Produção Científica - Artigos e Capítulos
O novo ethos gestáltico
“Ser juntos”, um novo ethos gestáltico
Rosane Lorena Granzotto
É chegado o momento, não temos mais o que esperar. Ouçamos o humano que habita em cada um de nós e clama pela nossa humanidade, pela nossa solidariedade, que teima em nos falar e nos fazer ver o outro que dá sentido e é a razão do nosso existir, sem o qual não somos e jamais seremos humanos na expressão da palavra.
Rubem Alves
I – Do paradigma individualista
Aprendemos e repetimos por muito tempo a famosa oração da Gestalt proferida por Perls (1969) para ilustrar a principal orientação da Gestalt-terapia em direção à autonomia dos sujeitos e a não submissão ao desejo do outro. De grande pertinência para a época pelas características das relações políticas, sociais e de gênero daquele momento histórico, também se fazia valer das teorias da neurose sejam psicanalíticas ou gestálticas, ambas leituras possíveis sobre os conflitos de poder entre o desejo individual e o desejo do outro, seja este outro uma pessoa, uma instituição ou uma ideologia.
Não é o caso exatamente de invalidar a mensagem poética de Perls, ela tem um valor e um lugar importantíssimo na construção de nossa autonomia, na equalização de direitos em nossas relações afetivas e sociais, e principalmente desconstrói a ideia de que precisamos ser como o outro deseja que sejamos para satisfazê-lo e vice-versa.
Porém não podemos deixar de considerar as implicações que um excesso de individualismo produz em todas as formas de relação social.
O nascimento e a priorização da noção de indivíduo, tributária da modernidade, se constitui em oposição à diversas realidades, à sociedade, ao Estado, aos demais indivíduos. A sociedade seria apenas um agrupamento de indivíduos com um único fim, qual seja, o de satisfazer ao máximo os interesses de cada um, o que se contrapõe à concepção de comunidade ou coletivismo, considerados como destrutivos à liberdade individual. A harmonia só seria possível se cada indivíduo pudesse se manifestar tal como é. Daí decorre o conceito de sujeito como central e o culto ao individualismo como paradigma moderno onde as concepções de self são descritas como estrutura intrapsíquica, imanente, um em si separado.
O tratamento fenomenológico dado por Paul Goodman (1951) ao conceito de self subverte esta lógica quando o descreve como um sistema de relações de campo desdobrado em funções compartilhadas como generalidade e apenas uma função individual, a função de ato (ego), que tem a criatividade como característica principal. Tal qual a consciência transcendental, o self é
[...] uma generalidade histórica em torno de dados materiais, os quais, a sua vez, abrem possibilidades e impossibilidades para aquela generalidade. [...] O advento de uma individualidade apenas se configura quando, diante das possibilidades, uma escolha é feita, uma fixação é estabelecida, uma consciência advém. [...] Considerando que essa temporalidade não pertence a um indivíduo, mas a um self
como campo, o ego ele próprio não pertence a um indivíduo, mas é o processo de constituição de uma individualidade num campo organismo/meio. (Müller-Granzotto & Müller-Granzotto, 2007, p. 201)
Porém, mesmo com este avanço filosófico, ainda encontramos na teoria gestáltica resquícios da centralidade no individualismo na ênfase dada à responsabilização sobre as próprias escolhas e atos e na construção da autonomia e auto suporte como objetivo da terapia.
II – Dos ditames pós-modernos
Tudo que despontou na modernidade alcança nos tempos atuais um patamar exacerbado. A pós-modernidade é esta continuidade acentuada do individualismo, da competitividade, do consumismo, da banalização, da busca desenfreada pela beleza e pelo prazer. O mundo virtual e as redes sociais favorecem este culto narcísico, autofágico, onde a alteridade não tem lugar. A diferença é cada vez mais substituída pelo mesmo e arrastada para o lugar da exclusão atendendo assim aos ditames da globalização, que, anulando as diferenças entre as pessoas e as tornando mais e mais idênticas acelera a velocidade da informação, a circulação do capital e das mercadorias (Han, 2017a). Associado a tudo isto está o capitalismo, que na sua versão mais radical e destrutiva, extrapola o sistema econômico se transformando em forma de vida, nivelando a todos como meros consumidores, homens mercadoria, descartáveis e substituíveis. Tudo se torna obsoleto muito rapidamente e precisamos fazer o descarte para em seguida substituir coisas e pessoas por uma novidade mais atraente, conforme os modelos sistematicamente criados e impostos pela mídia a serviço da ideologia capitalista.
Também os relacionamentos se tornam ambíguos, por um lado as pessoas se sentem ansiosas pela segurança do convívio e desejam se relacionar, por outro sentem medo e desconfiança a respeito da condição de estarem ligadas permanentemente. Moldados pela lógica consumista, os amantes buscam satisfação imediata e quando esta deixa de existir não há porque continuar, pois no ideal do prazer permanente não cabem sofrimentos (Bauman, 2003).
Nesta redução de tudo à mercadoria, as identidades também são embaladas para se tornar objeto de consumo se tornando perfis virtuais, imagens perfeitas de sucesso e felicidade. Esta coação expositiva vivida na virtualidade leva à alienação do próprio corpo, coisificado e otimizado, transformado em imagem, pronto para ser consumido por ninguéns (Han, 2017b). E assim nos alienamos mais e mais.
Porém tudo tem seu preço, e em meio ao excesso de demandas por produção e consumo, agora vivido como auto exigência, vemos o crescimento de um sofrimento político, reativo, sujeitos deprimidos e fracassados, angustiados por não conseguirem fazer tudo que poderiam, de não triunfar, culpando-se pelas derrotas e por sua própria incompetência. Em busca de uma realização muitas vezes impossível as pessoas escravizam a si mesmas. Nesta lógica perversa do neoliberalismo vemos sujeitos cada vez mais isolados e individualizados (Han, 2017a).
