico do clínico, para se tornar uma instância ética, uma forma de comprometimento do consulente com seu próprio processo terapêutico, com a maneira como ele mesmo lida com suas situações inacabadas.

“Desse ponto de vista, ele [o consulente] tem naturalmente que se tornar um parceiro no processo de interpretar. A noção aqui é de que a máxima ‘Conhece-te a ti próprio’ é uma ética humana: não é algo que nos fazem quando estamos em dificuldades, mas algo que fazemos em prol de nós como seres humanos” (1951, p. 137 – nosso grifo).

Ainda assim, essa aquisição do consulente relativamente ao seu estilo, ao seu modo de operar ou evitar a ansiedade, pode ser cooptada pela inibição reprimida.

“O perigo da técnica seria que, pondo de lado o self que é responsável, que sente interesse e toma decisões, o paciente vinculasse seu novo conhecimento estritamente à sua verbalização, matizada agradavelmente por uma atmosfera afetuosa e uma platéia paternal amiga. Então, em lugar de curar a divisão, a técnica a embaralharia mais ainda” (PHG, 1951, p.136).

Com o passar das sessões é freqüente que as interpretações que o consulente produz relativamente a seu próprio processo comecem a favorecer ajustamentos egotistas. As interpretações começam a ser usadas em favor da evitação do contato final ou da assimilação dos excitamentos ansiogênicos que estejam sendo requisitados no aqui/agora da sessão. Momento em que, mais uma vez, o clínico deve propor novas frustrações habilidosas das estratégias de defesa implementadas pela inibição reprimida, até que enfim, na sessão, ocorra uma formação reativa.
De fato, o êxito da frustração habilidosa é alcançado quando, no consulente, a inibição reprimida não consegue mais disfarçar a ansiedade, sentindo-se obrigada a atuar contra o dado que esteja a mobilizar o excitamento ansiogênico, seja esse dado ou não o próprio clínico. Por outras palavras, o êxito da frustração habilidosa se deixa saber no momento em que o clínico pode testemunhar, da parte da fisiologia secundária no consulente, uma formação reativa. A inibição já não se sustenta diante das provocações do clínico. E, antes de permitir a plena manifestação da situação inacabada, ela ataca aquilo que, na fronteira de contato, intensifica o chamado por aquela situação.
Nesse momento, o clínico não vai mais perceber, no consulente, aqueles apelos que antes caracterizavam os ajustamentos neuróticos. Ele não vai mais ser requisitado a trabalhar pelo consulente, seja como modelo, mestre, vítima, cuidador ou fã. A configuração de campo agora é diferente e tudo o que o consulente quer é se ver livre da sessão, do clínico ou das intervenções que o clínico lhe dirige. Por conta disso, se o que estiver em questão – para o clínico - for o ataque à inibição em proveito da assimilação de um excitamento inibido, o consulente poderá se tornar mais agressivo, extremamente irônico ou insubordinado às propostas do clínico. Se o que estiver em questão for a utilização do excitamento inibido em favor da abertura de um novo campo, o consulente poderá intensificar sua dessensibilização, sua desorientação, não mais entender o que se passa na sessão, fazer uma passagem ao ato. No decurso da sessão, ele pode derrubar um objeto, desfalecer, tropeçar. Ou, logo após a sessão, ou mesmo antes de chegar até ela, o consulente pode perder a condução, bater o carro, torcer o tornozelo e assim por diante. Eis a ocasião, o segundo momento da intervenção, o momento da proposição do segundo recurso fundamental da intervenção gestáltica, que é o experimento de concentração nas polaridades, nas polaridades inerentes àquilo que o consulente esteja percebendo, sentindo, fazendo, dizendo...

6 – ANGÚSTIA E EXPERIMENTO CLÍNICO

O desencadeamento de uma formação reativa no consulente é a prova de que o processo terapêutico cresce na direção do que se esperava, precisamente: a manifestação explícita da inibição reprimida, por um lado, e a liberação da função de ego, por outro. Mas, a manifestação da primeira não implica necessariamente a liberação da segunda. Mesmo o consulente se apercebendo de suas próprias formações reativas, tal percepção não assegura à função de ego o controle sobre a situação, a condução do excitamento antes inibido até o contato final. Para tal, a função de ego precisa ser “treinada”; ela precisa ser iniciada nesse desafio.
O consulente não sente mais aquela ansiedade de antes, porquanto o excitamento inibido está disponível. Em contrapartida, o consulente agora está tomado pela “angústia”, que é o efeito daquele excitamento na função de ego. Aliás, para uma função de ego ativa na fronteira de contato, a co-presença de um excitamento antes inibido (e que restava no fundo como situação inacabada) sempre implica angústia. Esta não é mais que a tensão característica do momento de criação, do momento em que a função de ego está prestes a estabelecer o contato final entre um excitamento ainda investido de tensão material (e que, portanto, não havia sido assimilado) e um dado na fronteira de contato. A tarefa do clínico, nesse momento, é pontuar, não mais a ansiedade, mas a presença desse novo “estranho”, que aparece nas “entrelinhas” da formação reativa ou depois que ela se dissipou - e antes que a inibição reprimida conseguisse se reorganizar. Trata-se desses “acontecimentos”, sempre inesperados, tal como o chiste, o ato falho, as frases impensadas, as rememorações involuntárias, os olhares incertos pelos quais o consulente “vaza” em direção ao nada, os gestos habituais por cujo meio atua como se estivesse noutra geografia, noutra cena que não aquela da sessão. Apoiado nesses acontecimentos, devidamente pontuados, o clínico propõe “experimentos clínicos”, por cujo meio o consulente possa assumir conseqüências, freqüentar possibilidades, exagerar posturas, dentre outras infinitas variáveis expressas junto àqueles acontecimentos. A intenção é que o consulente possa “derivar” pelas possibilidades que, de maneira operativa, ele mesmo anunciou, executou ou omitiu. O clínico desafia a função de ego no consulente a “escolher”, a “deliberar”, enfim, a “criar” campos de presença, até que este se aperceba de que não precisa mais da terapia para fazer isso.
Depois das formações reativas, os consulentes costumam esboçar um “pathós”, um espanto em decorrência do que acabaram de sentir, dizer ou fazer. Nesse momento, os excitamentos inibidos ficam à deriva, sem o controle da inibição reprimida, e ainda sem receberem a ação da função de ego. É um momento crítico, pois as “sonolências” do clínico – que se manifestam, sobretudo, quando este insiste em continuar a sessão mesmo não havendo mais nada a se fazer, ou quando permite ao consulente mudar de assunto para assim dissipar o mal-estar que porventura tenha se instalado na sessão – podem facilitar a reabilitação da inibição reprimida e a retomada dos ajustamentos neuróticos. Pontuar esse momento – o que sempre demanda do clínico uma extrema concentração no fluxo ou, o que é a mesma coisa, o pleno descentramento do clínico na sessão – é de fundamental importância para a mobilização da função de ego no consulente. Tal pontuação pode se dar das mais variadas formas, dependendo do estilo do clínico: este pode estabelecer o “corte” da sessão, mandando o consulente para casa antes do teto previsto para o término da consulta; ou, então, ele pode interromper o que o consulente estiver fazendo e lhe pedir para “repetir”, “prestar atenção”, enfim, se “apropriar” daquilo que esteja acontecendo consigo naquele instante, naquele consultório... Essa pontuação inaugura o estágio da “angústia”, porquanto o “pontuado” é a maneira como o próprio fundo, antes inibido, emergiu na fronteira de contato depois que a inibição reprimida saiu de cena.
O clínico nunca sabe, e jamais saberá o que é isso que está a gerar angústia no consulente. Nem mesmo este o sabe; só a sente. Trata-se de algo novo, com o qual o consulente não sabe lidar. Por um lado, ele poderia reabilitar a inibição reprimida – o que pode equivocadamente ser facilitado pelo clínico. Mas, por outro, ele pode se arriscar, pode se deixar conduzir por esse “estranho” que vem dele mesmo. “Experimento” é o nome dessa segunda alternativa, é a opção pelo risco, pela criação do inédito. Trata-se, em verdade, da recondução da função de ego ao governo do processo de contato. É muito importante aos terapeutas terem isso em conta, para não caírem no equívoco de acharem que “experimento” tem a ver com aquelas técnicas dramatúrgicas, aeróbicas, lingüísticas, dentre outras tão freqüentemente utilizadas no consultório, e que não raro acabam se tornando motivo de entretenimento ao próprio clínico. Tais técnicas podem sim ser utilizadas para mobilizar a função de ego no consulente no momento em que este esteja tomado pela angústia. Mas não é a técnica ela mesma o experimento, e, sim, a mobilização da função de ego no consulente. Esta não necessariamente precisa acontecer nas dependências do consultório, no decurso da sessão. Ela pode se dar, por exemplo, no caminho de volta do consulente para casa, dois dias depois da sessão, nos sonhos que o consulente venha a sonhar. O experimento não precisa sequer do testemunho do clínico. Por vezes, “abandonar” o consulente em sua angústia é o melhor que podemos fazer em proveito da mobilização da função de ego; o que, obviamente, não é certeza de que ele irá se dar “bem” ou “mal”, pois, o bem-estar ou o mal-estar do consulente não é objeto da intervenção clínica nos ajustamentos neuróticos.
Outras vezes, acompanhar o consulente na elaboração de um experimento - na recondução do ego ao controle da situação - é algo muito importante para o êxito da experiência clínica. Afinal, não é incomum que – depois de um grave comprometimento da função de ego – os consulentes não consigam articular, por conta própria, uma situação de contato. O clínico pode colaborar solicitando aos consulentes que utilizem outros recursos, que não os mais acessíveis, para lidar com a angústia que estejam sentindo. No caso de um sonho, do qual tenham involuntariamente se lembrado, mas que não conseguem compreender, o clínico pode lhes pedir que tentem fazê-lo por outros meios, por exemplo, dramatizando os próprios sonhos na sessão. Evidentemente, não se trata de pedir aos consulentes que descubram, por meio dessa técnica, algo que se articula no subterrâneo das suas ações. Já não estamos mais trabalhando com algo reprimido, que pudesse ser interpretado. Trata-se, ao contrário, de oportunizar a eles a ocasião de se apropriarem de algo que possam fazer sem planejar, dizer sem pensar, criar sem precisar antes arquitetar. Mesmo se o clínico se limitar a pedir que os consulentes relatem uma segunda vez o sonho lembrado, mas agora reproduzindo cada personagem na primeira pessoa do singular, o importante é que, por meio dessa técnica, eles possam assumir aquilo que o relato de cada qual instituiu. Não se trata mais de uma interpretação, mas de um exercício de emancipação de um dizer e de um agir. O que se fez e o que se disse, ambos devem poder ser assumidos tal como se manifestaram, segundo o modo como se apresentaram. O que levou os fundadores da Gestalt-terapia a falarem do experimento como uma sorte de “surrealismo”. Há nos sonhos, como em todos os experimentos, a criação de uma nova gestalt, de uma nova configuração, algo que está mais além da realidade (função personalidade), um real além da realidade, a polaridade da inibição reprimida. Nesse sentido, dizem os autores:

“Suponhamos que o paciente aceite o sonho como seu próprio sonho, lembre-se dele e possa dizer que o sonhou em lugar de dizer que um sonho veio a ele. Se ele puder agora ligar novas palavras e pensamentos a esse ato, haverá um grande enriquecimento da linguagem. O sonho fala na linguagem de imagens da infância; a vantagem não é rememorar o conteúdo infantil, mas reaprender algo do sentimento e da atitude da fala infantil, recapturar o tom de visão eidética, e vincular o verbal e o pré-verbal. Contudo, desse ponto de vista, o melhor exercício seria talvez não a livre associação a partir da imagem e o emprego de frio conhecimento à imagem, mas exatamente o contrário: uma representação literária e pictórica cuidadosa desta (surrealismo)”(PHG, 1951, p.136-137)

Ora, o processo de reabilitação da função de ego, que define o experimento, não está amparado em regras, experiências paradigmáticas ou modelos que pudessem ajudar o consulente nesse desafio. Podemos, sem dúvida, descrever o estilo adotado por Perls e seus colaboradores. Ou, então, podemos descrever os diferentes momentos de um experimento, tal como na passagem a seguir, em que os autores procuram retratar a ambivalência característica desse momento clínico, que é o momento do experimento. Nele, o excitamento inibido já se manifesta por si disponível para a função de ego. Mas esta ainda não tem autonomia suficiente para lidar com àquele; razão pela qual ela é freqüentemente atravessada pelo retorno da inibição reprimida. Um estado ansiogênico então se reconfigura, embora isso já não seja condição suficiente para a função de ego sair de cena. É inevitável que ela assuma o controle; exigindo-se do clínico que possa reconhecer esse conflito, favorecendo a criatividade no consulente.

1. O paciente como parceiro ativo no experimento, concentra-se no que está realmente sentindo, pensando, fazendo, dizendo; ele tenta entrar em contato com isso mais intimamente em termos de imagem, sentimento do corpo, resposta motora, descrição verbal, etc.
2. Como é algo que o interessa intensamente, não precisa de modo deliberado prestar atenção a isto, mas isto lhe atrai a atenção. O contexto pode ser escolhido pelo terapeuta a partir do que ele conhece do paciente e de acordo com sua concepção científica de onde está a resistência.
3. É algo de que o paciente está vagamente consciente e de que se torna mais consciente devido ao exercício.
4. Ao fazer o exercício, o paciente é encorajado a seguir sua inclinação, a imaginar e exagerar livremente, pois trata-se de um jogo seguro. Ele emprega a atitude e a atitude exagerada na sua situação concreta: sua atitude em relação a si próprio, em relação ao terapeuta, seu comportamento costumeiro (na família, no sexo, no trabalho).
5. Alternadamente, ele inibe de modo exagerado a atitude e emprega a inibição nos mesmos contextos.
6. À medida que o contato torna-se mais íntimo e o conteúdo mais completo, ele fica ansioso. Isto constitui um estado de emergência sentida, mas a emergência é segura e controlável, e os dois parceiros sabem que ela o é.
7. O objetivo é que, na emergência segura, a intenção subjacente [a situação inacabada] – uma ação, atitude, objeto atual, memória – se torne dominante e reforce a figura.
8. O paciente aceita a nova figura como sendo sua própria, sentindo que “sou eu que estou sentindo, pensando e fazendo isso” (PHG, 1951, p. 95-96).

Mesmo a inibição reprimida tendo sido debelada, no experimento, ela pode voltar gerando um estado novamente ansiogênico, embora já sem a força de antes. O desafio para o clínico é oferecer novos fundos de experiência para que o consulente (na função de ego) possa se apropriar disso que para este já é evidente, precisamente, a emergência do excitamento antes inibido. Mas essa descrição não prescreve o que o clínico ou o consulente “devem fazer”. Enquanto reabilitação da função de ego, o experimento é algo sempre inédito, uma criação inédita estabelecida pelo consulente.
Tal não implica que o experimento seja uma criação individual, solipsista. O consulente sempre pode contar com os excitamentos já assimilados, os quais restaram para ele como hábitos. Ou, ainda, ele também pode contar com as possibilidades de futuro abertas pelos dados na fronteira de contato. E, ainda que os hábitos e as possibilidades não assegurem, por si só, a realização do contato final para o excitamento antes inibido e agora disponível como angústia, é a partir deles que o agente criador pode voltar à cena, qual seja esse agente, a função de ego. O que significa que a função de ego não é uma criação a partir do nada. Ela é uma criação condicionada, feito liberdade de situação, que só pode ser exercida na mediação do mundo e dos homens, a partir do que neles é passado e em direção ao futuro. Trata-se de uma liberdade que se exerce num campo, do qual o clínico também participa. Merleau-Ponty, ao comentar a maneira como o “tratamento psicanalítico” cura – o que de forma alguma se deve às razões do analista ou aos méritos da metapsicologia psicanalítica – descreve essa liberdade como uma sorte de criação engajada, que se faz no âmbito da coexistência entre o clínico e o paciente. Nas palavras de Merleau-Ponty (1945, p. 610):

O tratamento psicanalítico não cura provocando uma tomada de consciência do passado, mas em primeiro lugar ligando o paciente ao seu médico por novas relações de existência. Não se trata de dar um assentimento científico à interpretação psicanalítica e de descobrir um sentido nocional do passado, trata-se de revivê-lo como significando isto ou aquilo, e o doente só chega a isso vendo seu passado na perspectiva de sua coexistência com o médico. O complexo não é dissolvido por uma liberdade sem instrumentos, mas antes deslocado por uma nova pulsação do tempo que tem seus apoios e seus motivos.

Entendido como reabilitação da função de ego, o experimento é uma criatividade que se constitui no campo. Ou, então, o experimento é a própria criatividade do campo – e não a manifestação exterior de um poder espiritual que habitaria o clínico ou o consulente. O experimento é a solução que o consulente – a partir do que ele pôde viver na relação terapêutica – encontrou para o excitamento antes inibido e agora ressurgido como angústia. Conforme Perls, Hefferline e Goodman (1951, p. 173-174):

(a) criatividade é inventar uma nova solução; inventá-la tanto no sentido de descobri-la quanto no de elaborá-la; contudo, essa nova maneira não poderia surgir no organismo ou no seu “inconsciente”, porque aí só há maneiras conservativas; nem poderia estar no ambiente novo como tal, porque mesmo se topássemos com ela aí, não a reconheceríamos como sendo nossa. Não obstante, o campo existente que se converte no momento seguinte é rico em novidade potencial, e o contato é a realização. A invenção é original; é o organismo que cresce, que assimila substâncias novas e se

Resumo: Este artigo investiga o modo como, nos anos 30 e 40, Frederick Perls procurou estabelecer uma releitura da prática e da metapsicologia freudiana partindo das contribuições que, por meio de Goldstein, reconheceu nas obras dos psicólogos da gestalt e do filósofo Salomon Friedlaender. Tal releitura ensejou a primeira formulação daquilo que, mais tarde, Perls viria a chamar de Gestalt-terapia.

Abstract: First essays towards a new Gestalt psychotherapy – Perls’s readings of Freud, Goldstein and Friedlaender
This article investigates the way, between 1936 and 1946, Frederick Perls tried to establish a re-reading of the practice and of the freudian meta-psychology, starting of the contributions which, by means of Goldstein, recognized in the works of Gestalt Psychologists and of the Philosopher Salomon Friedlaender. Such reading enabled the first formulation of what, later, Perls would call the Gestalt-Therapy.

MÜLLER, M.J.; GRANZOTTO, R.L. “Perls leitor de Freud, Goldstein e Friedlaender e os primeiros ensaios em direção a uma psicoterapia gestáltica”. Revista Estudos e Pesquisas em Psicologia. Ano 7, nº 1. URL: http://www.revispsi.uerj.br/v7n1/artigos/html/v7n1a05.htm

1. Introdução: as intenções programáticas de Perls nos anos 30 e 40

No Brasil, a obra Ego, Fome e Agressão (PERLS, 1942) começou a circular em língua portuguesa muito recentemente, com a ótima tradução estabelecida por Georges Boris em 2002. Outros textos, principalmente o livro de fundação da abordagem que leva o mesmo título, a saber, Gestalt-terapia (1951), já eram conhecidos pelos leitores em nosso vernáculo. O que explica a ilusão retrospectiva, compartilhada por muitos desavisados, de que a obra de 1942 é um texto de Gestalt-terapia. É o certo que nela podemos encontrar, distribuídos pelas suas três partes (Holismo e Psicanálise, Metabolismo Mental, Terapia da Concentração), os mesmos conceitos que podemos ler em obras posteriores. O elogio a Goldstein, a incorporação crítica de alguns termos advindos da Psicologia da Gestalt, algumas críticas endereçadas as duas tópicas freudianas estão já ali presentes; sem a envergadura fenomenológica da obra de 1951, mas, ainda assim, em afinidade com ela. Entretanto, nenhum formador em Gestalt-terapia consegue disfarçar o mal-estar ante a ostensiva referência de Perls a Freud, a começar pelo subtítulo do livro: “(u)ma revisão da teoria e do método de Freud”. Ou, então, ante as referências a autores acerca dos quais, nas obras a seguir, Perls se cala: J. C. Smuts e Salomon Friedlaender, especialmente. O que afinal, eles têm a ver com a Gestalt-terapia? Conforme nossa interpretação: se é difícil compreender algumas passagens da obra Ego, Fome e Agressão a partir do que seu autor veio a produzir tempos depois, pelo mínimo, a compreensão dessa obra a partir do que se apresenta nela mesma pode acrescentar algo àquilo que, nas obras a seguir, não está assim tão explicitado: o que levou Perls a conceber, mais além da psicanálise – o que também significa dizer, a partir dela – uma psicoterapia gestáltica? Quais aspectos, precisamente, põem em comunicação a obra de Freud e a de Goldstein?
Como sabemos, o contato de Frederick Perls com noções advindas da Psicologia da Gestalt deu-se muito cedo, já em 1926, bem antes da fundação da Gestalt-terapia. Naquele ano, o então psiquiatra Friedrich Salomon Perls foi admitido como assistente no Hospital Geral de Soldados Lesionados em Frankfurt, quando então passou a usufruir a parceria estabelecida entre seu superior - o neurofisiologista Kurt Goldstein - e o psicólogo da gestalt Adhémar Gelb. Este era assistente de Wölfgang Köhler e especialista na investigação de distúrbios da fala, como as afasias; nas quais Goldstein, a sua vez, também estava interessado. É verdade que, em 1926, Perls encontrava-se muito empenhado em sua formação como analista, mas, nem por isso, deixou de participar dos cursos ministrados por Gelb e seus alunos, dentre eles Lore Posner, com quem mais tarde Perls veio a se casar. Também participava dos seminários, nos quais pôde assistir às tentativas de Goldstein para importar, da Psicologia da Gestalt, categorias que ajudassem a pensar a “patologia” de um modo holístico, como uma forma especial de integração entre o organismo e o meio. O que, ainda assim, não foi motivo para Perls se empenhar em um projeto de psicoterapia gestáltica, tal como aquele concebido, anos mais tarde, juntamente com Lore Posner (então Laura Perls), Paul Goodman, Ralph Hefferline dentre outros.
Antes de 1951, as reflexões de Perls (1942) visavam outra finalidade; elas projetavam a consecução de uma profunda reforma na metapsicologia freudiana, haja vista o fato de esta permanecer presa num modelo - senão ontológico ao menos epistemológico - que desconsiderava aquilo que, na avaliação de Perls, era a principal descoberta clínica de Freud, precisamente: a inalienabilidade das pulsões entendidas como “essa orientação ambígua” que se manifesta a partir de meu passado, como minha paradoxal forma de ligação com o mundo presente; mas que a metapsicologia descrevia como se fosse o efeito conflituoso de uma ausência, da ausência de um objeto de satisfação originário, o qual não teria ligação alguma com a atualidade da situação, com a atualidade de minha existência organísmica. Por conta disso, Perls (1942, p.44) vai dizer que a psicanálise é censurável:
no tratamento dos fatos psicológicos como se eles existissem isolados do organismo; b) no uso da psicologia linear de associação como base para um sistema quadridimensional [formado por id, ego, ideal de ego e superego]; c) na negligência do fenômeno da diferenciação [acerca do qual dissertaremos logo a seguir].

A seu modo, Perls reconhecia, nos esforços de Goldstein para assimilar alguns conceitos advindos da Psicologia da Gestalt (destacadamente os conceitos de campo e a dinâmica ‘figura X fundo’), o interesse por aquilo que ele próprio, por outros meios, especialmente a partir dos cursos ministrados pelo amigo e filósofo Salomon Friedlaender na Escola Bauhaus, havia compreendido a respeito do funcionamento psíquico, a saber: que os comportamentos não são o efeito quase mecânico do passado sobre o presente, mas a “expressão” de uma dialética espontânea que, a seu modo, Friedlaender denominou de “indiferença criativa”. Perls, em algum sentido, achou que a noção de indiferença criativa poderia esclarecer o esforço de Goldstein para pensar, a partir dos conceitos gestálticos, uma sorte de intencionalidade organísmica e mundana, que faria de meu corpo e de minha participação na natureza, de minhas pulsões e de minha participação na história uma espécie de comunidade holística – o que não significa dizer ‘harmoniosa’, como bem atestam as patologias. Eis em que sentido, na obra Ego, Fome e Agressão (1942), Perls pode propor, não ainda como uma clínica gestáltica, mas uma espécie de “terceira tópica”, uma psicanálise reformada:

a) substituir um conceito psicológico por um organísmico; b) substituir a psicologia da associação pela Psicologia da Gestalt; e c) aplicar o pensamento diferencial, baseado na ‘Indiferença criativa’ de S. Friedlaender ( p. 44 ).

O presente artigo é uma tentativa de articulação entre esses referenciais aparentemente incomunicáveis e que se prestaram como base teórica para o futuro surgimento da Gestalt-terapia.


2 Da crítica à metapsicologia freudiana à “terapia da concentração” na “awareness”

Em rigor, Perls (1942) considerava que a compreensão de Freud a respeito das doenças psicogênicas estava correta. “Uma neurose faz sentido” e “(o) papel dos instintos e do inconsciente é enorme” , não obstante sua discordância sobre o significado desses termos. Ademais, Perls consentia que a neurose fosse o resultado do “conflito entre organismo e ambiente”. Mas, “Freud superestimou a causalidade, o passado e os instintos sexuais e negligenciou a importância da intencionalidade, do presente e do instinto de fome” (p. 133). Conforme Perls, Freud não conseguiu se desvencilhar do ideal de ciência segundo o qual todas as ocorrências fenomênicas exprimiriam, de forma parcial, uma objetividade remota que as causaria e que o trabalho científico haveria de resgatar.
No caso dos sintomas psicopatológicos, ocorrências lacunares da linguagem e do comportamento - para as quais não se pode determinar uma causa orgânica específica -, elas não seriam, conforme a leitura que Perls faz de Freud, mais do que o efeito de um conflito que estruturaria a personalidade desde o passado: a saber, o conflito entre as pulsões de vida e de morte. Por um lado, haveria as pulsões de vida, as quais compreenderiam: as pulsões de objeto (que são os representantes de uma experiência de satisfação e que retornariam da camada mais arcaica da personalidade, a saber, o “id”, em busca de um novo objeto de satisfação); e as pulsões de autoconservação (que são as mesmas pulsões de objeto, mas sublimadas em ideais sociais governantes desse desdobramento tardio do “id”, que é o ego). Por outro, haveria as pulsões de morte (que compreenderiam uma tendência do psiquismo para “repetir” não a experiência de satisfação, mas o objeto primitivo perdido, o que forçaria o psiquismo a ir sempre além dos objetos de prazer e dos ideais, sempre além das pulsões de vida). A sua vez, os sintomas não seriam mais que os esforços do ego para evitar, no presente, a reedição do conflito advindo da dupla orientação assumida pelo psiquismo desde o passado, ora em busca de um novo objeto (ou ideal) de satisfação, ora em busca de um objeto perdido: pulsão de vida e pulsão de morte, respectivamente. Caberia ao ego suprimir uma pulsão em proveito da outra, de modo a viabilizar, no presente, uma dentre as tendências às quais o psiquismo como um todo estaria submetido desde o passado. O que significa que, para Freud, conforme a leitura de Perls: nosso presente estaria totalmente determinado por aquilo que aconteceu no passado (a perda ou recalque de um conteúdo primitivo que deveria ser substituído ou reencontrado). Não apenas isso, o ego – essa função central de nossa inserção organísmica no meio – não teria mais o que fazer senão censurar conteúdos (alguns deles da ordem da realidade, outros da ordem do que é ideal e outros da ordem daquilo que se perdeu para sempre).
Para Perls (1942), a consideração freudiana do funcionamento psíquico confunde o que é da ordem do ato e o que é da ordem dos conteúdos. Na linguagem de Perls, Freud confunde as “mercadorias” a serem pesadas e a “balança” enquanto tal (1942, p. 161). É o certo que, em todos os processos psíquicos, se pode observar, em graus variados, uma orientação de unificação (ou incorporação de uma novidade) e outra de destruição das partes envolvidas (talvez em proveito, mas não como conseqüência daquilo que se perdeu). Tais orientações corresponderiam aos “pratos da balança”. Tal não significa que a unificação e a destruição sejam os conteúdos desses processos (as “mercadorias” que estão sendo pesadas). Menos ainda, que os conteúdos envolvidos tenham necessariamente relação com um objeto de satisfação perdido ou com um objeto que o venha substituir. Conforme Perls (1942, p. 56), na autodefesa, por exemplo, minhas dinâmicas são eminentemente destrutivas, mas a destruição não é o conteúdo da minha vivência, tampouco o conteúdo envolvido nessa experiência corresponde a uma tentativa de resgatar algo já aniquilado. O conteúdo envolvido se relaciona com a configuração de uma ameaça material ao meu equilíbrio organísmico atual (homeostase), ameaça esta à qual, portanto, procuro vencer destruindo-a. Na afeição, por sua vez, minhas dinâmicas são exclusivamente unificadoras. O conteúdo dessa unificação se refere à presença de algo ou de alguém em quem vislumbro uma possibilidade de expansão de minha própria homeostase, e não a substituição de um objeto de satisfação perdido. Já na atividade sexual, as dinâmicas de unificação admitem algo de destruidor. Tal como nas outras experiências, há um conteúdo específico, nesse caso, a presença de um corpo outro, impessoal, em que vislumbro não apenas a possibilidade de expansão daquilo que já me pertence, mas, principalmente, por meio desse corpo outro, a possibilidade de transcendência de mim em direção àquilo que para mim é outro. Mas não se trata de um outro que retorna do passado. O corpo erótico em direção ao qual eu me transcendo é atual, mesmo se imaginário. O que vem do passado são as orientações de unificação e destruição, sem as quais aquele corpo outro não teria efeito algum em minha vida. Por essa razão, Perls acredita que o que Freud chama de pulsão de vida e pulsão de morte diz respeito, apenas, às duas dinâmicas de organização de conteúdos, mas não aos conteúdos propriamente ditos, que podem ser os mais variados: sejam estes situações vividas no passado e que permanecem no presente como situações inacabadas, sejam eles situações atuais como a sede, a fome, o sono, a curiosidade, a atração ou a raiva, para citar apenas alguns.
Na avaliação de Perls, a atenção de Freud aos conteúdos arcaicos supostamente ligados a experiências de satisfação foi de grande importância para que pudesse compreender as dinâmicas de unificação e destruição. Mas daí não se segue que essas dinâmicas existam exclusivamente em função de conteúdos arcaicos. A organização (seja de unificação ou de destruição) dos conteúdos envolvidos numa experiência qualquer não é o desdobramento tardio de um conflito em torno de algo que se perdeu e que deva ser recuperado ou substituído. Se é verdade que, em algumas situações, como nas repetições compulsivas, os pacientes se ocupam de conteúdos inatuais, originados no passado e remanescentes como situações inacabadas, não são os conteúdos, eles próprios, aquilo que o pacientes estão a repetir. Em verdade, o que eles repetem é a inibição das formas pelas quais poderiam solucionar (assimilar ou ultrapassar) o conteúdo passado. Tanto é verdade que, tão logo encontrem, para aquele conteúdo, uma destinação atual, eles cessam de repetir os rituais de evitação de antes. A própria repetição, ademais, é uma forma criativa de apropriação daquilo que, antes, não se podia realizar. Nesse sentido, afirma Perls, “(r)epetir uma ação até conseguir dominá-la é a essência do desenvolvimento. (...) Uma vez terminada, o interesse desaparece até que uma nova tarefa desperte (...). Conseqüentemente, a compulsão a repetição não é nada mecânica, nada morta, mas muitíssimo viva” (1942, p. 160).
E eis por que, na obra Ego, fome e agressão, Perls (1942, p. 141) decide suspender o modelo “arqueológico” de Freud em proveito da noção de criação intencional de Goldstein, o que implica uma valorização do presente e de sua integração com nossas formas de agir adquiridas no passado. Perls não quer pensar o psiquismo “abstraindo” de nosso fluxo no tempo, de nosso passado e do nosso futuro. Segundo Perls (1942, p. 145), as orientações de unificação e destruição são a própria presença do tempo junto à materialidade de nossas vivências atuais, especialmente junto à nossa sensomotricidade. Nossa sensibilidade e nossa motricidade estão constantemente exprimindo uma orientação herdada, ora voltada para a autopreservação de um estado (unificação), ora voltada para o aprendizado de novas condutas (destruição), em que experimentamos uma “sensação de nós mesmos” sempre em mutação. Por exemplo: o desequilíbrio hídrico, a que chamamos de sede, não é precedido de um ato voluntário que verifica a descompensação vivida pelas células. Tampouco é algo que independe de nossa sensomotricidade. A constatação de que estamos sedentos, nas mais das vezes, só advém depois que “sentimos” uma aderência nos lábios e, não raramente, depois que nosso olhar ou nossa audição “encontraram” na paisagem a solução para o problema. Só a partir de então a sede passa a ser compreendida “conscientemente”. É como se o meio e nossa sensomotricidade tivessem orientado nossa percepção voluntária; é como se dispuséssemos de uma sabedoria que só se deixa saber depois que já foi exercida, como uma fortuna que nos surpreende vinda do passado. Ou, num sentido inverso, que é o sentido da destruição: o aprendizado de um novo passo em um exercício de dança de salão só acontece a partir do momento que nos “deixamos tomar” por um movimento que ainda não conhecemos, venha ele do nosso parceiro, venha tal movimento da musicalidade que emana do salão por inteiro. A aprendizagem é correlativa à desconstrução das formas de controle que voluntariamente tentávamos exercer, numerando os passos: um, dois, um, dois... E também aqui somos atravessados por uma sabedoria que nos arrebata, apenas que vinda do futuro. Em ambos os casos, estamos às voltas com uma orientação íntima e ambígua, à qual Perls denomina de “awareness sensomotora” (1942, p. 69), uma espécie de tino impessoal (eminentemente sensomotor), nascido do encontro sempre renovado e inesperado do passado, do presente e do futuro junto à materialidade da experiência atual.
A compreensão da organização (unificadora ou destruidora) dos conteúdos como uma forma de awareness permitiu a Perls repensar a noção freudiana de sintoma. Esse não seria mais a manifestação, no presente e malgrado as forças de censura do ego, de um conflito em torno de um conteúdo que, desde o passado, continuaria a se manifestar (ou como aquilo que deve ser substituído ou como aquilo que deve ser recuperado). O sintoma psicopatológico seria sim a “indicação” de uma “interrupção” na awareness. Por outras palavras, seria sim a indicação de que, no momento presente, o paciente não conseguiria destruir ou unificar, estando impedido de criar e, conseqüentemente, de fluir desde o passado em direção ao futuro. Ainda que tivesse como fundo um conteúdo que, num momento passado, por força de um agente de coerção (por exemplo, uma ameaça do meio), tivesse de ser abandonado, o impedimento vivido pelo paciente não se confundiria com a manifestação desse fundo de conteúdo. Tal impedimento seria, antes, a recriação habitual, no presente, daquele ato passado de abandono de um conteúdo. Ou, então, o impedimento seria a reedição não deliberada (e, nesse sentido, “inconsciente”, como se fosse uma “fisiologia secundária”) de um ato passado de inibição de uma necessidade organísmica. Por essa razão, o sintoma não teria relação – como para Freud – com um conteúdo (supostamente perdido) que retornaria (como motivação ou como falta), mas, sim, com a retomada criativa do ato inibitório articulado no passado. O sintoma seria da ordem dos atos, correspondendo mais com uma divisão do ego (que, segundo Perls, estaria preso a formas paulatinamente sedimentadas como hábitos inibitórios) e menos com conteúdo (muito embora Perls admitisse que a persistência de uma forma habitual de inibição estivesse a serviço de um conteúdo vivido no passado).
Inferiu-se daí que o trabalho clínico não se deveria ocupar de encontrar, para as formas habituais de inibição da awareness (as quais são, então, denominadas de sintoma), uma causa ou motivo, um “conteúdo” reprimido. Mais recomendável seria a proposição de experimentos e desafios que incrementassem a concentração do paciente na sua awareness (ou, o que é a mesma coisa, no fluir de suas experiências atuais: tivessem elas um sentido de unificação ou de destruição) de modo que fosse possível identificar no “que” e “como” tal paciente se interromperia. Diferentemente da psicanálise, que tenta suspender as formas de resistência do paciente (por exemplo, neutralizando sua sensomotricidade, fazendo-o deitar-se no divã) em proveito de conteúdos supostamente reprimidos (que, na livre associação, revelar-se-iam), Perls incentiva a sensomotricidade do paciente, fazendo-o “trabalhar” com a musculatura, assim como com a linguagem. Afinal, é somente na ação (seja ela motora ou lingüística) que as recriações inibitórias, acerca das quais o paciente não tem consciência, podem aparecer. Perls denomina essa forma de intervenção de “terapia da concentração” no continuum de awareness e em proveito da identificação desse “inconsciente” que só existe enquanto é produzido no presente, a saber, o ato inibitório.

3 Fundamentação teórica da terapia da concentração: releitura gestáltica da psicanálise clássica

Em que sentido posso reconhecer, para o meu presente, uma capacidade espontânea de recriação daquilo que advém do passado? Em que sentido um ato de inibição desempenhado no passado pode ser espontaneamente recriado no presente? Perls não pode responder essas questões a partir da metapsicologia freudiana. Não obstante os avanços que tal metapsicologia estabelecera, ela ainda refletia em termos associacionistas. Mesmo tendo assumido a noção brentaniana de “fenômeno psíquico” – a qual preferiu chamar de “pulsão” – Freud não declinou de tentar “explicá-la”, o que o levou a considerá-la efeito da associação psíquica das muitas estimulações sofridas pelas mucosas de nosso corpo físico. Todavia, a vivência daquela orientação ambígua e espontânea – que é a awareness imanente às nossas experiências materiais atuais – não se deixa dividir em partes, menos ainda ser explicada a partir de uma delas. Ela é um fenômeno global, do qual o ato inibitório, seja ele deliberado ou habitual, é uma das configurações possíveis. Dessa idéia, Perls inferiu que uma metapsicologia coerente com a vivência da awareness (ou de sua interrupção) deveria se estabelecer com formato diferenciado, por meio de outro modelo teórico. E foi novamente Goldstein quem sinalizou para Perls a fonte desse possível outro modelo, a saber, a teoria de campo da segunda geração da Psicologia da Gestalt. A partir dela, Perls poderia não apenas descrever a novidade introduzida pela noção de intencionalidade organísmica (que Perls denominava de awareness), como também poderia justificar a aplicação dessa noção ao campo da psicoterapia.
Malgrado as críticas dirigidas à psicanálise ortodoxa, Perls reconheceu que Freud foi um pouco além da psicologia de sua época. Apesar de ainda descrever o homem como um ente formado por duas esferas (uma física e outra psíquica), e movido por estímulos particulares que se deixam articular na interioridade de cada qual, Freud compreendeu a vigência de relações de campo. Por exemplo, em sua primeira tópica, ele sabia que o valor de uma livre-associação não residia nela mesma, mas na configuração de um todo que excedia a própria associação e do qual ela seria parte, a saber, o sistema inconsciente/pré-consciente. Sob esse ponto de vista, Freud rompeu com a perspectiva isolacionista, muito embora não tivesse sido capaz de reconhecer, nessa configuração, mais do que um sentido patológico. Afinal, tanto as associações quanto o sistema a que elas pertenceriam não exprimiriam mais que pulsões (entendidas enquanto representantes de um objeto de satisfação primordial) em conflito (pela substituição ou pelo restabelecimento daquele objeto).
Para Perls, se Freud tivesse prestado atenção ao caráter global de um sintoma ou de uma interpretação, ele teria podido ultrapassar a maneira compartimentada segundo a qual – em sua metapsicologia - descreveu o homem e suas relações no mundo. No lugar do associacionismo freudiano, Perls propõe – a partir da sugestão de Goldstein - a utilização da Psicologia da Gestalt. Afinal, os psicólogos da gestalt assumem integralmente essa constatação simples de nossa experiência, a saber, que os fenômenos sempre estão implicados em um contexto, sem o qual carecem de sentido próprio. Ou, conforme a formulação dos psicólogos da gestalt, as coisas adquirem significação, dependendo do campo ao qual pertencem. O interesse pela teoria de campo conduziu Perls aos trabalhos de Köhler (1938). Era ele quem se ocupava de caracterizar as “gestalten” como configurações de campo a integrar, por um lado, a existência física e, por outro, as condutas. Köhler, ademais, propunha a tese de que, em uma relação de campo, os elementos organizar-se-iam como figuras a partir de um fundo. O fundo seria aquilo que forneceria às figuras o lastro necessário para adquirirem sentido próprio. Por outras palavras, o fundo seria aquilo que ofereceria às figuras a orientação por cujo meio poderiam se destacar como manifestações singulares. Tal proposição permitiu a Perls conceber a awareness (entendida como a dupla orientação de unificação e destruição inerente à situação concreta da experiência) como uma espécie de campo em funcionamento. Para Perls, a awareness seria essa dinâmica, pela qual as vivências passadas do organismo constituir-se-iam como fundo (de orientação formal) para os dados materiais da experiência que, dessa forma, adquiririam um “valor” organísmico, um sentido ou orientação. Tanto as vivências passadas (de onde se depreenderiam as orientações de unificação e destruição), quanto os dados materiais presentes (e os possíveis valores assumidos por eles) seriam imanentes à experiência concreta, entendida como atualidade de um mesmo processo, como atualidade de um mesmo campo.
No caso de um sintoma psicopatológico, em que a awareness estaria interrompida, ela se caracterizaria por um campo no qual o organismo teria dificuldades para visar, nos múltiplos dados do meio, a uma figura, a um “valor”. O “motivo” dessa dificuldade estaria relacionado com a “co-presença” de uma vivência passada de auto-inibição, que, de uma forma sempre inédita, privaria os dados da experiência atual de um fundo de outras vivências. Não obstante se tratar de uma inibição articulada no passado, ela só sortiria efeito à medida que estivesse integrada como fundo de um dado atual. Em decorrência disso, Perls adverte que, ainda que o sintoma implique a estranha presença de um passado que impede o organismo de se conectar com os dados presentes, tal impedimento não é uma conseqüência do passado, mas da atualidade da co-presença desse passado. Nesse sentido, ainda que o ato passado e o conteúdo que esse inibe resguardem uma orientação formulada noutro lugar e noutro tempo, não é desse lugar e desse tempo que eles herdam sua não-funcionalidade atual. Essa se refere à configuração global do campo presente. Junto a esse campo, o ato inibitório e respectivo conteúdo são recriações.

4 Leitura holística da Psicologia da Gestalt

Para Perls, entretanto, a Psicologia da Gestalt – tal como a metapsicologia freudiana no tratamento do funcionamento psíquico – não resistiu à tentação de encontrar, para essa anterioridade do todo em relação às partes, uma espécie de princípio ou lei estrutural, o que grassou, no coração desta escola, uma contradição letal: afinal, que leis poderiam explicar uma configuração da qual elas próprias participariam?
Perls censura os gestaltistas pelo estilo eminentemente genético, explicativo e, especialmente, pela crença objetivista segundo a qual o monitoramento científico dos experimentos seria condição suficiente para desvelar o campo total desse mesmo experimento. Essa crença é contraditória com a percepção das “gestalten”, pois, não obstante o todo não existir sem suas partes, nenhuma parte é suficientemente capaz de substituir o todo. Deduzir uma “gestalt” de seus aspectos quantificáveis, por conseguinte, é um procedimento, no mínimo, arbitrário. Em vez disso, Perls propõe que as descrições visem não à lei estrutural das “gestalten”, mas a cada “gestalt” em particular e que, relativamente a essa “gestalt”, possam ser apurados todos os dados possíveis, independentemente da natureza quantitativa ou qualitativa. Isso implica, segundo Perls, a adoção de uma postura holística, tal como aquela assumida por Goldstein, quando de seu trabalho de descrição dos traços clínicos dos soldados acometidos de lesão cerebral. Goldstein (1934) não pesquisava características comuns a vários pacientes. Ao contrário, ele preferia as várias características intervenientes nas configurações individuais de cada um deles: cada paciente era, não apenas um campo, mas um campo singular, razão porque nenhum dado revelado era desprezado. Goldstein os inseria, todos, no panorama global das manifestações fisiológicas e comportamentais do paciente. O fundamento dessa postura metodológica, Goldstein o atribuía ao marechal de campo inglês e primeiro-ministro sul-africano J. C. Smuts. Na sua obra Holism and evolution Smuts (1926) propusera um programa de investigação denominado “holismo”. Segundo tal programa, a ciência deveria interessar-se não tanto pelas características atômicas dos fenômenos estudados, mas pela configuração global formada por elas. Tal configuração, todavia, não corresponderia ao resultado do somatório das partes envolvidas. Tratar-se-ia, antes, de uma organização autônoma que, nem por isso, seria indiferente àquelas partes. Se uma delas se alterasse, todas as demais se alteravam, até que uma nova estrutura unificada se restabelecesse. Por tal motivo, Smuts advogava em favor de uma metodologia integrativa, que não discriminasse entre aspectos mais relevantes e aspectos menos relevantes para a consecução de uma pesquisa. Todos os dados – fossem eles quantitativos ou qualitativos -, de alguma maneira, contribuiriam para a análise do sentido de totalidade que formavam. Goldstein, por sua vez, empregou esse princípio na consideração da noção gestaltista de campo. Isso significou que, mais do que as “estruturas” em função das quais se poderia explicar o funcionamento de um organismo no meio, o que verdadeiramente se deveria estudar era o “efeito das contingências no desenvolvimento daquelas estruturas”. Nesse sentido, Goldstein descobriu que: não obstante ser verdadeiro que a regressão dos soldados a comportamentos infantis não era conseqüência direta, por exemplo, de uma lesão na região occipital (ligada à percepção), o comprometimento causado pela lesão (a saber, perda da capacidade para distinguir cores) refletia-se em todos os outros comportamentos. A regressão comportamental – por exemplo, da sexualidade adulta - a formas de expressão infantil era coerente com a regressão patológica da visão do paciente.
Perls adota esse aspecto do holismo em sua leitura da noção de campo – o que não quer dizer que assumisse integralmente o holismo de Smuts. As inferências metafísicas, pelas quais Smuts transformou a noção holística de totalidade em uma teleologia a ser aplicada nas mais diversas áreas do saber, configuravam mais uma profissão de fé do que uma fundamentação teórica da noção de totalidade. Por esse motivo, seguindo o exemplo de Goldstein, Perls restringiu-se àquelas formulações de Smuts que descreviam a dinâmica integrativa do campo. Por meio dessas formulações - e em substituição à metapsicologia freudiana – Perls propôs, não um gestaltismo estruturalista que faria da awareness a lei ou a regularidade de uma combinatória de partes. Em vez disso, Perls propôs a tese de que a awareness seria a vivência de um processo de auto-regulação contínuo, sempre em mutação, dependendo dos fatores ou das contingências que viessem a aparecer – e para os quais não haveria uma solução de antemão. Aplicada à psicoterapia, essa tese permitiu a Perls inferir que, se é verdade que os sintomas neuróticos têm relação com a retomada de atos inibitórios esquecidos, essa retomada não é determinada por um conteúdo passado, tampouco está condicionada por uma forma a priori. Trata-se de um ajustamento criativo, do qual fazem parte ocorrências atuais, ocorrências passadas (como o próprio ato de inibição) e possibilidades futuras, todas elas relacionadas entre si, de modo a se exprimirem mutuamente. O sintoma é apenas uma dessas configurações globais, cuja nota característica é justamente a presença de uma auto-inibição, muito embora o sentido dessa auto-inibição só possa ser compreendido tendo-se em vista o conjunto dos elementos envolvidos.
Ora, se, num campo holístico, a mútua relação entre as partes envolvidas não é determinada por uma combinatória universal, por uma lei estrutural, em que sentido ela se diferenciaria da pura contingência? O que nos permitiria reconhecer, para ela, uma forma de intencionalidade organísmica (conforme os termos de Goldstein) ou uma unidade de awareness (conforme a terminologia de Perls)? As respostas para essas questões, Perls as tenta estabelecer a partir da aplicação do “pensamento” diferencial de Salomon Friedlaender, conforme dissertaremos a seguir.

5 Aplicação do “pensamento diferencial” de Salomon Friedlaender

Perls começou sua obra de 1942, apresentando duas teses de Friedlaender, filósofo neokantiano, vinculado à escola Bauhaus, e autor da obra Schöpferische Indifferenz (1918) . Além de reconhecer, em Friedlaender, um exemplo de integridade humana, Perls (1969) atribuía a ele a autoria de uma das mais importantes releituras do emprego romântico da noção de dialética – emprego esse, conforme Perls, encontrado em Hegel e Schelling . Por meio dessa releitura, acreditava Perls, Friedlaender teria suspendido o sentido metafísico veiculado por tais pensadores em proveito da descrição do “modo” como os fenômenos efetivamente acontecem em nossa experiência cotidiana. Conforme Perls, Friedlaender não se interessava em discutir se os fenômenos forneciam ou não um fundamento material para as leis psicológicas ou se eles eram ou não o correlativo transcendente de princípios teleológicos universais. Friedlaender queria apenas descrever as operações envolvidas na vivência de um fenômeno. Isso o teria levado a reconhecer, para nossa materialidade e para a materialidade do mundo, uma espontaneidade criativa, cujo sentido não seria outro senão equilibrar tensões opostas, em proveito dessas unidades provisórias no tempo, que são os fenômenos. Friedlaender chamava de “indiferença criativa” essa criatividade espontânea situada a meio caminho entre orientações materiais opostas, por ele denominadas de “formas” ou “pensamento diferencial” da realidade. Perls vislumbrou, nas noções de “indiferença criativa” e “pensamento diferencial da realidade”, os elementos funcionais por meio dos quais ele poderia não só descrever a dinâmica dos “todos” holísticos, como distinguir esses “todos” de episódios contingentes. Se se pudesse identificar, em um conjunto de partes, não apenas uma tensão, mas uma tendência para estabelecer o equilíbrio, eis, então, um todo holístico e não apenas um conglomerado acidental . Ademais, as teses de Friedlaender permitiam uma descrição de nossas vivências de campo sem que, para tal, tivéssemos de admitir um agente exterior (causa primeira), uma teleologia (causa final, distinta dos próprios meios) ou uma forma rígida ou linear (causa formal). Eis porque, em “Ego, Fome e Agressão”, Perls (1942) faz uma tentativa de aplicação das teses de Friedlaender às formulações que importara de Goldstein. Em verdade, Perls não levava em conta as intenções programáticas de Friedlaender. Essas pretendiam mostrar ao kantismo que a noção de criação - veiculada por Kant (1790) em sua “Crítica da Faculdade do Juízo” – colocava por terra a distinção que, na “Estética Transcendental” da “Crítica da Razão Pura”, o próprio Kant (1781) fizera entre “entendimento” e “sensibilidade” para efeitos de apreensão de um fenômeno. A Perls interessava apenas o fato de que, na noção de “indiferença criativa”, era possível encontrar uma apresentação da espontaneidade criadora vigente em cada campo holístico sem que isso implicasse reinvestir o primado do sujeito ou do mundo na consecução de um sentido de totalidade. Por outro lado, a noção de “pensamento diferencial” da realidade permitia a Perls vincular aquilo que, até então, a psicanálise distinguia, a saber, o instintivo e o pulsional, o inconsciente e o pré-consciente/consciente, o id e o ego, dentre outras dicotomias. Não que Perls estivesse negando essas dicotomias. Ao contrário, elas serviam como ilustração daquilo que estaria em jogo na “indiferença criativa”, nesse trabalho de criação de uma “estrutura” provisoriamente estável. Em suma, por meio das noções de “pensamento diferencial” e de “indiferença criativa”, Perls estaria a propor uma descrição da experiência sem antecipar conteúdos que só ela, todavia, poderia revelar. Perls apresenta a teoria de Friedlaender nos seguintes termos:

[...] todo evento está relacionado a um ponto-zero, a partir do qual ocorre uma diferenciação em opostos. Esses opostos apresentam, em seu contexto específico, uma grande afinidade entre si. Permanecendo atentos no centro, podemos adquirir uma habilidade criativa para ver ambos os lados de uma ocorrência e completar uma metade incompleta. Evitando uma perspectiva unilateral, obtemos uma compreensão muito mais profunda da estrutura e da função do organismo (PERLS, 1942, p. 45-46).

A formação de um campo, segundo Perls, dar-se-ia a partir de um contexto específico de encontro entre duas orientações contrárias. Tal encontro seria um evento contingente, mas que, uma vez estabelecido, fundaria um ponto zero, um ponto de indiferença – no que diz respeito ao conteúdo de cada força -, mas cheio de interesse, precisamente, interesse na conservação desse estado de equilíbrio. Seria a partir desse interesse que o campo propriamente ganharia autonomia, o que quer dizer, espontaneidade. A partir do momento em que se estabelecesse o ponto zero, tudo se passaria como se, em função da manutenção do equilíbrio, as orientações opostas pudessem ser potencializadas ou diminuídas. A matéria ganharia vida “funcional”, ganharia um centro a partir do qual se transformaria numa totalidade, num organismo. A partir de então, ela seria capaz de se auto-regular, o que significa: investir ou retirar-se de um pólo a outro, em proveito do equilíbrio.
Perls (1942) fornece um exemplo da dinâmica de articulação das polaridades a partir de um ponto zero. Segundo ele:
(...) o Sr. Brown sai para um passeio num dia muito quente. Ele transpira e perde certa quantidade de água. Se chamarmos a quantidade total de líquido requerida pelo organismo equilibrado de A e a parte perdida de X, então lhe resta a quantidade A-X, um estado que ele experiência [sic] como sede, como um desejo de restaurar o equilíbrio organísmico de água, como um desejo de incorporar ao seu sistema a quantidade de X. Esse X aparece em sua mente (que, protestando contra o “-X”, pensa em seu oposto) como a visão de um regato borbulhante, uma jarra d’água ou um bar. O “-X” no sistema corpo-alma aparece como X em sua mente. Em outras palavras: A-X existe no “corpo” como uma deficiência (desidratação), na “alma” como uma sensação (sede) e na “mente” como a imagem complementar. Se a quantidade X de água real é adicionada ao organismo, a sede é anulada, saciada, e o equilíbrio A restaurado, a imagem de X na mente desaparecendo junto com a chegada do X real no sistema corpo-alma (p. 70 ) [grifo do autor].

Uma situação inversa à vivida pelo Sr. Brown seria aquela em que o corpo estaria polarizado no “mais” e a mente no “menos”. É isso o que acontece, segundo Perls, na defecação. O corpo acumula um excesso de matéria que a mente, então, tenta equilibrar abstraindo a possibilidade da defecação. Para Perls, ademais, as funções “mais” e “menos” do metabolismo são um outro bom exemplo da dinâmica de articulação das polaridades a partir de um ponto zero. Se uma célula encontra-se imersa em um meio extracelular carregado de soluto sódio, sua membrana não consegue impedir a entrada desse sal e do respectivo solvente (a saber, a água). Ela admite um “mais” que, se não for compensado, acarretará um edema. A célula, então, começa a articular um “menos”, que é a expulsão do sódio e de parte da água presentes no ambiente intracelular. Esse processo demanda a “criação” de uma estratégia específica, que consiste na utilização de reservas energéticas da célula em proveito da consecução de uma “bomba” capaz de “empurrar” o sódio de volta para o meio extracelular. A criação dessa estratégia é o próprio ponto zero de que falava Friedlaender, ou seja, uma apresentação dinâmica da noção goldsteniana de intencionalidade organísmica, especificamente aqui retratada como poder de centragem das células.
Perls passa então, a tratar do ponto zero como uma intenção e a intenção como uma forma de “indiferença criativa” entre dois pólos e em proveito do equilíbrio das partes envolvidas. Para ele, enfim, a “indiferença criativa” é o fundamento dinâmico desse campo holístico que é o organismo no meio. Ou, então, a “indiferença criativa” é o fundamento dinâmico do processo de auto-regulação que caracteriza o campo organismo-meio. Aplicada ao campo específico da subjetividade, a indiferença criativa corresponde àquilo que Perls vai chamar de “ego insubstancial”, em contrapartida à noção de ego da psicanálise, seja ela freudiana ou pós-freudiana.


6 Da “leitura diferencial” da teoria organísmica à teoria do ego insubstancial

Em 1936, Perls apresentou, na Checoslováquia, por ocasião do Congresso Internacional de Psicanálise daquele ano, um trabalho que tratava das resistências orais. Seu objetivo era mostrar, contra o que era cânone na teoria psicanalítica freudiana da época, que mesmo crianças muito pequenas, em fase de formação da dentição, já estavam providas de uma intencionalidade ou, nas palavras de Friedlaender (1918), de um ponto zero criativo capaz de coordenar a ação do infante no meio, independentemente daquilo que se supunha ser uma pulsão sexual tão-somente. Perls denominou essa intencionalidade de “ego”, o que, evidentemente, foi muito mal recebido pela comunidade psicanalítica freudiana. Afinal, isto significava admitir que o campo pulsional – essa maneira psicanalítica de designar o universo das funções organísmicas – já seria dotado de uma organização espontânea, ainda que totalmente indeterminada. Como se sabe, para a teoria psicanalítica, tal organização somente se configuraria a partir do momento em que a criança fosse introduzida no universo da linguagem. Perls viria a contestar o seguinte: caso se possa admitir, a partir da psicanálise freudiana, que o ego só existe a partir de um campo de pulsões, ou, numa linguagem goldsteiniana, a partir de um fundo de outras funções organísmicas, então, também se deve admitir – agora contra a psicanálise - que esse campo já é uma espontaneidade, uma espontaneidade egológica.
Em 1936, Perls ainda se intitulava psicanalista. Mas, o contato com Friedlaender, a leitura de Smuts e, sobremodo, as discussões com Goldstein começavam a mostrar seus efeitos. Desse último, muito especialmente, Perls aprendeu a reconhecer a presença de uma intencionalidade primitiva, não-tributária das funções cognitivas superiores. Em seus experimentos com soldados vítimas de lesões sofridas em combate na I Guerrra Mundial, Goldstein (1933) observara o quanto certos pacientes, tendo suas funções intelectuais fisicamente comprometidas (em decorrência de lesões corticais), mesmo assim conseguiam estabelecer o rearranjo de seus quadros sensomotores e de expressão comunicativa, rearranjo esse que não se podia atribuir senão a uma capacidade primitiva de auto-regulação. Tal capacidade, por sua vez, não tinha relação apenas com as características individuais de cada paciente. Ela incluía a qualidade do meio a qual cada paciente era submetido, o que levou Perls a interpretar a capacidade de auto-regulação nos termos da filosofia de Friedlaender: zona de equilíbrio entre forças divergentes e em proveito da manutenção desse equilíbrio. A vantagem da linguagem de Friedlaender residia no fato de ela não fazer apelo a qualquer subsistência, a qualquer continente ôntico dessa capacidade de auto-regulação. Tal capacidade seria mais o processo de construção de uma identidade, do que o efeito dela. Nesse sentido, ela seria, antes, a formação de um ego do que uma parte dele. Por essa razão, com o intuito de não ser confundido com o psicanalista Federn e sua teoria do ego, Perls (1942) viria a denominar aquela capacidade de auto-regulação – na qual se reconhece uma forma de espontaneidade criativa, intenção organísmica ou awareness - de “ego insubstancial” (p. 205).
Doravante ao falar de ego, Perls não tem mais em vista aquele suposto “órgão de censura” concebido por Freud. Perls tem em vista uma dinâmica complexa, totalmente inserida e operada desde o meio, de reorganização da unidade desse meio como um organismo específico (tal como, por exemplo, o cego reorganiza seu meio fazendo da bengala uma extensão de seu corpo). Ou, então, conforme Perls (1942), o ego corresponde a uma função do organismo no meio no sentido em que se considera que a respiração tem relação com uma função dos pulmões na troca de gases do organismo: “pulmões, gases e vapor são concretos, mas a função é abstrata – embora real.” Da mesma forma, “o ego é igualmente uma função do organismo” (p. 205), mas não uma parte dele.


7 Considerações finais

Mesmo sem a anuência das instituições psicanalíticas de seu tempo, até 1951, Perls ainda se intitulava psicanalista; muito embora já não concordasse com a forma como Freud fazia depender, de um objeto de satisfação primordial, as duas orientações fundamentais que se deixam perceber no domínio clínico e que, na linguagem de Freud, denominavam-se de pulsão de vida e pulsão de morte. Nesse sentido, diferentemente de Freud, Perls não denomina aquelas orientações de pulsões. Mais ao estilo de Goldstein, Perls prefere chamá-las de funções organísmicas. Por meio delas, acredita Perls, os elementos materiais envolvidos na experiência presente, venham eles ou não do passado, recebem uma orientação de unificação ou de destruição. Na unificação, os elementos materiais presentes são articulados como ponto de estabilização da experiência: conservação. Na destruição, são transcendidos como ponto de abertura para o inédito: crescimento. Essa orientação ambígua das funções torna a experiência uma totalidade sempre inesperada, inédita, como se nela houvesse uma espontaneidade criadora. Perls denomina essa espontaneidade de awareness. O que nos permite afirmar enfim que, na mediação da noção de função organísmica estabelecida por Goldstein, Perls compreende as pulsões descritas por Freud como um fluxo de awareness ambíguo: ora em direção à conservação da experiência, ora em direção à sua transformação. Ou, noutras palavras, para Perls, as pulsões não seriam conteúdos arcaicos que devessem ser recuperados ou substituídos. Entendidas enquanto funções organísmicas, elas seriam a “forma” ambígua de funcionamento global de nosso organismo frente à atualidade material.
Para melhor descrever essa “forma” de funcionamento, Perls recorreu, por um lado, ao holismo estrutural de Smuts, conforme recomendação de Goldstein. Afinal, a noção de que tudo está vinculado com tudo permite compreender em que sentido uma orientação ou função organísmica adquirida no passado exprime-se junto a um conteúdo material presente. Por outro lado, Perls recorre ao pensamento diferencial de Friedlaender, em cujos termos reconheceu uma elucidação possível da ambigüidade característica das funções organísmicas. Segundo Perls, a dialética da diferenciação implícita à noção de indiferença criativa apresentada por Friedlaender ilustra em que sentido, em torno de cada novo dado material, as funções organísmicas estabelecem ora a unificação ora a transformação de cada experiência, de cada fenômeno vivido.
Ademais, segundo Perls, a noção de indiferença criativa proposta por Friedlaender elucida de que maneira, em decorrência da dupla orientação das funções organísmicas, cada experiência comporta uma espécie de espontaneidade criativa, acerca da qual o próprio Goldstein já havia falado quando descreveu seus experimentos com soldados lesionados. Perls denominou essa espontaneidade de “ego”, o que de forma alguma se confunde com uma faculdade intrapsíquica, ou com uma função social cuja tarefa seria evitar o conflito (entre as diversas orientações do próprio funcionamento psíquico) por meio da censura (como postula a psicanálise freudiana). O ego que a noção de indiferença criativa elucida tem relação com a própria dialética das funções organísmicas, as quais geram, no seio da experiência, uma unidade parcial (figura) que, espontaneamente, os dados materiais envolvidos na experiência não poderiam formar, seja em favor da conservação seja em favor da destruição de algo (que pode ser o próprio organismo). O que faz do ego menos um habitante do organismo e mais uma função da experiência, uma função do campo organismo/meio. Eis por que Perls denominou essa função de “ego insubstancial” (1942, p. 205).
A neurose, por conseguinte, não seria, conforme o entendimento de Perls, uma ação de censura estabelecida pelo ego. Seria, ao contrário, o comprometimento da função de ego, a impossibilidade manifestada pelo organismo para estabelecer, para os elementos materiais envolvidos na experiência, uma orientação de unificação ou destruição. A neurose, por outras palavras, seria uma interrrupção do fluxo de awareness, e a terapia de inspiração gestáltica, um trabalho de resgate dessa função, dessa função de criação na atualidade da sessão. E eis que se lançam as bases para o futuro surgimento da Gestalt-terapia, que ainda precisará do olhar fenomenológico de Paul Goodman para se firmar como uma prática psicoterapêutica (ou analítica) exercida em nome próprio, o que, entrementes, é tema para outro artigo.

REFERÊNCIAS

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SMUTS, Jan Christian. 1926. Holism and Evolution. Danton: MacMillan, 1926.




O termo ‘aqui e agora’ é aplicado na Gestalt-terapia tanto para exprimir o caráter temporal do sistema self e das vivências de contato nele estabelecidas, quanto para designar um “estilo” de intervenção clínica adotado pelos gestalt-terapeutas e cujo propósito é promover a “concentração” do consulente no modo “como” este, na atualidade da sessão, opera com isso que, para ele, é passado ou futuro. Os dois empregos estão intimamente relacionados, a ponto de podermos dizer que constituem a mesma noção.
Na obra Ego, fome e agressão (1942), Frederick Perls não emprega, explicitamente o termo ‘aqui e agora’. Todavia, ao criticar as práticas psicanalíticas que fazem do passado a causa dos sintomas presentes, Perls afirma não haver “outra realidade a não ser o presente” (1942, p. 146). O que não significa que desprezasse a importância do passado e do futuro na experiência clínica. Ainda assim, afirma Perls (1942, p. 148), o passado só existe enquanto puder se fazer sentir no presente, da mesma forma como o futuro não é mais que uma possibilidade que se abre na atualidade. A partir dessa constatação, Perls propõe uma forma de intervenção clínica em que, em vez de promover a busca “arqueológica” no passado pelas causas do sofrimento atual, o terapeuta incentiva a “concentração” do consulente nas manifestações presentes desse passado, tal como elas se dão a conhecer na atualidade da sessão. Dessa forma, o consulente recobra a awareness de seus próprios modos de ajustamento, da maneira como se interrompe e das possibilidades que ainda lhe restam ou que a atualidade inaugura para ele lidar com o que tiver restado como situação inacabada vinda do passado.
É só na obra Gestalt Terapia (1951, p. 51) que a expressão ‘aqui-agora’ ganha seu formato definitivo. Os autores acrescentam à forma como Perls concebia a integração das dimensões temporais no presente uma leitura fenomenológica, explicitamente fundamentada no modo como o filósofo Edmund Husserl propunha a noção de “campo de presença”, de que a noção de “aqui e agora” é uma versão. Em sua tentativa para explicitar de que modo nós vivemos, antes de representá-la, a unidade de nossa inserção operativa no mundo da vida, Husserl propõe uma interpretação, segundo a qual: toda vez que somos afetados por uma matéria impressional, por exemplo, uma nota musical, se essa experiência foi capaz de dar, às minhas vivências passadas, a ocasião de uma retomada, ela não desaparece tão logo eu ouça outra nota. A primeira nota permanece “retida” como horizonte de percepções duradouras, o que não quer dizer que permaneça inalterada. A cada nova vivência, aquela que ficou retida sofre uma pequena modificação. Ainda assim, permanece como fundo disponível à espera de retomada. Razão pela qual, o valor de cada nova nota escutada não se restringe às propriedades materiais que essa mesma nota é capaz de mobilizar, mas inclui um fundo de vivências passadas (por exemplo, notas já ouvidas), para o qual a nota atual há de abrir perspectivas, possibilidades de retomada (num todo de sentido, que é a melodia). E eis que, em torno de cada vivência material, forma-se um “campo de presença” temporal (HUSSERL, 1893, p.141), em que o passado e o futuro não estão ausentes, mas comparecem como horizontes virtuais. Esse campo, a sua vez, não permanece eternamente. Tão logo um novo dado material surja demandando a participação de meus horizontes de passado e futuro, o campo de presença se desmancha em proveito da configuração de um novo. Essa passagem assegura à minha própria história uma auto-aparição fluida, porquanto, a cada nova aparição, é a mesma história que retorna, mas em uma configuração diferente.
Perls, Hefferline e Goodman utilizam a expressão ‘aqui e agora’ para elucidar essa unidade de passagem que é o “campo de presença”. Com aquela expressão, os autores não estão querem se referir a um determinado instante ou lugar, mas ao fato de que, em cada instante e lugar somos trespassados por uma história que nos lança ao futuro e, conseqüentemente, àquilo que vem nos surpreender. Cada ‘aqui e agora’ é mais do que uma posição determinada. Trata-se de um campo temporal ou, o que é a mesma coisa: campo de presença do já vivido como horizonte de futuro para a materialidade da relação organismo/meio. No interior de cada ‘aqui e agora’, operamos o “contato”, que é justamente essa reedição criativa (ou ajustamento criativo) do passado frente às possibilidades abertas pela atualidade do dado. Nas palavras dos autores:
(c)ontato é achar e fazer a solução vindoura. A preocupação é sentida por um problema atual, e o excitamento cresce em direção à solução vindoura, mas ainda desconhecida. O assimilar da novidade se dá no momento atual à medida que este se transforma no futuro (1951, p. 48).

O self, por sua vez, é apenas o sistema de contatos no presente transiente, o fluir de um “aqui e agora” noutro, a passagem de um campo de presença para outro, a fronteira-de-contato em funcionamento – que é um outro nome para a síntese de passagem de que falava Husserl. Nas palavras dos autores: “o presente é uma passagem do passado em direção ao futuro, e esses tempos são as etapas de um ato do self à medida que entra em contato com a realidade” (1951, p. 180).
De onde se depreende, mais uma vez, que “em psicoterapia procuramos a instigação de situações inacabadas na situação atual e, por meio da experimentação atual com novas atitudes e novos materiais (...), visamos uma integração melhor” (1951, p. 48). Ou então, conforme Perls, “(a) terapia gestáltica é, então, uma terapia ‘aqui e agora’, em que pedimos ao paciente durante a sessão para voltar toda sua atenção ao que está fazendo no momento, no decorrer da sessão”. Por essa razão: “(p)edimos ao paciente para não falar sobre seus traumas e problemas da área remota do passado e da memória, mas para reexperenciar seus problemas e traumas – que são situações inacabadas no presente – no aqui e agora” (1973, p. 75-76).

AUTORES: MÜLLER, M.J.; GRANZOTTO, R.L.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HUSSERL, Edmund. 1893. Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. Trad. Pedro M. S. Alves. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda,[s.d.].
PERLS, Frederick; HEFFERLINE, Ralph; GOODMAN, Paul. 1951.Gestalt Terapia.Trad. Fernando Rosa Ribeiro. São Paulo: Summus, 1997.
PERLS, Frederick 1942. Ego, Fome e Agressão. Trad. Georges Boris. São Paulo: Summus, 2002.
______. 1973. A abordagem Gestáltica e Testemunha Ocular da Terapia. Trad. José Sanz. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

O termo ‘configuração’ significa, para a Gestalt-terapia, uma das possíveis formas de tradução do substantivo alemão ‘gestalt’. Conforme Perls, Hefferline e Goodman: “(c)onfiguração, estrutura, tema, relação estrutural (Korzybski) ou todo organizado e significativo são termos que se assemelham mais de perto à palavra alemã, para a qual não há uma tradução equivalente em inglês [tampouco em português]” (1951, p. 34-35). Ou, então, segundo Perls (1973, p. 19): “(u)ma gestalt é uma forma, uma configuração, o modo particular de organização das partes individuais que entram em sua composição”.
O termo ‘configuração’, tal como ele é empregado na língua portuguesa, favorece a descrição dos aspectos dinâmicos envolvidos na formação de uma gestalt. Trata-se de um modo de nominar o processo de formação de uma totalidade, à qual não é resultante do somatório das partes envolvidas, tampouco é algo apartado dessas partes, como se delas independesse. Ao contrário, quando falamos em configuração temos em vista uma totalidade tal como nosso organismo: este não é o resultado da soma dos órgãos de que somos formados, tampouco é um desses órgãos. Trata-se de uma unidade que se exprime entre nossos órgãos, que não existe sem eles, mas não é um deles. Nosso organismo é a própria relação dos órgãos entre si, a prévia disponibilidade de um para o outro, o sistema espontâneo de equivalência que estabelecem entre si. Ou, ainda, o organismo é a fronteira viva entre esses órgãos, aquilo que os faz trocar informações físicas e vitais. O que nos permite entender a configuração como uma espécie de fronteira viva.
Ora, entendido como fronteira viva, a configuração não se limita a designar nosso organismo. A configuração – como fronteira viva - também existe entre os organismos, entre eles e as coisas inanimadas, entre eles e as instituições culturais. O que nos permite falar das configurações como totalidades impessoais e genéricas, das quais participamos em diversos níveis: físico, biológico, vital, social... Nesse sentido, dizem Perls, Hefferline e Goodman:
A experiência se dá na fronteira entre o organismo e seu ambiente, primordialmente a superfície da pele e os outros órgãos de resposta sensorial e motora. A experiência é função dessa fronteira, e psicologicamente o que é real são as configurações “inteiras” (whole) desse funcionar, com a obtenção de algum significado e a conclusão de alguma ação (1951, p. 41)

Essa forma de empregar a noção de configuração lembra a teoria fenomenológica do todo autêntico; a qual foi apresentada por Husserl na terceira das Investigações Lógicas (1900-1901) e retomada na obra Idéias (1913), a qual serviu de modelo para Goodman estabelecer a redação da teoria do self, na terceira parte do segundo volume da obra Gestalt Therapy (1951), conforme declaração do próprio Goodman (GOODMAN apud STOEHR, 1994). Segundo Husserl, um todo autêntico é aquele cujas partes ou conteúdos estão relacionados de modo dependente, o que significa dizer: a modificação de uma parte acarreta a modificação das outras. No caso de uma totalidade acústica, por exemplo, se mudo a qualidade do som, simultaneamente altero sua intensidade e, assim, sucessivamente, de modo que passo a dispor de uma nova unidade sonora. Para Husserl, as gestalten ou configurações são totalidades autênticas, em que se pode observar, nos termos de uma relação de dependência entre as partes envolvidas, a vigência de uma intencionalidade comunitária, sem porta-voz específico, mas partilhada por todos os envolvidos, tal qual uma fronteira viva.
Os psicólogos da Forma tomaram para si a teoria fenomenológica do todo autêntico e com ela tentaram pensar fenômenos naturais, como a percepção. Segundo eles, as discussões fenomenológicas permitem compreender que é a organização dos fatos, percepções e comportamentos e não os aspectos individuais de que são compostos que dá aos todos sua definição ou significação específica e particular (PERLS, 1973, p. 18). Também chamaram a essa organização espontânea de gestalt ou configuração. Diferentemente da fenomenologia, entretanto, os psicólogos da Forma tomaram às gestalten como se elas pudessem ser traduzidas em termos objetivos, como se elas pudessem ser reduzidas a leis ou regularidades fenomênicas, desprezando o que nelas pudesse haver de intencional. É como se cada gestalt ou configuração exprimisse uma combinatória de partes que valesse como lei universal - e não como se houvesse entre as partes envolvidas uma intencionalidade comum. Os fundadores da Gestalt-terapia criticaram essa tentativa de objetivação estabelecida pelos psicólogos da Forma. A partir destes, Perls, Hefferline e Goodman tentaram estabelecer um retorno ao emprego fenomenológico do termo configuração (gestalt); o que significa restituir o caráter intencional que define a maneira como as partes de uma gestalt estão ligadas entre si. O que talvez explique por que razão, na prática clínica da Gestalt-terapia, por exemplo, importa salientar que as sessões terapêuticas, os trabalhos de acompanhamento terapêutico e os workshops – dentre outras modalidades de intervenção - são menos repetições estruturadas a partir do passado e mais ajustamentos “criados” no aqui/agora da sessão. A criação é o ingrediente intencional a partir do qual as partes envolvidas, venham elas ou não do passado, assumem uma configuração única, formando uma totalidade autêntica - whole, na terminologia de Perls, Hefferline e Goodman (1951, p. 41).

AUTORES: MÜLLUR, M.J.; GRANZOTTO, R.L.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HUSSERL, E. 1900-1. Investigaciones Lógicas. Trad. Jose Gaos, 2.ed. Madrid: Alianza, [s.d.],V. II
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PERLS, F.; HEFFERLINE, R; GOODMAN, P. 1951. Gestalt Terapia.Trad.Fernando Rosa Ribeiro. São Paulo: Summus, 1997.
STOEHR, T. 1994. Aquí, ahora y lo que viene: Paul Goodman y la psicoterapia Gestalt en tiempos de crisis mundial. Trad. Renato Valenzuela. Santiago: CuatroVientos, 1997.

FENOMENOLOGIA
No prefácio à obra Gestalt Terapia, texto inaugural da abordagem que leva o mesmo nome, seus autores apresentam a orientação geral da investigação que propõem:
(...) deslocar o foco da psiquiatria do fetiche do desconhecido, da adoração do “inconsciente”, para os problemas e a fenomenologia da awareness: que fatores operam na awareness, e como faculdades que podem operar com êxito só no estado de awareness perdem essa propriedade? (PERLS, HEFFERLINE E GOODMAN, 1951, p. 33, grifo em negrito nosso).

Eis, então, a primeira ocorrência do termo fenomenologia na literatura da Gestalt-terapia. Fenomenologia aparece aqui como a disciplina por cujo meio Perls, Hefferline e Goodman pretendem esclarecer em que sentido a noção de awareness lança as bases para uma nova concepção sobre as formas de contato entre o homem, o semelhante e o mundo – formas essas às quais denominam de sistema self.
Inspirado no uso que Edmund Husserl deu à expressão ‘fenomenologia’, Martin Heidegger estabelece para ela uma nova etimologia. Heidegger (1927, §7) explora o fato de o verbo legein (discursar), de que o substantivo logia é derivado, ser sinônimo de apo-phainesthai, o qual, a sua vez, é composto pelo prefixo apo (que significa fazer ver) e phainesthai (que é uma forma verbal reflexiva que significa “manifestar-se desde si”). De onde provém a tradução da expressão “fenomenologia” (legein ta phainomena) da seguinte forma: fazer ver, a partir de si mesmo, aquilo que se manifesta, tal como, a partir de si mesmo, se manifesta (apophainesthai ta phainomena). Fenomenologia, nesse sentido, não é o estudo do que aparece, mas o fazer ver – no âmbito de nossa experiência – àquilo que se manifesta desde si, tal como se manifesta desde si. O que se manifesta desde si, a sua vez, não é uma coisa objetivada, já inscrita em nosso código natural, em nossas definições espaço-temporais. As coisas naturais se mostram a partir de nossa definição de natureza e não a partir delas mesmas. Razão pela qual, para a fenomenologia, o manifestar-se desde si implica uma espontaneidade, à qual as coisas naturais quando muito representam, mas não esgotam. O termo intencionalidade tenta nominar essa espontaneidade, sem “autor” empírico, mas a partir da qual passamos a representar entidades empíricas, sejam estas: homens, mulheres, outros animais, plantas ou coisas inanimadas. Fazer fenomenologia, por conseguinte, é fazer ver o “primado” dessa intencionalidade primeira e impessoal, que se mostra desde si antes mesmo de nossos instrumentos reflexivos dele poderem se apoderar – o que justifica que Husserl e Heidegger, cada qual a seu modo, tentassem utilizar uma linguagem própria, diferenciada da linguagem natural ou científica. Mais ainda, fazer fenomenologia é fazer ver a irredutibilidade desse primado, que nunca conseguimos dominar, tal qual o tempo, que não para de escoar. Aliás, para todos os fenomenólogos, o tempo é a forma íntima da intencionalidade.
Ora, essa espontaneidade que se revela a partir de si mesma tal como ela é vivida a cada instante e de maneira impessoal, Perls, Hefferline e Goodman a denominam de awareness. Já na obra Ego, Fome e Agressão (1942), Perls utilizava o termo awareness para designar a forma como Kurt Goldstein sintetizava, transpondo-a para o campo das relações organísmicas, a noção fenomenológica de ‘intencionalidade’. O que significa dizer que, à diferença de Husserl e Heidegger, os fundadores da Gestalt-terapia não acreditam ser preciso abandonar-se o discurso natural para se descrever os processos intencionais. Tal como o fenomenólogo Maurice Merleau-Ponty (1945), os fundadores da Gestalt-terapia acreditam que a ciência ela mesma é capaz de apontar o primado dessa espontaneidade que se revela por si. Ainda assim, Perls, Hefferline e Goodman mantêm-se fiéis à visada fenomenológica sobre a noção de intencionalidade, quando admitem ser a awareness um acontecimento eminentemente temporal. Nesse sentido, na terceira parte do segundo volume da obra Gestalt Terapia, quando descrevem o fluxo de awareness nos termos de um sistema ao qual denominaram de self, seus autores mencionam que a “classificação, descrição e análise exaustivas das estruturas possíveis do self” constitui “o tema da fenomenologia” (1951, p.184). Conforme eles, trata-se de entender o self como a “realização do potencial”, o que significa dizer que:
o presente é uma passagem do passado em direção ao futuro, e esses tempos são as etapas de um ato do self à medida que entra em contato com a realidade (é provável que a experiência metafísica do tempo seja primordialmente uma leitura do funcionamento do self) (PERLS, HEFFERLINE e GOODMAN, 1951, p.180-1)

A afirmação lacônica, mas crucial, que reconhece na experiência metafísica do tempo o sentido profundo do funcionamento do self, não deixa dúvidas sobre a orientação fenomenológica das descrições que seus autores pretendem estabelecer. Afinal, a experiência metafísica do tempo é justamente o tema do qual se ocupa Husserl em suas Lições sobre a fenomenologia da consciência interna do tempo (1893); tema esse que reaparece articulado com a noção de intencionalidade na obra Idéias (1913), a qual, por sua vez, serviu de base para Goodman propor a redação definitiva da teoria do self, segundo ele mesmo admitiu em carta dirigida a Wolfgang Köhler (conforme STOEHR, 1993, p. 80).
No campo da prática clínica, a noção de fenomenologia se presta a designar uma postura de disponibilidade do terapeuta em relação àquilo que se mostra na sessão como algo “óbvio”, mas não necessariamente ligado a uma causa ou a um agente determinado. Trata-se dos hábitos inibitórios, dos estados de ansiedade e angústia, das criações motoras e linguageiras, dentre outros acontecimentos espontâneos e inesperados compartilhados na sessão terapêutica. Ao terapeuta importa pontuar o modo “como” esses acontecimentos se mostram desde si na atualidade da sessão, retornem eles do passado, dirijam-se eles ao futuro. A fenomenologia é aqui menos uma metodologia de intervenção do que uma atitude de concentração naquilo que se mostra desde si.

AUTORES: MÜLLER, M.J.; GRANZOTTO, R.L.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HEIDEGGER, M. 1927. Ser e Tempo. Trad. Márcia Cavalcanti. Petrópolis: Vozes, 1989.
HUSSERL, E. 1893. Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. Trad. Pedro M. S. Alves. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, [s.d.].
______. 1913. Ideas relativas a una fenomenologia pura e una filosofia fenomenológica I. Trad. José Gaos. 3 ed. México D. F.: Fondo de Cultura Economica, 1986.
MERLEAU-PONTY, M. 1945. Fenomenologia da percepção. Trad. C.A.Moura: SP, Perspectiva, 1994.
PERLS, F.; HEFFERLINE, R; GOODMAN, P. 1951. Gestalt Terapia.Trad.Fernando Rosa Ribeiro. São Paulo: Summus, 1997.
PERLS, F. 1942. Ego, Fome e Agressão. Trad. Georges Boris. São Paulo: Summus, 2002.
STOEHR, T. 1994. Aquí, ahora y lo que viene: Paul Goodman y la psicoterapia Gestalt en tiempos de crisis mundial. Trad. Renato Valenzuela. Santiago: CuatroVientos, 1997.

Resumo: Este artigo se propõe um estudo sobre a origem e modos de utilização do termo gestalt junto as escolas filosóficas e psicológicas do final do século XIX e início do século XX. Interessa, particularmente, os projetos teóricos de Franz Brentano, Edmund Husserl, bem como a repercussão deles junto as investigações promovidas pelos psicólogos da forma, tanto da primeira, quanto da segunda geração. Nosso propósito é estabelecer as bases desde onde possamos compreender em que sentido a Gestalt Terapia pode estabelecer um uso fenomenológico do conceito de gestalt.

MÜLLER, M.J.; GRANZOTTO, R.L. “Gênese fenomenológica da noção de gestalt”. IGT NA REDE. Vol. 1, nº 1, Artigo 2. www.igt.psc.br/ojs/viewarticle.php?id=35&layout=html


I

Não é só no nome que a Gestalt-terapia se vincula à Psicologia da Gestalt. Não obstante as críticas que, em vários lugares de sua produção bibliográfica, Frederick Perls endereçou ao “positivismo lógico” dos trabalhos dos gestaltistas da primeira geração (Perls, 1979: 81), muitas passagens dessa mesma bibliografia sinalizam para os trabalhos de Kurt Goldstein, junto a quem Perls aprendeu um modo específico de emprego do termo Gestalt (1979: 151, 188). Para Goldstein (1939: 300-1), Gestalt não é um “fato” elementar cujas leis constitutivas caberia à psicologia empírica desvendar, mas, sim, o “modo” dinâmico, segundo o qual os organismos se conservam e se modificam. Por outras palavras, Gestalt é a dinâmica “figura e fundo” que opera no interior dos processos de auto-regulação organísmica junto ao meio. De onde Perls inferiu, segundo ele próprio, um novo modo de se compreender essa experiência que, muito antes de ser o desvelamento da infra-estrutura temporal de cada um de nós, é a re-configuração espontânea de nossos motivos temporais em proveito de nossa materialidade cotidiana: terapia (Perls, 2002: 265). Ora, em que sentido a noção de Gestalt pode ser entendida enquanto uma dinâmica “figura- fundo”? Por que essa dinâmica é eminentemente temporal? Em que termos essa compreensão de Gestalt estabelece algo de novo em relação ao modo como os primeiros psicólogos da forma empregavam essa noção? Em que sentido o emprego da noção de Gestalt pelos primeiros psicólogos da forma implica um tipo de positivismo lógico? Responder essas questões é, conforme pensamos, estabelecer a gênese da noção de Gestalt veiculada pela Gestalt-terapia. Mais do que isso, respondê-las é, também, ir de encontro com um modo de pensar que, não por acaso, o próprio Perls reconheceu como constitutivo da Gestalt-terapia, a saber, a fenomenologia. Afinal, é a partir da investigação fenomenológica do conhecimento que a noção de Gestalt adquiriu status teórico e, na teoria de Perls, o nome de self. No presente texto, não pretendemos apresentar os traços constitutivos da teoria do self. Pretendemos algo preliminar, que é a apresentação sumária da história do emprego filosófico e psicológico da noção de gestalt. Nossa expectativa é que esse estudo possa estabelecer as bases que autorizaram o uso eminentemente fenomenológico do conceito de Gestalt da parte de Frederick Perls e colaboradores.


II

Não é incomum se ler, em trabalhos que se ocupam de traçar a gênese da Psicologia da Gestalt, a citação de Christian von Ehrenfels (1859-1932) como o grande precursor e inspirador das idéias de Wertheimer, Koffka e Köhler. Contra o que depõem os próprios envolvidos. Wertheimer, Koffka e Köhler jamais reconheceram nas idéias de Ehrenfels a matriz das suas. É verdade que, em comum, eles compartilhavam o mal-estar frente ao modo como Wilhelm Wundt, em Berlim, definia o “objeto” da recém-criada ciência psicológica. Nem Ehrenfels nem os psicólogos de Frankfurt reconheciam ser o objeto psicológico o resultado de nossos atos psíquicos, muito especialmente, de nossos atos de associação. Sequer o aparato físico-fisiológico importado por Wundt foi suficiente para convencer Ehrenfels, por um lado, Wertheimer, Koffka e Köhler, por outro, de que os objetos psíquicos são construções mentais, especificamente sinápticas, a partir de estimulações exteroceptivas, proprioceptivas e interoceptivas. Mas, daí não se segue que Wertheimer, Koffka e Köhler subscrevessem a alternativa formulada por Ehrenfels. Para este, concomitante às partes envolvidas no processo de associação, haveria uma outra que, à diferença das demais, já resguardaria um sentido de totalidade nela mesma, independentemente de qualquer ação de associação das partes: Gestaltqualität. Ainda que Ehrenfels admitisse que a percepção das partes como um todo dependia da percepção de um certo sentido de totalidade – que ele justamente designava pelo termo Gestaltqualität -, esse sentido de totalidade não era o objeto percebido (psíquico) como tal. Razão pela qual, para os gestaltistas, Ehrenfels ainda estava preso ao atomismo inerente à definição de objeto psíquico de Wundt. Diferentemente destes, os gestaltistas afirmarão que as gestalten já são, por elas próprias, um tipo específico de objeto. O que nos leva a perguntar, de onde veio a inspiração para que os psicólogos da forma pudessem conceber as gestalten como uma objetividade específica? A resposta a essa questão nos remete aos cursos de Husserl, na universidade de Göttingen, em 1900, quando justamente ele tentava repensar essa outra alternativa à teoria do objeto psíquico de Wundt, que é a teoria dos objetos intencionais de Franz Brentano.
Franz Brentano (1874) não aceitava a definição de objeto psíquico estabelecida por Wundt. Isso porque, não obstante concordar com a tese de que todos os objetos fossem, em algum sentido, construções da subjetividade, o associacionismo de Wundt não nos permitia distinguir entre objetos psíquicos e objetos físicos. Ademais, a definição associacionista de ato psíquico não nos permitia distinguir, claramente, entre o que é da ordem dos atos e o que é da ordem dos conteúdos. Em algum sentido, atos e conteúdos se confundiam e, conforme suspeitava Brentano, talvez estivesse aí a dificuldade que impedia que se estabelecesse a diferença entre objetos psíquicos e físicos. Por isso, Brentano propôs uma investigação sobre a natureza dos atos psíquicos, de modo a distingui-los dos conteúdos. E foi nesse momento, exatamente, que Brentano se deparou, pela primeira vez, com a diferença entre conteúdos que são dados aleatórios (e que ele chamou de fenômenos físicos) e conteúdos que, mesmo não tendo sofrido a ação de nenhum ato (razão pela qual ainda não tem uma forma objetiva), já implicam um sentido de totalidade (fenômenos psíquicos). Numa linguagem mais própria a Brentano, foi nesse momento que ele pôde distinguir entre “fenômenos físicos” e “fenômenos psíquicos”. Enquanto os primeiros diriam respeito às partes de nossa experiência material, os fenômenos psíquicos tinham a ver com a experimentação de uma totalidade que, espontaneamente, se estabelecia, antes mesmo que um ato dela se ocupasse. Exemplo disso são os sentimentos. Antes mesmo de um ato de percepção, imaginação ou ajuizamento poder identificá-los, nós os experimentamos como uma totalidade espontânea, muito embora ainda ambígua – e eis aqui uma primeira formulação da noção fenomenológica de Gestalt . Para Brentano, enfim, nós não experimentamos objetos psíquicos como o resultado de um processo cumulativo de vivências parciais (fenômenos físicos) – conforme a formulação de Wundt. Os objetos psíquicos são o produto de atos psíquicos que, a sua vez, estão orientados por totalidades que não carecem de gênese, quais sejam elas, os fenômenos psíquicos. Estes, então, são totalidades espontâneas a orientar a direção dos atos da consciência. De onde se seguiu, por um lado, a definição dos fenômenos psíquicos como modo intencional de nossa existência e, correlativamente, a definição de objeto psíquico como resultado de um ato alimentado por um fenômeno psíquico ou intencional.
Ora, se os fenômenos psíquicos são uma configuração espontânea a orientar nossos atos, eles não carecem de ser explicados. Eis a razão pela qual Brentano vai propor não uma psicologia genética (ao modo de Wundt) dos fenômenos psíquicos, mas uma psicologia descritiva dessas vivências. Temos aqui o rudimento programático daquilo que, na pena de Husserl, transformar-se-á em fenomenologia: descrição dessas vivências que, espontaneamente, configuram-se para nós como totalidades anteriores às partes. Husserl tinha um especial interesse nessa disciplina revigorada por Brentano, a saber, a Psicologia descritiva, uma vez que era por meio dela que se poderia esclarecer algo a que o próprio Husserl, como matemático que era, estava bem habituado, a saber, as intuições matemáticas. De certo modo, Husserl acreditava que, diferentemente dos objetos físicos, os objetos matemáticos eram constituídos a partir de intuições – e não a partir de fenômenos físicos, como as supostas sensações individuais, ou a partir de uma gramática lógica e, conseqüentemente, de atos psicológicos. O que não quer dizer que, ao se ocupar dos fundamentos da matemática por meio de uma psicologia descritiva, Husserl admitisse todas as teses de Brentano. Para Husserl, tão importante quanto dizer que os fenômenos psíquicos são totalidades que se impõem aos nossos atos psíquicos, é dizer que, independentemente desses atos, esses fenômenos são vividos como uma unidade que é a “nossa” unidade. Husserl introduz aqui, à noção de fenômeno psíquico de Brentano, um sentido vivencial, uma certa interioridade, que é a forma primitiva de nossa subjetividade. Ademais, mesmo concordando em que os objetos psíquicos têm como origem fenômenos psíquicos, daí não se segue, segundo a avaliação de Husserl, que eles sejam imanentes ao nosso psiquismo. Husserl inova aqui propondo a tese de que todos os objetos, mesmo os psíquicos, são transcendentes à nossa subjetividade, muito embora sejam diferentes entre si. Afinal, os objetos psíquicos (como os objetos matemáticos) têm atrás de si uma vivência intuitiva, que não se verifica no caso de um objeto físico. Este último depende de que um ato psíquico venha reunir as partes (que são os fenômenos físicos).
Precisamos, entretanto, tomar cuidado aqui. Pois, não podemos confundir aquilo que Husserl muito bem distinguia, a saber, a ciência matemática (e todas as demais ontologias regionais, como ele preferia) e a psicologia descritiva. Isso porque, para Husserl, uma coisa é você construir, por meio de um ato e a partir de um fenômeno (seja ele físico ou psíquico) um objeto de conhecimento. Isso é tarefa das ciências. Outra coisa bem diferente é você descrever os fenômenos psíquicos implicados na construção de um objeto – e essa, sim, é tarefa da psicologia descritiva. Mas não é apenas isso. Malgrado Husserl mesmo denominar sua nova empresa de psicologia descritiva, ele fazia questão de distingui-la da psicologia descritiva operada pelos psicólogos. Isso porque, os psicólogos – quando comprometidos com um programa descritivo (o que nem sempre era o caso) – se ocupavam das intuições particulares das diferentes subjetividades. Já a fenomenologia tinha em vista a descrição daquelas intuições que são não apenas ocorrências dos sujeitos psíquicos, mas ocorrências em que nós nos experimentamos como subjetividades, como unidades de sentido – o que não necessariamente acontece a um sujeito psicofísico, porquanto também um grupo pode se experimentar como subjetividade. Por outras palavras, a psicologia descritiva de Husserl visava descrever intuições que fossem, em verdade, fenômenos psíquicos intersubjetivos, porquanto se deixassem reconhecer como base necessária de nossos atos sociais. Husserl denominou essa classe de intuições de essências e eis, então, que a fenomenologia nasceu como uma Psicologia das essências ou, conforme Husserl, Psicologia eidética.
Ora, em 1900, quando era professor em Göttingen, Husserl publica as Investigações Lógicas, obra na qual estão lançadas as bases de um programa de psicologia eidética. Dentre os ouvintes dos cursos de Husserl encontrava-se Georg Elias Müller, que era diretor do Instituto de Psicologia da mesma universidade de Husserl. Müller imediatamente intuiu, na concepção de Husserl, algo que a psicologia descritiva de Brentano não permitia, a saber, um trabalho empiriológico. Precisamente, dado que, para Brentano, todos os objetos são imanentes à consciência, não há como se estabelecer uma investigação empírica desses objetos, menos ainda das intuições que os originaram. Mas, a partir do momento em que Husserl afirma serem os objetos unidades transcendentes, abre-se a possibilidade para uma intervenção empírica. O objetivo dessa intervenção, segundo Müller, não seria a descrição do objeto, nem tampouco a descrição das intuições (ou essências) desde onde os objetos foram constituídos. O que interessava a Müller, em verdade, era a caracterização dessas intuições enquanto leis ou causas de nossos atos e subseqüentes objetos – o que, evidentemente, Husserl considerou um disparate. Afinal, na contramão do projeto husserliano, Müller propõe uma genética dos objetos a partir das intuições (e não uma descrição das intuições), o que significa abortar o caráter intencional (vivido) daquelas intuições em proveito de um modo objetivista de apresentá-las – positivismo lógico de Müller, ao qual Husserl, assim, como mais tarde Perls, não se cansou de censurar.
Tecnicamente, o que Müller procurava fazer era, a partir dos objetos (que eram percepções representadas na forma de experimentos), tentar identificar quais eram as constantes envolvidas (que muito antes do que intuições vividas, tornam-se estruturas objetivas). Ora, Max Wertheimer era orientado por Muller, e com ele desenvolveu um experimento que consistia em duas ranhuras, uma vertical e outra inclinada mais ou menos 25 graus em relação à vertical. Quando a luz era projetada primeiro através de uma ranhura e, depois, através da outra, a fenda iluminada parecia deslocar-se de uma posição para a outra, se o tempo entre a apresentação das duas luzes se mantivesse dentro de limites adequados. Wertheimer calculou os limites de tempo em que o movimento era percebido. O intervalo ótimo situava-se em torno de 60 milissegundos. Se o intervalo entre as apresentações excedesse cerca de 200 milissegundos, a luz era vista, sucessivamente, primeiro numa posição e depois noutra. Se o intervalo fosse demasiado curto, 30 milissegundos ou menos, as duas luzes pareciam estar continuamente acesas. Wertheimer deu a esse tipo de movimento o nome de fenômeno phi. Tratava-se de um fenômeno que não poderia resultar de estimulações individuais, uma vez que a adição de estimulações estacionárias não poderia redundar, mesmo para o mais ardoroso associacionista, numa sensação de movimento. Em 1912, quando publica sua tese, Wertheimer explica o fenômeno phi em termos muito simples: trata-se de algo para o qual não há explicação, mas a partir do qual podemos explicar nossa percepção objetiva: primado do todo em relação às partes. Eis aqui um exemplo concreto da objetivação das vivências fenomênicas que, de ora em diante, passaram a ser investigadas como se fossem unidades (e não partes, como acreditava Wundt) de sentido autônomas, independentes de minha subjetividade, de meus vividos no tempo. Depois de se mudar para Frankfurt, Wertheimer encontrara dois colegas que, não obstante terem sido formados em escolas distintas, compartilhavam com ele o projeto de uma investigação (a partir de experimentos empíricos) disto que a psicologia eidética de Husserl havia legado, a saber, as essências ou intuições (de totalidades), que eles melhor preferiram tratar como estruturas objetivas chamadas gestalten. Juntos, eles se lançaram na empreitada que consiste em se determinar as características elementares das gestalten que, dessa forma, deixavam de ser vividos psíquicos, para se tornar a causa objetiva de nossos atos e respectivos objetos. E eis que nascia, então, a Psicologia da Gestalt.


III

Apesar de ter sido concebida a partir da psicologia eidética de Husserl, a Psicologia da Gestalt não se estabeleceu como uma psicologia descritiva, voltada para as nossas vivências, que são as essências elas próprias. Mesmo aceitando a tese de que todo objeto psíquico estava precedido por um sentido de totalidade (e não por partes associadas) – qual seja esse sentido, as essências ou fenômenos psíquicos - eles não consideravam essas essências vividos da subjetividade, mas, sim, configurações autônomas. De certo modo, as essências eram entendidas como estruturas sem interior. Razão pela qual, a unidade delas tinha de ser explicada. Eis em que sentido, inspirada no projeto de Georg Elias Müller, a Psicologia da Gestalt nasceu antes como uma psicologia genética, tal como a psicologia de Wundt, muito embora se opusesse frontalmente à genética wundtiana (e que consistia em se explicar os objetos a partir da associação de percepções de dados isolados). Importava a Max Wertheimer, Wolfgang Kölher e Kurt Koffka (os quais compõem a primeira geração da Psicologia da Gestalt) compreender o que eram as essências enquanto “fatos” elementares, independentemente de nosso psiquismo. O que implicava a introdução de uma postura “objetivista” na consideração das essências ou intuições, de ora em diante denominadas de gestalten. Ora, para Husserl, assim como para Brentano, nossas intuições não são ocorrências às quais podemos atribuir características positivas. Elas são vivências de cada um de nós e desde onde nossos atos podem constituir objetos. Razão pela qual, ao considerar as essências fatos elementares que deveriam ser esclarecidos em seus traços característicos, os psicólogos da Gestalt transformaram-nas em quase-objetos. O que é algo extremamente problemático, uma vez que, dessa forma, não só se abortava o caráter vivido (e, nesse sentido, intencional) das gestalten, quanto se reavivava uma dificuldade crônica, que se impunha a toda a tradição genética desde o século XVII. Qual seja essa dificuldade, o esclarecimento do tipo de vínculo que haveria de vigorar entre nossas representações ou objetos psíquicos (no caso, nossas percepções) e sua causa objetiva (no caso, as essências entendidas como gestalten). Nem bem havia nascido, a Psicologia da Gestalt já tinha de lutar contra essa doença clássica, que incomodava os filósofos há séculos.
De fato, depois de 1912, Wertheimer cada vez mais se distanciou dos motivos fenomenológicos de Husserl – e que consistiam na descrição do modo como os atos, a partir dos vividos intencionais (que são as essências ou fenômenos psíquicos), constituem objetos – para se dedicar a um programa genético de explicação dos objetos (da percepção) a partir de estruturas autóctones – que são as gestalten. Isso implicava o árduo trabalho de se determinar, primeiramente, o que eram tais estruturas. O que efetivamente Wertheimer fez e divulgou por meio de um conjunto de enunciados empíricos que se tornaram uma marca distintiva da primeira geração da Psicologia da Gestalt. Em 1923, Wertheimer apresentou o que ele chamou de princípios da organização da percepção, os quais costumam ser testados mediante um tipo de prova demonstrativa (que não vem ao caso aqui reproduzir). Esses princípios e suas respectivas definições são os seguintes: i) proximidade: os elementos próximos no tempo ou no espaço tendem a ser percebidos juntos; ii) similaridade: sendo as outras condições iguais, os elementos semelhantes tendem a ser vistos como pertencentes à mesma estrutura; iii) direção: tendemos a ver as figuras de maneira tal que a direção continue de um modo fluido; iv) disposição objetiva: quando vemos um certo tipo de organização, continuamos a vê-lo, mesmo quando os fatores de estímulo que levaram à percepção original estão agora ausentes; v) destino comum: os elementos deslocados, de maneira semelhante de um grupo maior, tendem eles próprios, por sua vez, a ser agrupados; vi) pregnância: as figuras são vistas de um modo tão “bom” quanto possível, sob as condições de estímulo, de onde se segue que a boa figura é uma figura estável., que não pode se tornar mais simples ou mais ordenada por um deslocamento perceptual. Ora, é preciso não confundir aqui a gestalt, enquanto essa tendência das partes a assumirem uma certa configuração – que é o que os enunciados empíricos de Wertheimer apresentam - e minhas percepções efetivas, que são os objetos psíquicos propriamente ditos. As gestalten estariam mais próximas daquilo que os fenomenólogos chamavam de essências intuídas ou fenômenos psíquicos. Todavia, não obstante elas estarem caracterizadas como totalidades anteriores às partes, elas implicam antes uma certa “realidade” transcendente ao nosso psiquismo. Mais do que isso, trata-se de totalidades que se impõem e formatam nossos atos e, conseqüentemente, nossas representações objetivas – o que lembraria, de certo modo, a noção clássica de coisa extensa, da metafísica cartesiana. Somente a última lei, que fala de uma “boa forma” – a qual não pode existir independentemente da subjetividade, porquanto é a própria subjetividade o critério do que seja “bom” - ainda mantém vínculo com a noção de essência enquanto vivido subjetivo, que é a forma como a fenomenologia propõe a noção de essência . De resto, as gestalten já são outra “coisa”, leis de organização gravitando entre nossos vividos (tal como compreendidos pela fenomenologia) e nossos objetos efetivamente representados (por meio de nossos atos).
Ora, essa inclinação objetivista de Wertheimer acabou lhe rendendo complicações epistemológicas. Afinal, se nossas percepções (ou objetos psíquicos) estão orientadas desde estruturas autônomas (que não são nossas vivências, conforme crê o fenomenólogo, mas, sim, gestalten, tendências de agrupamento das partes de um certo contexto segundo leis próprias), o que assegura a validade objetiva de nossas percepções? Como podemos saber que nossas percepções são correlativas a uma gestalt específica? A resposta para essa questão foi estabelecida nos termos de uma teoria do isomorfismo. Ou seja, para Wertheimer, é como se houvesse, entre essas essências (que são as gestalten) e nossos atos (e respectivos objetos), uma forma comum, uma proporcionalidade um para um (1:1). Mas o isomorfismo, em vez de uma solução, acabou se tornando mais um problema, afinal, qual é essa forma comum, como podemos averiguá-la?
Kurt Koffka evita falar da teoria do isomorfismo. Ele tenta resolver o problema da relação entre nossas percepções e as gestalten apelando para uma postura que ele próprio denominou de fisicista. Segundo Koffka, a diferença entre nossas percepções e as gestalten diz respeito apenas a uma diferença de ótica. Se olharmos por uma ótica molar, o que iremos encontrar é o domínio ou ambiente comportamental. É nele que estão sitiadas as nossas representações objetivas. Trata-se do conjunto de percepções e condutas que estabelecemos de maneira sensório-motora e simbólica. Mas, por outro lado, se nos servirmos de uma ótica molecular, o que encontraremos é o ambiente que Koffka chama de geográfico. Neste, localizamos todos os eventos fisiológicos, químicos e físicos que envolvem nosso organismo e o meio. Ora, acredita Koffka, tanto no ambiente comportamental quanto no ambiente geográfico estamos diante do mesmo fato, apenas que segundo óticas diferentes: molar ou molecular. E é essa diferença de ótica que nos permite pensar a diferença entre nossas representações objetivas (nível molar ou ambiente comportamental) e as gestalten (nível molecular ou ambiente geográfico). Em última instância, elas são a mesma coisa, razão pela qual, um mapeamento dos circuitos nervosos é complementar a uma descrição de nossas representações objetivas.
Köhler não descarta o fisicismo de Koffka, apenas acha que a diferença de óticas não esclarece o principal, que é discriminar em que sentido o ambiente comportamental e o ambiente geográfico são comparáveis. Por essa razão, Köhler retoma a teoria do isomorfismo de Wertheimer, mas tentando esclarecer em que consiste a aludida proporcionalidade entre as gestalten e as nossas representações objetivas. Para tal, Köhler resgata de Edgar Rubin - um discípulo de Husserl em Göttingen e que, à diferença de Müller, manteve-se fiel ao projeto de uma psicologia eidética – o binômio “figura-fundo”. O interesse de Rubin, em verdade, era compreender nossas vivências de percepção espacial. Ou, por outras palavras, Rubin queria entender as essências implicadas no processo de construção de representações objetivas do espaço. E, por sugestão daquilo que aprendera com as Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo de Husserl (1994), Rubin construiu uma teoria que muito auxiliou Köhler.
Husserl compartilhava com a tradição, que remonta a Kant, o entendimento de que a percepção de um objeto material sempre é precedida pela representação da unidade de nossas vivências materiais no tempo. Para que tal representação se dê, entretanto, é de fundamental importância nossa intuição sobre a unidade do tempo, a qual Husserl descreveu nos termos de uma teoria sobre a consciência interna do tempo. Conforme essa teoria, não devemos entender o tempo como uma forma a priori da sensibilidade (da percepção interna especificamente), tal como postulava Kant. Se é verdade que o tempo tem a ver com a subjetividade, isso não quer dizer que subsista nela como uma forma. Tempo é sim a experimentação que a consciência tem de seu próprio fluir, o qual se apresenta, por um lado, como um continuum em constante mutação (a cada nova vivência, a vivência antiga continua vinculada à minha existência, apenas que de forma modificada, como um perfil da primeira e, sucessivamente, como perfil do perfil e assim por diante). Por outro lado, esse fluir configura-se como uma rede de perfis retidos em torno de cada vivência atual, de modo a se estabelecer, para essa vivência, uma espécie de horizonte em dupla direção: passado e futuro. E eis em que sentido, para Husserl, em cada vivência material, a consciência pode intuir um sentido de totalidade, que é sua própria vida em constante escoamento ou, numa só palavra, tempo. Husserl, ademais, vai dizer que essa experimentação que a consciência tem de seu próprio fluir é a forma mais elementar de nossa vida psíquica (e, nesse sentido, de nossa intencionalidade), porquanto estabelecemos, sem a necessidade do recurso a um ato psíquico, um horizonte de perfis para nossas vivências atuais (as quais sempre requerem um ato psíquico). Razão pela qual Husserl vai chamar a experiência de apercepção da unidade do próprio fluir de intencionalidade operativa (e não de ato, como no caso de nossas demais intuições). Por meio dela, deflagramos um “campo de presença” de “perfis retidos” em favor de “vividos atuais” . Ora, para Husserl, é essa experimentação que a consciência tem de si mesma como campo de presença junto a um vivido material que permite que esse vivido adquira um sentido que, por si só, ele não poderia ostentar. Tal significa que, se eu vejo uma face e reconheço se tratar da face de um cubo, é porque, concomitantemente à percepção material desse dado, comparecem perfis retidos de outras vivências, que então eu experimento como uma só vida, e exprimo como um só objeto. Eis em que sentido, para Husserl, toda percepção espacial está alicerçada na experiência temporal que a consciência tem de si mesma.
Em 1912, Rubin toma para si o desafio de descrever, a partir de experiências de percepção espacial (e não a partir de experiências de constituição de objetos temporais, como seria mais fácil), esse primado da intuição temporal. E eis, então, que introduz as expressões “figura” – para designar o correlato objetivo do ato de visar, em um dado material, uma unidade de sentido – e “fundo” – para indicar a ocorrência intuitiva de um campo de presença formado por perfis que, como tais, não são experimentados materialmente. No experimento do vaso, Rubin mostra como a representação de uma certa figura (por exemplo, o vaso), depende de que eu ofereça, para um certo dado material (a parte branca do desenho), um certo horizonte (fundo) de perfis, em detrimento dos outros dados materiais presentes ao lado do dado visado (e que assim se tornam quase imperceptíveis, como é o caso das partes pretas, no experimento de Rubin). Ademais, em favor de sua teoria, Rubin mostra que posso tranqüilamente visar, na mesma base material, uma outra figura, desde que eu escolha outro dado material, fazendo desaparecer o dado de antes em proveito de outros perfis retidos. E eis que posso, na mesma configuração material em que percebi um vaso, reconhecer duas faces desenhadas de perfil.
Pois bem, Köhler apoderou-se das experiências de Rubin (que só foram publicadas em 1915), mas para ressaltar algo que não necessariamente tinha a ver com os propósitos de Rubin, a saber, que em toda configuração material, há elementos que são figura e outros que são fundo, podendo ser intercalados, em alguns casos. Ao fazer essa interpretação, Köhler desprezou a importância do elemento intencional (que é a configuração subjetiva de um campo de perfis temporais), como se ele não fosse necessário para a caracterização de uma figura ou de um fundo. Mais do que isso, Köhler afirmou ser o arranjo figura-fundo algo característico tanto das gestalten, quanto de nossas representações psíquicas. E eis em que sentido podia falar de um isomorfismo entre as gestalten e os objetos de nossa percepção.
Ora, não tardou muito para que o próprio Köhler se desse por conta de que o programa de investigação assumido pela Psicologia da Gestalt alterava muito pouco aquilo que a própria Psicologia da Gestalt tanto procurava criticar, a saber, o atomismo das teorias associacionistas. A única diferença que os gestaltistas conseguiram introduzir era a consideração das sensações não como partes, mas como totalidades. O que não alterava o quadro de conseqüências, uma vez que os objetos continuavam sendo concebidos como a representação segunda de uma positividade de primeira ordem, completamente desprovida de interioridade e, nesse sentido, estranha ao homem. E talvez fosse por isso que Husserl dissesse, num tom de desencanto, que “tanto a psicologia atomística como a estrutural conservam, no mesmo sentido primordial, um naturalismo psicológico” (1913: 390).


IV

Não se passaram muitos anos depois da publicação das Investigações Lógicas (ocorrida em 1900) para que Husserl percebesse que, se em algum sentido a fenomenologia deu caução a essa forma de naturalismo, que é a Psicologia da Gestalt, ele próprio tinha responsabilidade nisso. Afinal, o projeto de uma fenomenologia escrita como psicologia eidética deixava na bruma o sentido preciso da “eidética”. Por um lado, Husserl era claro ao dizer que as essências eram fenômenos psíquicos, efetivamente intuídos pelos sujeitos. Mas, por outro, dizia serem tais essências ocorrências intersubjetivas – o que dava margem a que se pensasse em um tipo especial de natureza, que em vez de concebida como coleção de partes, devesse ser entendida como um conjunto de totalidades autóctones. E é para reparar essa ambigüidade que Husserl, nos anos seguintes, se ocupou da consecução de uma fenomenologia que, em vez de psicológica, se tornaria uma verdadeira filosofia. Husserl entendeu a necessidade de se suspender o naturalismo recalcitrante em suas posições iniciais, em favor de uma abordagem verdadeiramente descritiva, que não partisse da suposição de nenhuma natureza preestabelecida (fosse ela entendida como subjetividade psicofísica, fosse ela entendida como estrutura ou gestalt), mas da experiência intuitiva ela mesma. Por outras palavras, Husserl não queria partir de uma certa representação objetiva (um ente, uma substância, uma coisa...), mas das “vivências” desde onde toda e qualquer representação fosse possível. Para tanto, seria preciso se resguardar a primazia dessas vivências em relação às representações objetivas, o que Husserl julgou poder fazer assumindo um ponto de vista transcendental. Afinal, a abordagem transcendental não se dirige a objetos, mas ao “modo” como conhecemos objetos. Eis em que sentido, então, Husserl propôs uma “redução” do domínio da fenomenologia, o que significou limitá-la à descrição estritamente dinâmica dos processos de constituição de objetos a partir de intuições (redução eidética) e à descrição estritamente dinâmica da vivência (subjetiva e intersubjetiva) dessas intuições (redução transcendental). De onde se depreendeu uma fenomenologia das essências, agora entendidas não como vividos “dos” sujeitos psicofísicos, mas como vividos constituidores da subjetividade empírica. Trata-se, em verdade, de processos transcendentais, que Husserl reuniu sob o título de “ego transcendental”, querendo com isso designar não a minha individualidade, mas a minha implicação no todo. O “ego transcendental” não é uma substância – no interior da qual poderíamos encontrar o universo inteiro -, mas uma dinâmica, um processo que não existe independentemente das partes envolvidas (subjetividades empíricas, objetos transcendentes), muito embora não se resuma a essas partes, consistindo antes na relação que as faz existir. O “ego transcendental”, nesse sentido, é o “a priori da correlação”, o “a priori do campo”.
Ora, mais do que as duras críticas que Husserl dirigiu à noção de gestalt, a proposta de uma fenomenologia como descrição do campo de correlação, deu novo alento a Psicologia da Gestalt, muito embora já não se tratasse da mesma escola. Podemos inclusive falar de uma segunda geração, muito embora nem todos os envolvidos se autodenominassem psicólogos da gestalt. De certo modo, é o próprio Köhler quem começa a transformação, a partir do momento que admite não fazer sentido se buscar na “natureza” essências como “gestalten”. As condutas (dos antropóides, por exemplo), não são a representação de uma essência que estaria a meio caminho entre o mundo físico e o psiquismo de cada qual. A conduta é muito mais do que isso; ela é o próprio campo no interior do qual revela-se uma constituição física particular e uma certa “cultura” de representações, que é nosso psiquismo. Essa mudança de ótica repercutiu enormemente junto ao trabalho de jovens pesquisadores, como Kurt Lewin, que reconheceu no tema do “campo” a melhor formulação da noção de gestalt. Essa deixa de ser uma configuração específica da natureza – e a que nosso psiquismo procuraria representar de modo objetivo - para se tornar a própria relação de constituição e diferenciação de nossa individualidade frente aos outros e ao mundo. De onde Lewin intui a necessidade de uma psicologia escrita nos termos de uma teoria de campo.
Lewin retoma de Koffka a distinção “mundo geográfico e mundo do comportamento (também chamado de fenomênico, numa alusão ao psiquismo)”. Mas, diferentemente de Koffka, Lewin não os considera dois lados de uma mesma moeda, que para Koffka seria a realidade física. Isso porque a noção de realidade física faz crer que, em última instância, tanto o mundo geográfico, quanto o mundo do comportamento, estão regidos por leis ou estruturas extemporâneas à efetivação das condutas e dos eventos materiais. Contra o que Lewin introduz a noção de espaço vital, noção essa que, em certo sentido, procura corresponder à noção fenomenológica de campo. O espaço vital diz respeito à totalidade dos fatos que determinam o comportamento do indivíduo num certo momento. Ele inclui a pessoa e o meio, e representa a totalidade dos eventos possíveis. O que não quer dizer que Lewin aceitasse a pertinência de relações de causalidade entre a pessoa e o meio. Ao contrário, quando fala de espaço vital, Lewin tem em mente a configuração espontânea de fronteiras (topológicas e não quantitativas) e direções de deslocamentos (hodológicos e não geométricos), por meio das quais, junto ao meio circundante, uma pessoa (que tanto pode ser um indivíduo, como um grupo) se singulariza. Por outras palavras, o espaço vital tem a ver com o processo amplo de emergência de figuras no interior de um campo, que é a gestalt. Aquelas fronteiras (que não são áreas delimitadas, mas regiões de permeabilidade entre as partes e o todo) e aqueles deslocamentos (que não são propriedades físicas descritas geometricamente, mas correlações de força no interior de um espaço topológico) não são leis extemporâneas, ou estruturas transcendentes às partes envolvidas nesse campo que é o espaço vital. Ao contrário, elas são as essências fenomenológicas, que Lewin prefere chamar de constructa. Uma constructa, seja ela uma fronteira de permeabilidade ou uma certa valência de nosso deslocamento no interior de um todo, não é, portanto, uma estrutura a priori ou física, tampouco um evento privado de minha subjetividade empírica. A constructa é uma forma dinâmica de configuração das partes no todo. Entretanto, não obstante a teoria de campo fazer jus à demanda husserliana de uma fenomenologia devotada à descrição de uma dinâmica, o recurso de Lewin à matemática topológica e a física hodológica acabaram por solapar algo muito caro à fenomenologia, a saber, a egoidade dos processos transcendentais – e que a fenomenologia designa por meio da noção de intencionalidade ou motivação. Ainda que Lewin tivesse se ocupado de demarcar pessoas, ainda que falasse de valências específicas de um movimento de deslocamento no interior do todo, essas referências à subjetividade não conseguiram caracterizar a experiência de apercepção da unidade de todo – que é o que propriamente caracteriza a intuição fenomenológica. É como se Lewin falasse de pessoas que não são ninguém, de um mundo no qual não se está, pois em momento algum ele se deu o trabalho de descrever a “sua” implicação no todo. Ora, se é verdade que a fenomenologia suspende o ponto de vista do sujeito psicofísico (que é um ponto de vista representado, constituído a respeito de nós mesmos), isso não quer dizer que ela tenha eliminado a subjetividade. O importante aqui é percebermos que a subjetividade não é um estado, uma qualidade ou uma ação. Menos ainda uma substância. A subjetividade é nossa participação no todo. O que efetivamente Lewin não descreveu, malgrado reclamar para sua teoria o status de fenomenologia.
Ora, diferentemente de Lewin, Kurt Goldstein sempre foi muito atento à demanda de “subjetividade” estabelecida pelo discurso fenomenológico, não obstante só admiti-lo tardiamente. Por outras palavras, Goldstein sempre se preocupou em demarcar o lugar do sujeito da experiência – o qual não se confunde com o eu psicofísico ou com qualquer outra representação objetiva produzida no âmbito de nossas teorias psicológicas. O sujeito da experiência é, para Goldstein, uma dinâmica de auto-regulação (self-actualization) ou, numa alusão não confessa à fenomenologia, “essência” (1933: 267).
A rigor, Goldstein nunca se considerou um fenomenólogo – muito embora, em sua autobiografia (1967), publicada postumamente, admitisse que suas principais teses eram muito semelhantes às de Husserl. O interesse pela noção fenomenológica de subjetividade deu-se por meio de Adhèmar Gelb, assistente de Köhler e leitor de Husserl. Nas décadas de 20 e 30, Gelb e Goldstein não só trabalharam juntos, quanto publicaram estudos sobre o problema gestaltista da relação figura-fundo, o qual, justamente, Köhler importou da fenomenologia. A preocupação principal de Goldstein, nessa época, era compreender os distúrbios de linguagem dos soldados vítimas de lesões cerebrais contraídos na Primeira Guerra Mundial. E no artigo Analyse de l’aphasie et étude de l’essence (1933), ele esclarece precisamente, em que sentido está a entender a relação figura-fundo. Esta não é, assim como para Köhler, a lei constitutiva dessas formações espontâneas, que são as gestalten físicas, ou a forma específica de nossas representações mentais. Figura-fundo tem antes a ver com o modo de funcionamento do organismo como um todo. Não apenas isso, figura-fundo tem a ver com a dinâmica de inserção do organismo no meio. O que é o mesmo que dizer que, para Goldstein, a relação figura-fundo não diz respeito a uma certa objetividade, mas a uma certa vivência, a uma certa operação, que ele denominava de “essência”. E, tal como Husserl, Goldstein compreende essência não como uma coisa (sentido ontológico), ou como uma finalidade ou tarefa específica (sentido teleológico). A essência é, segundo o próprio Goldstein, um princípio de conhecimento, nos termos do qual deveríamos poder descrever o organismo que efetivamente somos (1933: 267).
Ora, a descrição dessa essência vivida – que é a implicação global das partes no todo do organismo e, correlativamente, do organismo no meio – fez mais que simplesmente reaproximar os conceitos gestálticos (sobremodo o conceito de figura e fundo) de sua matriz fenomenológica. Ela também, e principalmente, se prestou à elaboração de uma teoria que se tornou conhecida pelo nome de “organísmica”. O que não nos autoriza a pensar que Goldstein estivesse falando de uma certa “entidade” empírica, correlativa do eu psicofísico. Quando fala em organismo, Goldstein tem em conta aquelas essências, que são nossas vivências de pertencimento a uma totalidade, que é a subjetividade que constituímos junto ao meio. A melhor ilustração dessa noção de organismo, Goldstein a fornece descrevendo o comportamento de seus pacientes acometidos de lesão cerebral. Segundo observou Goldstein, tal comportamento só podia ser entendido quando vinculado a um exame da matriz total do comportamento do paciente. O que, no começo, parecia ser um resultado direto da lesão, revelava-se, no decurso da observação (na qual Goldstein se envolvia pessoalmente), uma reação indireta, uma tentativa de ajustamento das conseqüências da lesão (perda da capacidade de abstração) ao mosaico da vida por inteiro. Nesse sentido, a mesma lesão física podia implicar uma variedade enorme de síndromes do comportamento. De onde Goldstein inferiu a tese de que não somos, primitivamente, o resultado de causas estruturais (sejam elas atômicas ou gestálticas), mas uma dinâmica de respostas à estímulos ou de equalização de contingências que desafiam nossa própria experimentação como totalidades.
Goldstein, entretanto, reconheceu que essa dinâmica se dá em dois níveis diferentes. Por um lado, temos o nível vital ou conservativo, que consiste nos sistemas internos de compensação fisiológica, os quais funcionam como um todo inter-relacionado (onde o que acontece a uma parte tem implicação no todo). O que poderia sugerir a definição gestaltista de todo. Porém, isso não é verdadeiro. Pois, enquanto a noção gestaltista de todo sinaliza para um sistema de equilíbrio desprovido de interioridade (trata-se apenas de um equilíbrio autóctone das partes), a noção de todo de Goldstein requer uma interioridade, que é o poder de centragem das células num organismo (1940: 300-2). Essa centragem não é senão a capacidade de cada célula para “conservar” o “equilíbrio (homeostase)” entre sua própria concentração interna (razão entre suas partículas solventes e suas partículas solúveis) e a concentração das células vizinhas. O que implica uma sorte de comunidade, que se estabelece por meio da liberação e absorção de íons entre as células envolvidas. Em certo sentido, a noção de todo de Goldstein retorna à noção fenomenológica de todo, porquanto requer uma centragem que é, simultanemante, descentramento, assim como a subjetividade fenomenológica é, concomitantemente, intersubjetividade.
O outro nível da dinâmica organísmica é aquele que Goldstein denomina de valorativo ou funcional. Ele diz respeito aos sistemas de contato, sensoriais e motores, pelos quais o organismo obtém do meio o que precisa para atender às suas necessidades vitais. Goldstein descreve aqui o organismo como um processo de individuação ou auto-realização (self-actualization) no meio (1939: 146). Um organismo sexualmente impulsionado realiza-se no coito, um organismo faminto na alimentação. Goldstein resgata aqui um outro tema fenomenológico sobre o qual a Psicologia da Gestalt calou, a saber, nossa intencionalidade (seja ela operativa, como no caso de nossa auto-realização sensório motora, ou de ato, como no caso de nossas condutas simbólicas). Enquanto totalidades dotadas de interioridade, não somos seres isolados do meio ou, então, passivos frente a ele. Somos capazes de realizar, na transcendência, modos de ampliação de nossa existência organísmica. Entretanto, faltou a Goldstein uma reflexão mais específica sobre o sentido dessa dinâmica de auto-realização, o que exigiria uma teoria da subjetividade, algo que só uma investigação sobre o caráter temporal de nossa dinâmica organísmica poderia apurar . De toda sorte, a descrição goldsteiniana do organismo como um processo de individuação ou auto-realização, mostrou que não só não somos passivos, como o mundo não é para o organismo um conjunto de “leis” físicas e químicas, mas uma sorte de sinais e significados. Por conta disso, podemos nos colocar de acordo com ele. “Em circunstâncias adversas, o organismo desenvolve mecanismos adaptativos que podem ser mais funcionais, ou menos. Um sintoma é, antes de mais nada, uma forma de ajustamento” (Tellegen, 1984: 38-9).


V

Ora, se tivermos em conta os desdobramentos da teoria de Goldstein junto à Gestalt-terapia, talvez já não pareça estranho que, não obstante assumir o nome Gestalt, Perls e seus colaboradores. tivessem recusado quase todos os enunciados empíricos da Escola de Frankfurt. Da mesma forma, talvez já não pareça estranho que Perls tivesse considerado sua própria teoria uma psicologia eidética, tema da fenomenologia. Afinal, foi o próprio Goldstein que, ao criticar a Psicologia da Gestalt e resgatar o ponto de vista das essências, abriu essa possibilidade. Mas isso é tema para um outro trabalho.


REFERÊNCIAS

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Este artigo apresenta um estudo sobre a maneira como Paul Goodman se serviu do formato transcendental da obra fenomenológica de Edmund Husserl para estruturar, nos termos de uma teoria do self, as idéias com as quais Frederick Perls propôs uma terapia gestáltica. Nesse sentido, o estudo ora apresentado resgata a importância da teoria fenomenológica do tempo para se compreender as funções e dinâmicas do self descritas na obra Gestalt Therapy (1951).

SELF AND TEMPORALITY
This article presents a study on the way Paul Goodman made use of the transcendental format of the phenomenological work of Edmund Husserl to structure, in terms of a theory of the self, the ideas with which Frederick Pearl proposed a gestaltic therapy. In that sense, this study rescues the importance of the phenomenological time theory so that one can understand functions and dynamics of the self, described in the work Gestalt Therapy (1951).

MÜLLER, M.J.; GRANZOTTO, R.L. “Self e temporalidade”. IGT NA REDE. Vol. 1, nº1, Artigo 6. URL: www.igt.psc.br/ojs/viewarticle.php?id=34&layout=html


SELF E TEMPORALIDADE


Ao apresentar, na obra Gestalt-terapia (1997), essa proposta de psicologia formal, denominada “teoria do self”, síntese de conceitos que interliga as noções de contato, de awareness e de ajustamento criativo, e que tem na fenomenologia seu fundamento epistemológico, Perls, Hefferline e Goodman fazem questão de frisar que, por self, eles não estão entendendo alguma forma substancial ou entidade psicofísica, mas, sim, “a função de contatar o presente transiente concreto” (1997: 177). Trata-se, nesse sentido, de uma referência a um processo – e não a uma realidade empírica. Mas, quando falam em processo, o que exatamente têm em mente?
Contatar o presente transiente concreto é uma atividade elementar que envolve nossa existência global, precisamente, nossa inserção no meio, dizem Perls e Goodman. Trata-se, segundo eles, do modo como, a partir de minha fisiologia primária – a qual envolve não apenas os processos físicos e biológicos de meu corpo, mas o modo pessoal segundo o qual esses processos são vividos por mim - encontro (no meio ambiente) possibilidades com as quais me identifico ou às quais me alieno, de modo a promover o crescimento do meu organismo e a transformação do meio. De onde se segue a definição do self (1997: 179) não como conjunto de funções circunscritas aos meus tecidos celulares, mas, sim, como dinâmica de trocas energéticas entre tais tecidos e o meio, de modo a permitir, por um lado, a conservação de algumas formas de organização anteriores (junto às quais me experimento como aquilo que permanece) e, por outro lado, a destruição de formas antigas e assimilação de novas formas (o que permite que eu me experimente como alguém integrado ao meio ambiente). Trata-se, nesse sentido, da experiência de um continuum que, entretanto, modifica-se a cada instante – o que não é senão a definição fenomenológica da infraestrutura temporal do processo que Husserl denominou de ego transcendental (1931: §37). O que talvez explique por que razão Perls e Goodman tenham dito, na obra inaugural da Gestalt-terapia, que o self é um processo temporal (1997: 178). Mais do que isso, talvez esteja aqui a razão pela qual, para Perls e Goodman “é provável que a experiência metafísica do tempo seja primordialmente uma leitura do funcionamento do self” (180). No presente trabalho, pretende-se dilucidar em que sentido podemos entender o self como um processo, em que medida o tempo vivido é o sentido último desse processo e, por conta disso, de que maneira a teoria fenomenológica do tempo nos ajuda a entender as várias dinâmicas do self, muito especialmente a formação da neurose.


As funções do self

Para Perls e Goodman (1997:184), a descrição do self – ou, o que é a mesma coisa, a descrição dos processos que constituem essa reedição (temporal) criativa (inovadora) das trocas energéticas entre minha materialidade física e o meio – é um trabalho fenomenológico. Afinal, trata-se da descrição do que há de essencial na experiência de nós mesmos, junto e diante dos outros e das coisas mundanas. Por essa razão, Perls e Goodman propõem não uma teoria da personalidade, ou uma metapsicologia, mas uma psicologia formal, que não é senão uma descrição fenomenológica desse processo de apercepção da própria unidade no mundo – e a que denominaram de self. Trata-se, conforme eles, “da descrição e análise exaustivas de estruturas possíveis (essências)”, por cujo meio poderíamos nos representar uma certa regularidade no processo de crescimento (retomada criadora) do organismo (184). E eis por que, a partir da análise do modo como a troca energética (que pode ser física, química, biológica, emocional, econômica ou política) se polariza (nos meus tecidos, na minha ação, ou no próprio meio), Perls e Goodman (183-9) propuseram a discriminação entre três funções ou operações básicas do self e que, fenomenologicamente, poderíamos chamar de essências do self, a saber, a função id, a função ego e a função personalidade.
Essa confessa adesão ao modelo descritivo-formal da fenomenologia implicou, dentre outras conseqüências, que o self não designaria, ao menos em seu sentido principal (como dinâmica temporal das trocas energéticas), uma substância individual (um ente que subsistiria em si, como algo completamente separado do meio). Tratar-se-ia de um campo de generalidade, no interior do qual eu divisaria minha própria individualidade, bem como minha integração no todo. O que não quer dizer que, para Perls e Goodman, o self fosse algo impessoal. Ao contrário, não obstante se tratar de uma generalidade, tratar-se-ia da “minha generalidade”, ao mesmo tempo pessoal, mas experimentada muito além dos limites disso que a psicologia clássica entende por individualidade (a saber, corpo físico, alma, interioridade, dentre outros conceitos que não são senão o correlativo da tese metafísica da existência de um outro homem no interior desse homem mundano que efetivamente somos). Perls e Goodman (1997: 182, n.4), recorrem a uma distinção lingüística para caracterizar a pessoalidade dessa generalidade. Trata-se da distinção que, muito especialmente na língua grega, fazemos entre o emprego de verbos na voz ativa (que indica que a ação foi praticada por um sujeito), o emprego de verbos na voz passiva (que indica que o sujeito recebeu uma ação) e na voz média (em que o sujeito experimenta a si mesmo na ação). Enquanto os empregos de verbos nas vozes ativa e passiva implicam uma separação possível entre o sujeito da ação e a ação descrita pelos verbos (uma vez que tal ação poderia admitir um outro sujeito, sem, entretanto, transformar-se noutra ação), o emprego de verbos na voz média não permite essa separação. Afinal, esse emprego designa ações que são, ao mesmo tempo, a maneira específica segundo a qual um certo sujeito se constitui como tal. Não se trata de uma ação do sujeito sobre si mesmo, mas da gênese desse sujeito na ação. Ora, o self é o caráter médio de um certo conjunto de processos sensório-motores e linguageiros. Ele é essa vivência de coesão que se exprime junto a esses processos e a que denominamos de “minha pessoalidade”, muito embora essa pessoalidade possa ser vivenciada de diversas maneiras. Na respiração, eu sou eu mesmo, muito embora eu mal me distinga da atmosfera que inspiro e expiro. O que é diferente desse eu que decide, por alguns segundos, suspender a respiração. Ou, ainda, desse outro que, tendo experimentado a impossibilidade de existir independentemente do ar que respira, “representa-se” como um ser no mundo. E eis aqui, nessas três formas elementares de vivência da minha pessoalidade como funcionamento médio da experiência, a direção segundo a qual Perls e Goodman descrevem as operações básicas ou funções do self (1997: 178, nota 1).
Num primeiro momento, aquilo que opera no self é a função id, entendendo-se por isso a relação de homeostase ou distribuição eqüitativa de energia entre as partes envolvidas, a saber, o meio e os meus tecidos celulares. Aqui, na função id, o self não é diferente de minhas vivências proprioceptivas, interoceptivas e exteroceptivas. Todas as sensações que experimento, “ao mesmo tempo” que são minhas, são inseparáveis do meio em que ocorrem, de modo que minha vivência, de fato, está diluída ou absolutamente integrada ao meio circundante. Enquanto id, sou eu mesmo, mas um eu em situação, inseparável das coisas de que participo. Enquanto id, sou um corpo, um corpo próprio, que antes de ser conhecido (representado para mim mesmo), é vivido como volume, espessura, trânsito entre eu e o mundo. Perls e Goodman (1997: 186), definem id como um tipo de relação em que o self “surge como sendo passivo, disperso e irracional; seus conteúdos são alucinatórios e o corpo se agiganta enormemente”.
Já o “ego”, para aqueles autores (1997: 184-6), é a função de individuação do self enquanto tal. Trata-se do momento em que as trocas energéticas se polarizam em uma extremidade da relação, que são meus tecidos celulares, junto aos quais o self se faz “ação”, “decisão”, “deliberação” em favor de uma certa direção ou modo de troca energética. Eis aqui e tão somente aqui o momento em que minha existência se destaca do contexto de generalidade do qual participa, eis aqui e tão somente aqui o momento em que o self se contrai em uma certa região de minha existência de generalidade, que é a minha deliberação (seja ela motora ou da ordem da linguagem). Enquanto ego, sou um self que não simplesmente “sente”, mas que, a despeito ou em favor da minha sensibilidade, toma decisões, age segundo uma certa direção que não necessariamente preciso me representar. O ego é minha capacidade de transcendência no meio – e por cujo meio me identifico ou me alieno em relação às possibilidades que o próprio meio me oferece.
O terceiro aspecto ou função do self é a personalidade. Trata-se, para Perls e Goodman (1997: 187), de uma certa generalidade não perceptiva, na qual o self se sedimenta, tornando-se uma identidade histórica, representada, construída por meio de atos simbólicos. Nesse sentido, é importante não confundirmos tal generalidade com aquela que caracteriza a função id. Enquanto esta é da ordem da percepção, de nossa integração sensorial com o meio, a personalidade é uma generalidade virtual, formada a partir das ações, sobremodo lingüísticas, que o self estabelece por meio do ego. No modo personalidade o self identifica-se com o que o ego fez, criou a partir do meio. Nas palavras dos autores, “personalidade é o sistema de atitudes adotadas nas relações interpessoais; é a admissão do que somos, que serve de fundamento pelo qual poderíamos explicar nosso comportamento, se nos pedissem uma explicação” (187).

As dinâmicas do self

Perls e Goodman (1997: 206) também se ocuparam de mostrar que as funções do self podem ser descritas a partir de categorias emprestadas da Psicologia da Forma, exatamente, as categorias de figura e fundo. Ou seja, cada uma das funções do self caracteriza um modo específico de organização gestáltica entre os elementos envolvidos (sejam eles os meus tecidos celulares, os fenômenos mundanos, os valores culturais...). Por meio das categorias figura e fundo, Perls e Goodman almejam ressaltar o modo de funcionamento ou, simplesmente, a dinâmica própria do self.
Quando o self está polarizado como id, a figura não está propriamente definida. Quando muito, se pode dizer que a figura é essa vivência volumosa do corpo, que são nossas experiências interoceptivas (sinestésicas) e proprioceptivas (viscerais), as quais não só são inespecíficas para quem as sente, quanto raramente podem ser desvinculadas das condições do meio ambiente (altitude, quantidade de oxigênio disponível, pressão atmosférica, temperatura, velocidade do vento, dentre outros infinitos fatores que, entretanto, são experimentados de forma indeterminada). Trata-se do domínio próprio em que um dado indeterminado surge ou é acolhido como figura. Quando o self está polarizado na função ego, a figura é um ato intencional, uma ação deliberada a partir de um fundo de excitamentos, para o qual aquela ação quer ser uma resposta. Já na função personalidade, a figura não é da ordem do sensorial ou da deliberação, mas é uma certa abstração, um certo valor no qual nos alienamos sob um fundo de ações e sensibilidade.
Na função id, os autores identificam uma dinâmica que poderíamos chamar passiva, um estado de inércia, a partir do qual nosso ego pode acolher um dado como figura. Trata-se, especificamente, do momento de surgimento de uma excitação a partir de um fundo organísmico ( o que caracteriza a dinâmica do pré-contato).
Na função ego, os autores identificam, além da apreensão da figura, duas outras dinâmicas: o contato e o contato final. Pelo primeiro, devemos entender a deliberação na qual o self se polariza. Ela tanto pode ser um ato de identificação com uma possibilidade de satisfação dos excitamentos junto ao meio, como a alienação em favor de um arranjo físico-fisiológico ou sócio-econômico-cultural que se impõe a partir do meio. Trata-se, nesse sentido, do momento em que o self, na função ego, abre um horizonte de futuro, investe o mundo circundante de uma função nova. A partir desse momento, só resta ao self, na função de ego, agir. É o momento em que ele “faz” alguma coisa, polariza-se numa ação concreta (ou, conforme os autores, polariza-se na fronteira de contato, que é o limite virtual entre meus tecidos celulares e o meio). Temos aqui o contato final.
Depois disso, quando o excitamento foi aplacado pela ação do ego, o self pode “fruir”, o que significa que ele pode se polarizar numa representação (culturalmente estabelecida) daquilo que ele próprio fez. Isso significa que o self pode assumir ou se identificar com uma certa personalidade. Aqui se dá a dinâmica que Perls e Goodman denominam de pós-contato (1997: 225).
Enfim, como dizem os autores:

(n)o processo de ajustamento criativo traçamos a seguinte seqüência de fundos e figuras: 1) Pré-contato – no qual o corpo é o fundo, e o seu desejo ou algum estímulo ambiental é a figura, isto é, o ‘dado’ ou o id da experiência. 2) Processo de contato – aceito o dado e se alimentando de suas faculdades, o self em seguida se aproxima, avalia, manipula, etc. um conjunto de possibilidades objetivas: é ativo e deliberado com relação tanto ao corpo quanto ao ambiente; estas são as funções ego, 3) Contato final – um ponto eqüidistante das extremidades, espontâneo e desapaixonado de interesse com a figura realizada. 4) Pós-contato – o self diminui (1997: 232).

Ora, não obstante as categorias de figura e fundo se prestarem a mostrar que o self não é um mecanismo, uma cadeia de causas e efeitos ou de respostas complexamente reforçadas na contingência, mas, sim, a coesão espontânea do todo (que é minha existência de generalidade no meio) em proveito de diferentes funções (id, ego e personalidade) e na forma de diferentes dinâmicas (pré-contato, contato, contato final e pós-contato), a natureza específica dessa coesão espontânea não é suficientemente dilucidada por aquelas categorias. O que os próprios autores da teoria do self reconhecem, razão pela qual vão dizer que o sentido profundo das dinâmicas implícitas ao self pode ser melhor esclarecido por meio de um recurso à teoria que deu origem às categorias de figura e fundo, a saber, a teoria fenomenológica da experiência temporal. E eis por que razão, em última análise, Perls e Goodman dirão que “é provável que a experiência metafísica do tempo seja primordialmente uma leitura do funcionamento do self” (1997: 180).


Temporalidade do self

Ainda que Perls não citasse as lições proferidas por Husserl entre 1893 e 1917 – e cujo tema era a experiência que cada um de nós tem desse continuum em mutação, que é nossa vivência do tempo -, elas constituíam um tema familiar àqueles que, por meio de Goldstein ou, antes dele, por meio de Köhler, tiveram contato com a teoria fenomenológica da percepção como uma dinâmica de figura e fundo (a qual foi elaborada por Edgar Rubin justamente a partir daquelas lições de Husserl). É provável, nesse sentido, que Perls e Goodman compreendessem a importância da descrição fenomenológica da experiência da temporalidade. O que podemos facilmente verificar juntando duas passagens (já citadas) da terceira parte da obra Gestalt-terapia (1997), as quais falam, respectivamente, que a teoria do self é um tipo de “psicologia formal, que é o tema da fenomenologia” (184) e que “é provável que a experiência metafísica do tempo seja primordialmente uma leitura do funcionamento do self” (180). De onde se segue que, independentemente dos objetivos visados por Husserl e Perls (o primeiro queria estabelecer uma descrição formal da experiência do conhecer objetivo, enquanto Perls queria construir uma descrição da experiência organísmica de ajustamento no meio), é a teoria do self, mais do que qualquer “aplicação clínica de conceitos fenomenológicos”, o sentido precisamente fenomenológico da Gestalt-terapia.
O ego transcendental para Husserl, assim como o self para Perls, não é um objeto. Tal como Husserl o entende a partir de 1930, o ego transcendental é essa coesão, que se constitui por si mesma como unidade de uma história, que é a minha história (1931: §37). Ele é o domínio das minhas possibilidades que comparecem como horizonte de sentido para todas as vivências da atualidade. Em poucas palavras, o ego transcendental é o “eu posso” que vivenciamos antes mesmo de podermos dizer que “existimos” ou que “sabemos”. Trata-se de uma generalidade indeterminada, mas determinável (1931: §46), que se desdobra na forma de uma dinâmica de mútua implicação entre, pelo menos, três elementos: as intuições fenomênicas (que são nossas vivências de apreensão de um todo temporal e indeterminado, por exemplo, os sentimentos, os quais não devem ser entendidos como ocorrências exclusivamente individuais, mas, também, intercorporais), os atos de indicação (por cujo meio tentamos dar uma forma objetiva para nossas intuições fenomênicas) e as intuições categorias (que são as formas de coesão interna de nossos atos de indicação e que se deixam reconhecer, junto a esses atos, como nossos pensamentos, como nossa identidade não mais indeterminada, como no caso das intuições fenomênicas, mas determinada enquanto essência). O correlativo objetivo da integração desses três elementos é a “coisa mesma”, seja ela entendida como a idealização de nossos atos, seja ela entendida como a idealização de tudo aquilo de que os nossos atos se ocupam. Razão pela qual a fenomenologia é um “voltar às coisas mesmas”, não em proveito das coisas enquanto correlativos objetivos, mas das intuições que as preenchem e que são as nossas vivências fenomênicas e categoriais. Voltar às coisas mesmas, nesse sentido, é voltar à experiência de produção de uma unidade, que é a unidade de nossa existência, o que muito bem poderíamos chamar de “self”.
Ora, Husserl denomina de intencionalidade esse processo de determinação de nossas intuições fenomênicas enquanto essências (intuições categorias) “expressas” por nossos atos. Esse processo, entretanto, comporta dois momentos distintos. O primeiro é aquele que diz respeito à formação de nossas intuições fenomênicas, as quais devem ser entendidas como a “implicação temporal” de nossas muitas vivências em proveito de um todo indeterminado (ou gestalt). O segundo diz respeito à determinação ativa (exercida por atos) desse todo que, então, passa a ser experimentado como uma essência (ou intuição categorial). De toda sorte, é sempre a partir do primeiro processo que o segundo é possível, de onde se segue o primado ontológico (mas não epistemológico) da vivência do tempo (que é anterior aos atos) sobre nossas vivências mediadas por atos (essências ou intuições categorias). Husserl chama a vivência do tempo de intencionalidade operativa.
A intencionalidade operativa se dá de duas formas. A primeira, como retenção do vivido enquanto fluxo de modificações sucessivas. O que vivemos materialmente (uma sensação, por exemplo), tão logo é experimentada, decompõe-se em sua organização material. O que não quer dizer que ela deixe de existir. Sua permanência, entretanto, implica uma sorte de modificação. Ela continua retida, mas como matéria modificada e, a cada nova vivência, como modificação da modificação, de modo a estabelecerem, para as novas vivências um tipo de horizonte. A segunda forma da intencionalidade operativa diz respeito à organização espontânea desses vividos retidos enquanto fundo, horizonte de retrospecção e prospecção para os novos vividos materiais. Nesse segundo formato, a intencionalidade operativa implica um tipo de síntese passiva (porque não é estabelecida por meio de atos deliberados), entre o que eu vivi (e que comparece como horizonte de passado e futuro) e às minhas vivências atuais.
No gráfico a seguir – construído a partir de um modelo apresentado por Husserl em suas Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo (1994: 177), e segundo a complementação sugerida por Merleau-Ponty em seu estudo sobre o gráfico husserliano (1945: 477) - podemos visualizar a forma dinâmica segundo a qual seu autor compreendia nossa vivência do tempo.

Diferentemente da representação física do tempo, em que temos uma sucessão linear ou cíclica de “agora(s)”, Husserl concebe o tempo vivido como uma rede que se arma, a cada vez e em torno do novo agora que surge. Os muitos “agora(s)” não têm ligação entre si – como no caso dos gráficos lineares ou cíclicos, onde importa mostrar que o que vêm depois é uma conseqüência ou o retorno de algo do passado. Cada um dos “agora(s)” é absolutamente diferente (e, nesse sentido, separado) dos demais, sob pena de não podermos estabelecer distinções espaciais. Eis por que Husserl fala de uma série de “agora(s)” independentes (A, B, C, D...). Mas, do fato de os muitos “agora(s)” não terem uma ligação material entre si, não se segue que não tenham relação alguma. Há, sim, uma relação, mas ela não é estabelecida desde o exterior – como faz o físico, para reconhecer, entre os vários “agora(s)”, uma sucessão causal. Tampouco é estabelecida à moda de um deus panteísta, que está em todos os “agora(s)” simultaneamente. Para Husserl, a relação entre os meus vividos, eu só posso estabelecer do ponto de vista de cada vivido. O que significa que, aquilo que posso saber dos demais, é sempre uma modificação, uma alteração deles desde a posição em que me encontro agora. Ainda assim, se no “agora” atual posso considerar os outros “agora(s)”, devo admitir um tipo de vínculo. E é exatamente aqui que Husserl introduz o duplo sentido da intencionalidade operativa. Em primeiro lugar, acredita Husserl, não obstante nossas vivências materiais serem finitas, elas não desaparecem completamente de nossa existência. Elas permanecem “retidas” como modificações da matéria vivida que, assim, deixa de ser vivência, para se tornar horizonte (o que Edgar Rubin chamou de “fundo”), memória involuntária daquilo que não precisa ser evocado (por um ato de lembrança, por exemplo) para que seja reconhecido como nosso. A cada novo “agora”, nossas vivências retidas se modificam, assim como quando da emergência de B no gráfico, A se transforma em A’ e em A” quando da emergência de C. Mas, em segundo lugar, mesmo se modificando constantemente, o horizonte é aquilo que eu sempre posso reivindicar como orientação para minha vivência atual. Nesse sentido, no “agora” C, posso retomar A” e B’ como horizonte de passado, bem como projetá-los à frente, junto àquilo que se abre em C, como horizonte de futuro (d’). O que implica que este C é mais do que um “agora”, ele é um “campo de presença” do passado e do futuro no presente. Ele é um “aqui e agora” em que minha vida inteira, meu passado e minhas expectativas, estão incluídas como horizonte (ou como fundo).
Ora, se interpretamos o self como uma rede temporal, e cada fronteira de contato (ou presente deveríamos procurar em outro lugar, senão naquilo que o paciente atualmente trouxesse para o terapeuta, o sentido de sua queixa. Ainda que Perls e Goodman, na obra Gestalt-terapia (1997) não se referissem explicitamente a Husserl, Goodman (GOODMAN apud STOEHR, 1993), em carta a Köhler, afirma que a forma de expressar as idéias desenvolvidas nesta obra, emana de Ideen de Husserl (1913), portanto quando se refere a uma metafísica profunda do tempo como fundamento da teoria do self – nos autoriza a interpretá-la a partir de Husserl. E isso significa dizer tão somente que, se tudo está no aqui-agora, é por que o aqui-agora é um campo de presença, em que co-dados manifestam-se como fundo de um dado, que então é figura.
Este processo é o próprio ajustamento no campo, no campo de presença (de nossas vivências passadas e de nossas expectativas junto à materialidade de cada agora). E, conforme nosso entendimento, é somente tendo como base essa compreensão de campo que se pode entender em que sentido, para Perls e Goodman (1997: 180), o fundo é um “potencial” e, por conseqüência, o self é a “realização de um potencial”. Mais do que isso, é somente tendo como base essa compreensão de campo que se pode entender i) em que sentido o self é uma relação com o meio, ii) mas, ao mesmo tempo, ele é minha pessoalidade. Essa última é assegurada pelo fundo, que ora aparece como base regular desde onde os dados na fronteira de contato (com o meio) podem ser aceitos como figuras (como aquilo que nos diz respeito, que gera em nós tensão ou necessidade); ora aparece como domínio de “possibilidades” para destruição das figuras (satisfação). De onde se segue o emprego da palavra awareness como designativo da experiência de mim mesmo junto aos dados na fronteira de contato (awareness sensorial) e da experiência de mim mesmo na deliberação e ação motora (awareness deliberada). Awareness é a experiência de minha pessoalidade como fundo de tudo o que ocorre na fronteira. É a própria coesão do self, assim como a intencionalidade operativa é a própria coesão temporal da consciência, conforme a fenomenologia.
Perls e Goodman deixam claro sua visão temporal do self na seguinte passagem, que citamos na íntegra, dada a sua perfeita sincronia com a dinâmica descrita pelo gráfico de Husserl:

O que é importante observar é que a realidade com a qual se entra em contato não é uma condição objetiva imutável que é apropriada, mas uma potencialidade que no contato se torna concreta. O passado é o que não muda e é essencialmente imutável. Desse modo, as abstrações e a realidade abstrata imutável são construções da experiência passada fixada. Condições reais essencialmente externas são experienciadas não como sendo imutáveis, mas como sendo continuamente renovadas da mesma maneira. Ao concentrar-se a awareness na situação concreta, essa preteridade da situação se dá como sendo o estado do organismo e do ambiente; mas de imediato, no instante mesmo da concentração, o conhecido imutável está se dissolvendo em muitas possibilidades e é visto como uma potencialidade. À medida que a concentração prossegue, essas possibilidades são retransformadas em uma nova figura que emerge do fundo da potencialidade: o self se percebe identificando-se com alguma das possibilidades e alienando outras. O futuro, o porvir, é o caráter direcionado desse processo a partir das muitas possibilidades em direção a uma nova figura única (1997: 180-181).


Releitura das dinâmicas do self à luz da teoria fenomenológica do tempo

O campo de presença - futuro que se faz presente a partir do passado - é o acontecimento que chamamos na Gestalt-terapia de contato. Tal acontece quando “algo” (que tanto pode ser um dado proprioceptivo, exteroceptivo ou interoceptivo) adquire valor de figura em nossa existência - o que implica que emprestemos, a esse algo, um fundo de co-dados, os quais não são senão a nossa existência já vivida e, nesse sentido, modificada, que retomamos numa dupla orientação: futuro e passado. Ora, sendo o self o sistema de contatos no presente transiente – o que poderíamos perfeitamente bem enunciar como um sistema de implicação temporal no campo de presença – e estando ele constituído de uma série de dinâmicas, caberia então uma releitura dessas mesmas dinâmicas sob a ótica das vivências temporais operadas em cada uma delas.
É de fundamental importância observar, entretanto, que a apresentação temporal das dinâmicas do self não implica considerá-las como uma sorte de ciclo ou linearidade causal. Temporalidade quer tão somente dizer a experiência de coesão espontânea (não mediada por atos), na forma da qual eu experimento, frente aos outros e ao mundo circundante, a unidade de uma existência mista, de generalidade: self. Por isso, não obstante as dinâmicas sinalizarem o modo como o já vivido comparece junto ao dado, não há nada que se repita. Há tão somente retomada, o que nunca é uma repetição, mas a criação do novo (campo) a partir do que, desde o passado e do dado que se apresenta, se anuncia no futuro.
Ainda assim, Perls e Goodman prestaram uma inestimável contribuição para a psicologia formal e para as práticas psicoterapêuticas quando descreveram, não uma seqüência objetiva, mas a essência (ou forma geral) das orientações que se abrem toda vez que nos ocupamos de um dado a partir de nosso fundo (horizonte de passado e futuro). Estamos aqui falando das já aludidas dinâmicas do self, que são o pré-contato, contato, contato final e pós-contato. Tais dinâmicas não são, voltamos a frisar, uma cadeia de ocorrências, etapas sucessivas de eventos de uma seqüência determinada, tal qual num ciclo, mas a abertura do novo a partir do antigo. Ainda assim, elas descrevem a orientação ou direção na forma da qual vivenciamos, no campo de presença (ou, se se preferir, na fronteira de contato ou no “aqui e agora”), a retomada do já vivido (do fundo) em proveito do dado material eminente.
Ora, se o self – enquanto sistema de contatos no presente transiente - é um processo temporal, e se tal temporalidade é aquela descrita nos termos da fenomenologia de nossa vivência do tempo, então o gráfico de Husserl pode nos ajudar a compreender a infraestrutura temporal inerente às dinâmicas do contato. Conforme acreditamos, a utilização do gráfico husserliano tem a vantagem de nos permitir visualizar i) o modo como nossa história vivida (e representada) participa de nosso “aqui-agora”, ii) o sentido de “campo” que caracteriza nosso “aqui-agora”, iii) o caráter sempre “inédito” (e, nesse sentido, criativo) dos ajustamentos que estabelecemos, a partir de nosso fundo temporal e frente ao mundo e ao outro, no campo, iv) a razão pela qual o “aqui-agora” é não somente um encontro com o mundo e com o outro, mas a experimentação de nossa unidade (awareness) frente ao mundo e ao outro, experimentação essa que é o que justifica a escolha que Perls e Goodman fizeram pelo nome self.
A aplicação do gráfico husserliano às dinâmicas do contato foi algo extremamente simples de se fazer, depois que se compreendeu a relação que havia entre a seguinte passagem e as Lições sobre a consciência interna do tempo de Husserl (1994):

(a) partir do princípio e durante todo o processo, ao ser excitado por uma novidade, o self dissolve o que está dado (tanto no ambiente quanto no corpo e em seus hábitos), transformando-o em possibilidades e, a partir destes, cria uma realidade. A realidade é uma passagem do passado para o futuro: isto é o que existe, e é disso que o self tem consciência, é isso que descobre e inventa (1997: 209).

Ora, em algum sentido, Perls e Goodman estão descrevendo aquilo que se passa num “presente transiente”, que é o lugar do contato, e que não é senão o campo de presença do qual falava Husserl. Do passado vem algo, que não é o próprio dado, mas o fundo desde onde o dado assume, na fronteira material de meu organismo e do meio, o valor de figura. De fato, só o que podemos perceber como realidade material é o dado. Mas este não significaria nada se não houvesse, por um lado, um fundo de passado que lhe desse sentido próprio (pré-contato) e um fundo de possibilidades motoras (contato projetado) que me permitisse encontrar, doravante – e isso quer dizer, noutro dado, noutra configuração material – um modo de resolução (contato final) do dado antigo, que então já se teria tornado passado (pós-contato).



O pré-contato é uma organização espontânea do dado e dos co-dados na fronteira de contato. A partir dos co-dados (que comparecem como fundo), o dado (seja ele próprio, intero ou exteroceptivo) “figura” como necessidade. A rigor, o dado não vem do nosso fundo temporal, muito embora nossas experiências temporais possam estar representadas em um dado presente, como um ato de recordação, uma fotografia, etc. O dado se impõe em nosso campo de presença como uma ocorrência material, como um evento de fronteira. Mas, de nada adiantaria ele se impor se nós não o apanhássemos, se nós não nos ocupássemos dele (“introjeção” saudável). O que é bastante óbvio em nossa experiência cotidiana, afinal, nem tudo o que “ataca” nossa retina se configura, para nós, como objeto visual. Ou, de outra forma, nem tudo o que enxergamos chama nossa atenção. Para que isso aconteça é preciso que haja uma “forma especial de contato” entre os dados materiais visados e o fundo de nossas vivências. O que é algo que não depende de nossa deliberação. Trata-se de um acontecimento espontâneo, como uma “síntese passiva”, diria Husserl. Trata-se, enfim, do pré-contato. De forma passiva (razão pela qual falamos de um “pré” contato), o ego recolhe do id um fundo que, de modo não deliberado, é agregado ao dado. Eis aqui a sensorialidade, eis aqui a emergência da figura na fronteira de contato, que é essa gestalt entre nosso fundo de vividos (nosso corpo agigantado como id) e o dado propriamente dito (fenômeno físico).
No contato, o horizonte de futuro aparece pleno de possibilidades, o ego arrasta o meio para uma virtualidade, que é a virtualidade da deliberação, da decisão. Uma deliberação nunca é, de fato, um evento que se resume à matéria dos dados envolvidos, mas é uma abertura para uma nova configuração. Trata-se, em verdade, de um salto para além da materialidade do que está dado. Trata-se de uma abstração, na forma da qual o ego se lança ou, então, se esconde (respectivamente, “projeção” e “retroflexão” saudáveis).
E, uma vez tomada a decisão, só resta ao ego o movimento radical de transcendência, o lançar-se para o outro ou na direção do mundo. É aqui que se estabelece o contato final; o qual não é senão o encontro com um novo dado, junto ao qual o dado passado não pode ser mais que um fundo, como a sede torna-se fundo ante o gole de água fresca. Em verdade, estamos aqui já diante de um novo campo de presença, junto ao qual o dado passado não pode aparecer senão como co-dado. Ainda assim, o ego pode retornar a esse co-dado, não apenas como modificação de uma necessidade antiga, mas como o representante de uma experiência “bem” ou “mal” sucedida, o que necessariamente implica um modo de valoração, o qual não é senão a forma como eu mesmo me identifico naquilo que eu vivi (confluência saudável). Temos então a assimilação do passado como representação de nós mesmos. O que Perls e Goodman vão chamar de pós-contato. É exatamente nesse ponto que se dá a formação da “personalidade”, que é essa outra função do self, nos termos da qual recolhemos o passado como aquilo com que nós nos identificamos, adquirimos subsistência para além do campo de presença (ou “aqui-agora”) em que efetivamente estamos.


Neurose e temporalidade

Para Perls e Goodman (1997), o comportamento neurótico também é um modo de ajustamento do self. Trata-se, assim como os demais comportamentos, de uma dinâmica de troca de energia na fronteira de contato, que podemos entender sob a ótica das relações de figura e fundo e, por conseguinte, como um evento temporal. Mas, esse ajustamento tem uma peculiaridade. A saber, a função ego não consegue criar, para o dado, nada de novo. Por vezes, ele sequer consegue admitir a existência de um dado. Ora, o que se passa aqui? Como o ego vive essa privação? O que há de essencial nisso?
Segundo Perls e Goodman, quando o ego vai para o contato, ele pode sofrer uma ação contrária ou se deparar com uma ocorrência que lhe impede de realizar o almejado. Nesse momento, o ego não tem muitas alternativas, senão deliberar em favor da inibição de sua ação. O que não seria problemático, não fosse o fato de que, em certas ocasiões, mesmo tendo sido esquecida, tal deliberação continua atuante, como inibição disfuncional. Tal implica que, mesmo não havendo, na fronteira de contato, um dado que exigisse tal inibição, ela continuaria atuando como interrupção da livre emergência de co-dados, como impedimento da configuração espontânea do fundo (de orientação e de possibilidades), desde onde aquele dado pudesse adquirir status de figura. Eis então a neurose, que é

a evitação do excitamento espontâneo e a limitação das excitações. É a persistência das atitudes sensoriais e motoras, quando a situação não as justifica ou de fato quando não existe em absoluto nenhuma situação-contato, por exemplo, uma postura incorreta que é mantida durante o sono. Esses hábitos intervêm na auto-regulação fisiológica e causam dor, exaustão, suscetibilidade e doença. Nenhuma descarga total, nenhuma satisfação final: perturbado por necessidades insatisfeitas e mantendo de forma inconsciente um domínio inflexível de si próprio, o neurótico não pode se tornar absorto em seus interesses expansivos, nem levá-los a cabo com êxito, mas sua própria personalidade se agiganta na awareness: desconcertado, alternadamente ressentido e culpado, fútil e inferior, impudente e acanhado, etc (1997: 235-6).

Ora, alguém poderia perguntar pelos motivos da inibição deliberada, ou, então, pelas razões do esquecimento dessa inibição. Poderia alguém ainda perguntar por que essa resposta do passado retorna de modo anônimo. Mas, cabe aqui a ressalva de que, por mais legítimas que sejam essas questões, elas só podem ser respondidas desde um ponto de vista genético, explicativo, o qual, definitivamente, não é o ponto de vista da Gestalt-terapia. Afinal, o ponto de vista genético sempre pressupõe haver, aquém de nossas ações, motivos que as pudessem explicar. Contra o que vão argumentar Perls e Goodman, no sentido de mostrar que todo motivo sempre implica um ato que o realize. De onde se segue a postura dos gestalt-terapeutas no sentido de suspender as explicações em proveito da descrição das ações que aparecem na fronteira de contato. Nas palavras de Perls e Goodman interessa aos gestalt-terapeutas “analisar a estrutura interna da experiência concreta, qualquer que seja o grau de contato; não tanto o que está sendo experienciado, relembrado, feito, dito, etc., mas a maneira como o que está sendo relembrado é relembrado, ou como o que é dito é dito ... “ (1997: 46. Grifo dos autores). E, de fato, em vez de construir uma gênese teórica das neuroses, Perls e Goodman vão se limitar a descrever a forma ou orientação específica da relação entre meus horizontes temporais (fundo) e os dados na fronteira de contato. De onde se segue a definição de neurose não como a conseqüência de uma causa remota, mas como um modo especial de ajustamento em que, por ação de uma inibição, o fundo se furta ao dado, impedindo a formação das figuras, por meio das quais o self poderia experimentar sua própria unidade: gestalt aberta.
Mas qual é, então, essa forma ou estrutura interna da experiência concreta de contato que opera na neurose? Ora, no livro Gestalt-terapia (1997), Perls e Goodman afirmam que, na neurose, o self está inibido, isto quer dizer, é incapaz “de conceber a situação como estando em mutação ou sofrendo outro processo; a neurose é uma fixação no passado que não muda” (1997: 181). Há novamente aqui o explícito reconhecimento da natureza temporal do self, mesmo quando o self opera um ajustamento neurótico. E a questão, então, é descrever essa temporalidade da neurose. O que não é senão discriminar as diversas formas como esse “passado” intervém impedindo as diversas dinâmicas temporais de contato (pré-contato, contato, contato final e pós-contato).
Nós podemos encontrar essa descrição no capítulo XV da terceira parte daquele mesmo livro. Lá Perls e Goodman referem-se à neurose como um processo único, o qual se caracteriza por formas singulares de interrupção total ou parcial do excitamento espontâneo quando uma inibição reprimida atua sobre ele. Precisamente, quando a inibição reprimida priva o ego de um horizonte de passado, não há formação de figura na fronteira de contato. O dado não significa nada e, conseqüentemente, o self não pode experimentar, nesse dado, a awareness de sua própria unidade. Só resta a ele confluir no vazio. Eis aqui o ajustamento criativo que Perls e Goodman chamam de confluência. Quando a inibição mascara nossa própria história (inverte nosso afeto, deturpa a awareness de nós mesmos), o dado na fronteira não pode surgir senão como uma figura estranha que, assim, é admitida de modo coercitivo, conflitivo: eis aqui a introjeção neurótica. Já quando a inibição age de modo a obnubilar o horizonte de possibilidades de nosso self, desvinculando-o de nós mesmos, esse será experimentado como algo “no ar”, ou que pertence a outrem. Conseqüentemente, não cabe mais a mim, mas sim a este outrem tomar conta ou fazer algo com o dado que aparece na fronteira de contato. O dado não me diz respeito, mas diz respeito a outrem. Eis aqui o ajustamento criativo que Perls e Goodman chamam de projeção neurótica. Se, entretanto, em vez de obnubilar meu horizonte de possibilidades, a inibição agir de modo a subordina-la às possibilidades de outrem, minha ação na fronteira de contato não pode mais ser espontânea. Eu não posso confrontar a expectativa do outro. Por isso, o conflito deve ser evitado, o que significa, concretamente, que não posso operar com o dado. De onde se segue que, em vez disso, me ocupo de destruir minhas próprias possibilidades (futuro), bem como a história desde onde elas surgiram (passado). Eis aqui o ajustamento criativo denominado de retroflexão neurótica. Por fim, se a inibição reprimida atuar sobre meu horizonte de possibilidades, de modo a converte-lo em algo que valesse por si, independentemente dos dados reais na fronteira de contato, meu self entrava, perde a espontaneidade. Dessa forma, não posso mais transcender meu campo de presença. Não posso mais passar de uma figura a outra. Não posso mais lograr o contato final. Tal interrupção é denominada por Perls e Goodman de egotismo.
No gráfico a seguir, que é a uma continuação do gráfico anterior, acrescido da representação dos ajustamentos neuróticos, procuramos descrever, na série dos eventos de fronteira, as diversas figuras (que alguns preferem chamar de sintomas) observáveis. São elas, enfim, que exprimem, de modo material (no organismo “O” e no meio “M”), a incapacidade (mas que, ainda assim, implica uma satisfação possível “S”) do ego para viabilizar a awareness de minha própria unidade como self frente às figuras (“ausentes” no caso da confluência, “estranhas” no caso da introjeção, “do outro” no caso da projeção, “impossíveis” no caso da retroflexão e “irrelevantes” no caso do egotismo) que se formam na fronteira de contato.




Na confluência temos como evento de fronteira o apego ao conhecido, ao passado imutável, à situação aberta e a conseqüente paralisia e dessensibilização a qualquer fonte de excitamento ou surgimento do novo. O horizonte de passado é a inibição reprimida impossibilitando que os co-dados (vividos passados) sejam retomados em uma nova figura, portanto não há qualquer surgimento de figura. Não há nenhum horizonte de futuro, pois não se estabelecem possibilidades para uma figura que não existe, o que faz com que o “fluir com” o outro seja a única saída constituindo-se em uma satisfação possível histérica, uma espontaneidade aleatória, sem controle do ego.
A interrupção do processo de contatar em seus primórdios (pré-contato) caracteriza um processo introjetivo. Só identificamos esse processo quando, na fronteira, aparece uma inversão dos afetos (por exemplo, não gostar de algo ou alguém em vez de gostar e vice-versa) e um comportamento resignado frente às leis do outro. A única deliberação possível do ego é uma deliberação adaptada, ou seja, seguir o que o outro quer (possibilidades adaptadas no horizonte de futuro). Resta daí uma satisfação possível masoquista de estar sob o jugo da lei do outro, de se identificar como alguém bom e obediente, etc.
Na interrupção projetiva, o que aparece na fronteira de contato é o repúdio à emoção e uma provocação passiva. Essa última tem em vista provocar aquele somente a quem se reconhece possibilidades de ação: o outro. É neste outro que se depositará o que não pode ser assumido como próprio, ou seja, a emoção gerada pelo confronto de uma necessidade e sua expressão no meio. A satisfação possível se dá no mundo mágico da fantasia, ali os desejos se realizam, enquanto que, na realidade, não há contato final.
Quando o que observamos na fronteira é uma tentativa obsessiva de desmantelar o passado, como se houvesse uma forma de refazê-lo sem os erros cometidos e, junto com isso, um comportamento auto-destrutivo, podemos intuir que uma retroflexão se estabeleceu como interrupção do processo de contato. Aqui o horizonte de futuro é apenas o si mesmo, a única possibilidade do excitamento chegar a algum termo. A satisfação possível é o sadismo, pois, ao infligir sofrimento a si próprio, a pessoa compromete o outro, seja pela pena, pelo cuidado ou pela culpa, conseguindo com isso concluir seu intento, mesmo que indiretamente.
Uma última interrupção descrita por Perls e Goodman (1997) é o egotismo. Não raro enfrentamos essa situação de fronteira na clínica quando observamos nosso cliente se perder em abstrações infindáveis, explicações para tudo, argumentos bem construídos e um perfeito controle deliberado. A inibição reprimida (horizonte de passado), aqui, atua impedindo o contato final, e como horizonte de futuro só encontramos mais e mais deliberações abstratas. Para um contato que não finaliza a satisfação possível é a vaidade, fixação num “falar sobre”, numa “construção inteligente” de uma ficção que substitui o contato verdadeiro.


Considerações finais

Cabe ressaltar aqui que essa descrição das interrupções do processo de contatar não se presta à classificação de pessoas neuróticas, como poderia sugerir uma concepção substancialista. Da mesma forma, ela não se pretende um tratado de psicopatologia, no qual o cliente encontraria a explicação da causa de suas próprias patologias. Não obstante admitir que não seja impossível que a delimitação de um motivo, seja ele a força de atração exercida pela satisfação possível adquirida num ajustamento passado, seja ele o medo de se reencontrar a vivência de frustração de outrora, possa ajudar o cliente a restabelecer a awareness de seu próprio funcionamento, a Gestalt-terapia não acredita que tais delimitações analíticas sejam condição suficiente, menos ainda condição necessária para que uma pessoa venha a transcender a forma de ajustamento em que está aprisionada. Por mais úteis que possam ser essas informações no trabalho psicoterapêutico, elas só são efetivas quando “reconhecidas” como aquilo que continua vivo em meu campo atual, em meu aqui-agora. Razão pela qual, a ênfase da Gestalt-terapia repousa sobre aquilo que se vive na fronteira de contato.
Nesse sentido, a descrição da estrutura interna do comportamento neurótico não propõe nenhum princípio universal, nenhuma mitologia ilustrativa da origem de nossos desajustes. O que em verdade se está a descrever é a possibilidade (e seu comprometimento) da experiência de unificação da existência em torno daquilo que se impõe como matéria, bem como o caráter finito e sempre passível de retomada dessa experiência. De onde se segue que, o sentido dessa descrição estrutural não é epistemológico ou normativo, mas “operativo” (no sentido fenomenológico desse termo). Afinal, por meio dela, a Gestalt-terapia não quer dizer o que é a vida, ou a patologia dela, mas “como” ela se dá a conhecer na fronteira de contato, a saber, como retomada (saudável) ou interdição (neurótica) de nossa história vivida.
De fato, a grande virtude da descrição temporal da constituição da fronteira de contato, bem como de sua interrupção, é a visualização da maneira como a história de cada cliente comparece ou como fundo, ou como obstrução da constituição de novas figuras. Nesse sentido, a metodologia de descrição da neurose prima por discriminar os diversos lugares, na fronteira de contato, em que o tempo intervém (de maneira espontânea, como fundo, ou de maneira neurótica, como inibição habitual). E esses lugares são o pré-contato, o contato, o contato final e o pós-contato. Tendo em vista esses lugares, Perls e Goodman puderam descrever a seqüência, segundo a qual, a temporalidade de cada qual intervêm na fronteira. E eis em que sentido, no livro Gestalt-terapia (1997), Perls e Goodman puderam falar de uma orientação progressiva do comprometimento do contato e, correlativamente, da possibilidade de uma intervenção terapêutica capaz de desencadear, no cliente, uma orientação contrária. Mas isso já é tema para outro trabalho.

Referências

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MERLEAU-PONTY, M. (1996). Fenomenologia da percepção.(C.A.R. de Moura, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1945).

PERLS, Frederick (1942). Ego, Fome e Agressão: Uma Revisão da teoria e do Método de Freud. Trad. Georges Boris. São Paulo: Summus, 2002.

PERLS, F., HEFFERLINE, R., GOODMAN, P. (1997). Gestalt Terapia.(F. R. Ribeiro, Trad.). São Paulo: Summus. (Trabalho original publicado em 1951).

STOEHR, Taylor (1994). Aquí, Ahora y lo que Viene: Paul Goodman y la Psicoterapia Gestalt en Tiempos de Crisis Mundial. Trad. Renato Valenzuela. Santiago: Cuatro Vientos, 1998.


Neste ano a Gestalt Terapia comemora 50 anos. Em meados do século passado, quando nasceu como uma dissidência da psicanálise trouxe como novidade a mudança de paradigma filosófico e as teorias de fundo da Psicologia da Gestalt embasando uma nova “forma” de ver o homem, agora construindo seus significados na relação com o mundo. Fritz Perls e seus parceiros neste novo diálogo teórico estavam à frente de seu tempo, muitas das idéias colocadas no esboço inicial da teoria continuam absolutamente atuais no início do novo milênio.
A Gestalt Terapia é uma psicoterapia que pela forma de abordar o sujeito e estabelecer a relação terapêutica e o curso da mesma se insere nas psicoterapias de base fenomenológico-existencial. Está atenta ao revelar-se contínuo do ser, não imprime significados ao outro e trabalha basicamente na esfera do “entre”, isto é, é no “como” a relação se estabelece e se desenvolve que o trabalho terapêutico vai se construindo. Paralelamente acompanha as transformações do mundo pois o mundo vem junto com a pessoa, na sua história, seus significados, suas dores, suas alegrias, e novamente todas as suas relações e a forma de funcionamento dentro delas afloram com espontaneidade e vida.
A dinâmica dos relacionamentos tem sofrido transformações rápidas em nossos dias, em função da própria característica globalizadora do final do século. O que vemos são relações rápidas, superficiais, manipulativas, competitivas, cada um cuidando de suas coisas com pouco tempo para olhar e ouvir o outro e se relacionar de verdade, incluindo realmente este outro. Psicoterapias de casal, de família, de grupo, sendo cada vez mais procuradas. Parece que as pessoas não estão felizes e estão querendo e buscando formas saudáveis de se relacionar. Prestar atenção nisto nos abre uma perspectiva rica e interessante de trabalho.
A Gestalt Terapia tem em seu suporte teórico e metodológico uma base consistente para este trabalho, pois busca justamente restabelecer o fluxo saudável das demandas individuais em relação ao meio e naturalmente ao “outro”, favorecendo o “contato” como forma essencial e saudável de estar no mundo.
Como isto acontece na experiência clínica? Em minha experiência, a “atitude gestáltica” diante do mundo e do outro está presente desde o primeiro momento do encontro com a pessoa que chega até mim. Recebo esta pessoa como alguém único, cuja presença já é uma revelação do seu ser singular. Todo o seu corpo, sua linguagem e expressões constituem seu “ser-no-mundo” naquele momento. Fico atenta e vou ao encontro deste ser para iniciar mais uma de suas múltiplas relações acreditando que ambos sairemos diferentes desta experiência.
Esta atitude diante do outro vem da crença de que é a partir de sua singularidade que a pessoa constrói suas redes de relações e significados com o seu mundo. De que o homem é um ser-no-mundo e só pode se compreender em sua relação com o mundo, é um ser-com, um ser em companhia de outros seres, em relação, estando sempre envolvido na relação com o mundo do outro, numa dialética na qual cria o mundo ao mesmo tempo em que é criado por ele. É um ser situado, é “aqui” num sentido auto-localizado e auto-consciente.
Na relação terapêutica, entro no processo junto com o cliente, o processo da vida, da troca, numa tentativa de juntos percebermos e trabalharmos o que não está bem em sua vida e também de participar de sua existência, estando próxima em todos os momentos, para que ele se sinta acompanhado. Me relaciono com ele de acordo com sua maneira de existir assim como ele também participa da minha maneira de existir. Estou ali enquanto sujeito, como sou, com todas as minhas possibilidades e limitações também. Estou ali como um “Tu” e pela minha presença humana possibilito ao outro se apresentar como um “Eu”, sincero e espontâneo. Busco um existir autêntico, um frente ao outro e um com o outro, envolvidos, se tocando reciprocamente como seres humanos.
Estou ali como profissional e como pessoa, me tornando presente a ele, face a face, numa proximidade vivencial básica, atuando dialeticamente entre o Eu-Isso e o Eu-Tu, entre o pensar e o existir na relação, entre o agir sobre o cliente e o ser-com ele.
Este movimento acontece num vir a ser que nunca se completa, num movimento contínuo, alimentado pelas potencialidades em constante atualização, sempre em aberto, mutante, diferente a cada dia, revelador e novo.
Neste contato acompanho o seu modo de existir a cada momento, permitindo-lhe a escolha do próximo passo para que possa vivenciar a liberdade e a responsabilidade sobre si e seu viver.
Nosso encontro se constitui num encontro existencial.
A abordagem fenomenológica-existencial na psicoterapia está fundamentada na relação com o outro, intuitiva, espontânea e flexível, que é inerente ao ser humano e acontece antes de qualquer questionamento teórico. Esta abordagem nos fornece uma teoria da relação terapeuta-cliente, orientando-a eticamente. Nos dá uma base da concepção de homem e das relações humanas bem como um método de trabalho.
Enquanto método a Fenomenologia surge como uma contestação a um ideal de conhecimento que dizia ser o conhecimento uma representação que apenas a consciência poderia fazer. Numa tentativa de encontrar a justa medida da relação consciência/objeto Husserl cria uma filosofia onde não há um sujeito sem um objeto e um objeto sem um sujeito. Coloca o objeto de volta no mundo da experiência do sujeito. Sujeito e objeto não existem independentes um do outro. O homem é um ser consciente e a consciência é sempre intencional, sempre consciência de alguma coisa. Também o mundo não é em si, mas sempre um mundo para uma consciência.
Sartre, falando de uma teoria fenomenológica das emoções, nos sinaliza que não existe emoção sem que seja emoção de ou por alguma coisa, pois a consciência emocional é consciência do mundo. A pessoa que tem medo tem medo de alguma coisa, a emoção volta a todo o momento ao objeto e se alimenta dele. A pessoa que sente raiva sente raiva em relação a alguém ou alguma coisa. Quer dizer com isto que o indivíduo emocionado e o objeto causador desta emoção estão unidos por uma síntese indissolúvel. A emoção é mobilização para a ação, sua emergência informa o que está acontecendo no meio e prepara a pessoa para agir. A emoção faz parte do encontro do si mesmo com o mundo.
Entendemos o sujeito como experienciando dentro do mundo, sem dentro e fora. A experiência de ver alguma coisa, por exemplo, não é separada do que está sendo visto. Tudo acontece na fronteira de contato onde a experiência resulta tanto de quem experimenta quanto do que está sendo experimentado. O gosto da maçã não está nem na maçã e nem na boca, mas no encontro das duas.
Esta concepção imprime um enfoque relacional ressaltando que existe sim relação entre as partes, e mais, o interagir modifica as partes. Cada gesto, fala, emoção se constitui num contato, portanto toca as duas partes implicadas no mesmo e nesta interação ambas as partes se modificam.
A fenomenologia traz uma nova postura diante do mundo em sua tentativa de “voltar as coisas mesmas” e percebe-las como “novidades”, como se não as conhecêssemos, sem olha-las através de teorias científicas ou filosóficas, preconceitos, juízos de valor, classificações, etc., ficando com a experiência imediata, partindo de uma espécie de inocência radical, voltando ao mundo tal como ele é dado imediatamente à nossa consciência. Perceber o mundo de forma espontânea, pré-reflexiva, onde pela intuição o objeto é captado em sua totalidade. Voltar-se para o fenômeno, que está no mundo vivido, na experiência básica do ser humano.
Com nosso cliente “voltar as coisas mesmas” é estar atento ao óbvio, o aparecer, o manifestar-se, ficar com nossas percepções exatamente como acontecem, acompanhar o suceder dos fenômenos, um após outro, estar aberto ao momento seguinte como um novo momento, e não precisar ir além disto, porque tudo já está aí, tudo é o que é. Também não nos cabe emitir julgamentos, pois nossa única referência para a realidade dada está em nossa percepção e não em conhecimentos anteriormente adquiridos. O que percebemos é fundamental e o mais próximo que podemos chegar da verdade.
Porém, o que percebemos não é uma realidade objetiva, e sim o meu próprio existir diante do mundo englobando tanto os meus pensamentos quanto os meus sentimentos. É importante entender que percebemos o mundo físico, os sentimentos, as outras pessoas, as idéias, os valores, com “nossos olhos”, sob a nossa perspectiva, e que para cada situação dada existe outra “visada”, outra possibilidade de apreender aquela experiência, diferente ou além do que percebemos. Cada objeto, cada unidade de experiência e cada sujeito podem ser percebidos através de vários ângulos, perspectivas ou aspectos. Termos esta consciência faz com que a realidade se torne uma fonte interminável de novas descobertas, aguçando a nossa curiosidade. Pensar fenomenologicamente é estar consciente que sabemos o que percebemos, mas que pelas nossas limitações humanas estamos sempre no limite deste saber e na busca do desconhecido que se descortina a cada instante sob nossos olhos. Este é o olhar fenomenológico, um olhar para a novidade do outro, para o que se revela e que ainda não sabemos, para este vir-a-ser constante, sempre na fronteira do aqui-e-agora. A verdade do outro é sempre incompleta e interminável num processo de tornar-se.
Este espírito fenomenológico dentro da relação terapêutica faz com que vivamos uma experiência rica e fascinante com nosso cliente.
Na Gestalt Terapia além da ênfase nos conteúdos estamos orientados principalmente para o sujeito que percebe e experimenta e em como isto acontece, isto é, de como toma consciência de si mesmo e de seu mundo. Na experiência clínica constatamos que a pessoa que nos procura chega em sofrimento, interrompida em seus processos de contato, muitas vezes não consciente de seu funcionamento e da relação entre sua intenção e o seu existir no mundo. O que vamos buscar no trabalho terapêutico é que todo o ser, o agir e o falar do cliente estejam diretamente ligados à sua intenção, pois qualquer coisa que se interponha entre a intenção e o agir se constitui numa interrupção, numa resistência. Exemplo disto são as interrupções do fluxo da fala, quando o cliente para para pensar, avaliando o que vai dizer, criando divisões, retirando a vida e a espontaneidade de sua comunicação.
Trabalhamos no sentido de restaurar o continuum de awareness, entrando na situação, experimentando e trazendo à consciência o óbvio, o que é, fazendo uma descrição detalhada dos fenômenos implicados. Buscamos o insight no próprio processo de awareness, dando ênfase à experiência imediata aqui-e-agora e colocando em parênteses o que não pertence a este vivido imediato. Fundamental é criar novas formas de experienciar e novos usos da energia presente. A situação terapêutica provê o suporte necessário para o cliente se perceber, fazer algo novo, enfrentar seus medos e aprender a fluir em sua experiência.
Trabalhamos com o conceito de fronteira de contato, ou seja, com a compreensão de que não vivemos aqui dentro, nem lá fora, mas no entre. O que existe é o contato, não um mundo objetivo, nem um mundo subjetivo, mas um mundo que só é mundo à medida que nos trazemos para ele. Por exemplo, quando falo, a fronteira de contato é formada pelos meus lábios e os sons que emito e os ouvidos de quem está ouvindo. O outro está incluído o tempo todo para que a experiência aconteça. Estamos atentos a este “entre”. É neste “entre” que toda nossa condição humana é feita, não só por um, mas pelo ato de um encontrar a alteridade de si mesmo no outro.
Esta atitude fenomenológica vivida no contexto terapêutico supõe a importância da existência do “encontro”, através do qual tudo o que acontece e os conteúdos que emergem dali só podem ser compreendidos no contexto desta relação. Encontramos na abordagem dialógica de Buber uma base filosófica para esta atitude, entendendo o diálogo como diálogo com o outro enquanto “outro” e como uma específica forma de contato que possibilita a “awareness”.
É neste espaço do “entre” que o ser de cada um germina e se transforma. E em algum momento surge o contato genuíno, quando a pessoa estará realmente interessada em si e também no terapeuta, interessada num outro genuinamente. Instala-se então a mutualidade e neste momento o cliente estará pronto para fechar esta relação e abrir outras no constante fluir de seu ser no mundo.

GRANZOTTO, Rosane Lorena. “Gestalt-terapia: uma psicoterapia do “entre”. Jornal do CRP SC. Ano 4, nº 40, fev. 2001, p. 11.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DARTIGUES, A. (1992). O que é a fenomenologia?. São Paulo: Moraes.
LOFFREDO, A.M. (1994). A cara e o rosto – Ensaio sobre Gestalt Terapia. São Paulo: Ed. Escuta.
MERLEAU-PONTY, M. (1994). Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes.
MILLER, M.V. (1990). Toward a psychology of the unknown. The Gestalt Journal, vol.XIII, n.2.
SARTRE, J.P. Esboço de uma teoria das emoções. Lisboa: Editorial Presença.
YONTEF, G.M. Gestalt Therapy: Clinical Phenomenology. The Gestalt Journal, vol.II, n.1.

Gestalt Terapia Integrada, primeiro livro escrito pelo casal Polster, é indubitavelmente leitura indispensável para quem deseja conhecer o que é a Gestalt-terapia e se aprofundar em seus conceitos. Publicado em 1973, esse livro nasceu de uma série de palestras proferidas por Erving no Gestalt Institute of Cleveland durante os anos 60 e das discussões gravadas entre Miriam e Erving sobre suas idéias a respeito da gestalt-terapia. Escrito a quatro mãos, retrata o estilo pessoal do casal, numa linguagem simples, direta e próxima do cotidiano, superando os clichês da época.
A motivação para escreve-lo, segundo Erving, veio da necessidade de maior integração e desenvolvimento dos conceitos da abordagem gestáltica, pois naqueles dias a gestalt-terapia estava numa fase anti-intelectual que conduzia a uma considerável desorganização teórica. Erving e Miriam concretizam brilhantemente nesse livro uma interconexão coerente dos vários conceitos gestálticos e, o que é mais precioso, estabelecem uma ligação entre a teoria e a prática através dos inúmeros exemplos clínicos apresentados, preenchendo uma lacuna existente até então nas publicações sobre a gestalt-terapia.
Esse livro marca o início de 25 anos de colaboração profissional entre Erving e Miriam, escrevendo livros, artigos e trabalhando em treinamentos em gestalt-terapia. Apesar de terem estilos expressivos diferentes, Erving mais efusivo e irreverente enquanto Miriam revela uma extrema dignidade e precisão de linguagem, ambos mostram uma afinidade e uma clara concordância ao escrever suas idéias, o que também é plenamente visível em seus treinamentos e no contato pessoal com o casal.
Miriam é uma terapeuta e professora brilhante, clara e objetiva em suas exposições teóricas, delicada e charmosa no contato humano. Seu trabalho é detalhista, envolvente, calmo e gentil. Erving é hábil em transformar as velhas idéias em experiências inéditas e em comunicar uma irresistível fascinação pela teoria da gestalt-terapia. Isso se evidencia em sua forma de ensinar e trabalhar, marcados tanto pelo seu característico humor e seu estilo provocativo, quanto pelo profundo comprometimento nas experiências com o outro.
Ao longo dos anos que trabalharam juntos o casal construiu uma história profissional competente, criativa e extremamente humana, iniciada no Gestalt Institute of Cleveland, fundado por Erving em 1953, onde permaneceu com Miriam trabalhando e ensinando até 1973. Naquele ano, logo após a publicação desse livro, mudaram para a Califórnia. Lá, em San Diego, criaram o Gestalt Training Center - San Diego, que se transformou num dos centros formadores de gestalt terapeutas mais famosos e procurados de todo o mundo. Profissionais vindos de vários países freqüentaram os cursos oferecidos e coordenados por Erving e Miriam durante as últimas décadas, levando consigo uma bagagem conceitual e vivencial desenvolvida de forma profunda, inteligente, e mais do que isto, o aprendizado de uma postura humanista, acolhedora e amorosa sempre presente em ambos.
Introduzidos na gestalt-terapia por Fritz e Laura Perls, Erving e Miriam Polster pertencem à primeiríssima geração de gestalt terapeutas americanos, respeitados pela comunidade americana e internacional como eminentes teóricos da gestalt-terapia, psicoterapeutas e formadores, tendo sido oficialmente reconhecidos e homenageados por sua importante contribuição ao desenvolvimento da gestalt-terapia na Conferência Internacional de Gestalt, carinhosa e significativamente denominada de “O coração e a alma da gestalt-terapia”, realizada pelo Gestalt Journal, em agosto de 2000, em Montreal, Canadá.
Em 1999 anunciaram seu afastamento progressivo das atividades profissionais, deixando a direção do Centro de Treinamento e participando apenas parcialmente das atividades. Erving, numa breve despedida em seu último grupo de treinamento em La Jolla, em 1999, fala emocionado do que considero ser seu maior legado: “Para todos, desejo apenas que usem sua sabedoria pessoal e que amem trabalhar com as pessoas com quem estão trabalhando, como eu amo trabalhar com as pessoas com quem trabalho. Se forem verdadeiramente gentis e amorosos, então não há com que se preocupar a respeito do que vão dizer, pois as palavras nascerão deste espaço existencial dentro de vocês”.
São as palavras de um “velho terapeuta” que em sua sabedoria deixa os conceitos como fundo e permite que sua humanidade flua no contato com seu cliente.
Essa integração entre o conhecimento teórico e a sabedoria pessoal nos é revelada nas páginas desse livro, o primeiro de uma profícua produção teórica que se seguiu, através da publicação de outros livros e artigos.
No Gestalt Terapia Integrada, conceitos importantes da gestalt-terapia como contato, awareness e a utilização de experimentos são amplamente explorados, aprofundados e trazidos às relações cotidianas e à prática clínica, mostrando claramente a linguagem terapêutica e a relação fluida e criativa entre cliente e terapeuta. Uma visão saudável do conceito de resistência é acrescido a uma detalhada discussão sobre as diversas formas de contato, saudáveis e não saudáveis. Há um nítido desenvolvimento e aprofundamento dos conceitos da gestalt-terapia existentes até então e novos conceitos são criados, baseados em reflexões a partir da prática clínica.
Esse livro foi uma de minhas primeiras leituras sobre gestal-terapia, no início dos anos 80 quando iniciava minha formação, sendo grande nutridor de minha paixão pela abordagem. Desde então sempre me acompanha, principalmente nas atividades de ensino e supervisão aos alunos do curso de formação em gestalt-terapia. Hoje, ao revisar a presente edição, ainda me parece surpreendente, novo e extremamente rico. É um grande presente podermos tê-lo novamente disponível para todos os estudantes e gestalt-terapeutas brasileiros, num momento em que a gestalt-terapia cresce em nosso país encantando as novas gerações, como nos velhos tempos.
Para os que estão ensinando gestalt-terapia, esse livro é indispensável por conter, de forma unificada e inovadora, muitos dos conceitos necessários à formação do gestalt-terapeuta.
Para os que estão iniciando na gestalt-terapia é uma fonte de fácil leitura sem prejuízo da precisão conceitual.
Para todos, sempre aprendizes desta arte, esse livro é guia e companheiro de reflexões, abrindo possibilidades criativas de uma compreensão mais abrangente da gestalt-terapia.

Rosane Lorena Granzotto

Florianópolis, agosto de 2001

GRANZOTTO, Rosane Lorena. “Apresentação à edição brasileira da obra Gestalt-terapia Integrada”, In: POLSTER, Erving e Miriam. Gestalt-terapia integrada. Trad. Sônia Augusto. SP: Summus. 2001