E estes são os sujeitos que nos procuram, paralisados, impotentes, ou em crise, banalizados e não raro destrutivos, criando os ajustamentos mais inusitados para dar conta de um mundo cada vez mais coercitivo, hostil e excludente.
III – Do mesmo ao “outro”
Me interrogo se uma atitude individualista e nada cooperativa do tipo se não houver coincidência não temos nada a fazer, seria uma orientação terapêutica suficiente
para os sujeitos contemporâneos lidarem com as inúmeras diferenças e transformações sociais, políticas, tecnológicas e relacionais que o tempo foi desdobrando a partir da metade do século passado. Buscar a coincidência para que haja relação exclui a diferença, impossibilita a relação, mata o desejo. Na presença do semelhante estamos sempre sendo surpreendidos pelo “outro”, pela novidade, e vamos em busca disto que é inalcançável, mas que se coloca sempre como um horizonte possível.
Vale lembrar que em sua filosofia da intersubjetividade, Merleau-Ponty (1964) nos diz que o próximo, enquanto outrem, é diferente de mim, não pode ser alcançado, havendo nele uma alteridade radical invisível para mim, “não há coincidência entre o vidente e o visível”, diz ele, “mas um empresta do outro, toma ou invade o outro, cruza-se com ele, está em quiasma com o outro” (1964, p. 235). Portanto, a percepção do outro é, ao mesmo tempo, familiaridade e estranhamento, identificação e diferença. Há entre eles múltiplas possibilidades de quiasma, mas jamais coincidência, nunca constituindo uma unidade de fato sem diferenças. A primeira sensação é o estranhamento, uma quebra do mesmo, um descentramento, um desvio, uma visão desnorteadora, um não continuísmo, e a partir daí se abre a possibilidade do deslocamento, da criação de uma intimidade “intersticial” (Bhabha, 2014), um espaço de comunalidade, uma realidade interpessoal, a parte comum entre “dois círculos quase concêntricos” (Merleau-Ponty, 1969, p. 195).
A teoria é um recurso renovável, e quando visitamos as teorias filosóficas e sociológicas contemporâneas, é inegável a constatação de que não existe outra realidade além daquela que construímos na relação social, e a ideia de construir é fundamental, isto está na definição de Goodman (1951) sobre contato, definido como o: “achar e fazer a solução vindoura” (p. 48). Somos ativos nesta construção, nosso corpo é atravessado por algo que é outro nos abrindo para possibilidades de criação de novas realidades e somos transformados por esta experiência.
Portanto estamos sendo desafiados a pensar uma forma de construção da autonomia que não precise excluir o outro. Isto implica em desenvolvermos uma consciência de que tudo o que escolhemos repercute na vida de nosso semelhante, de que vivemos num contexto ecológico de coexistência, um sistema de mútua dependência e de hetero suporte. Inclui estarmos atentos ao lugar da alteridade na nossa vida, seja ela o próximo ou o próprio planeta, entender que “achar e fazer a solução vindoura” (ibid.) não se refere apenas às minhas necessidades mas sim em ir para o mundo e existir juntos buscando encontrar nas diferenças os “entre lugares” criativos de Homi Bhabha (2014, p. 20), onde as coisas se juntam e se alteram, onde os elementos se influenciam mutuamente criando uma relação híbrida, introduzindo a invenção dentro da existência, dando início a novos signos de identidade. A passagem intersticial entre eu e o outro abre a possibilidade de um hibridismo que acolhe a diferença sem hierarquias ou julgamentos. Estabelece uma intimidade que questiona as divisões binárias abrindo espaço para a diversidade. Neste sentido avançar a fronteira, onde tudo começa a se fazer presente, se deparar com o outro e se haver com ele, é condição de possibilidade não só de crescimento, mas de convivência solidária (ibid.).
Na esteira de Franz Fanon (1986) que já dizia batalhar “pela criação de um mundo humano, um mundo de reconhecimento recíprocos” (p. 218), também nós clínicos gestálticos temos um lugar político a desempenhar nesta conjuntura sócio cultural em que vivemos, na direção de uma sensibilização à presença do outro, à alteridade sempre presente e provocadora de afetos e transformações. Nossa clínica se estabelece através de movimentos interacionistas e intersubjetivos, primamos pela emergência da alteridade, da porosidade dos corpos às afecções, às contaminações que o campo proporciona. Buscamos mais aquilo que define o humano como ser em relação do que aquilo que o
coloca sob o paradigma individualista que o endereça em parte para a autonomia mas também para uma auto responsabilização por tudo que o afeta, o que muitas vezes exclui a produção social do sofrimento.
Compreendemos que o que nos constitui como unidades temporais (históricas) são nossas experiências no campo relacional. A experiência é primeira, o contato é primeiro, a relação antecede o eu e o tu como “personalidades” que são registros verbais, simbólicos do vivido. Quando nos encastelamos no individualismo, cessa o crescimento, a rigidez neurótica se instala, as repetições, o mesmo; mas, até nos ajustamentos evitativos, tais como a introjeção, a retroflexão, etc, há a presença da interação relacional nos afetando como demandas de algo que não podemos dar. Como relações de campo os ajustamentos de qualquer natureza se realizam no laço social, por isso precisam do outro não só para se repetir como também para se transformar em contato fluido.
Ainda a respeito da presença do Outro na compreensão do nascimento da vida psíquica, ou desta espécie de sociabilidade antes de qualquer vida social, vale nos determos sobre as ideias do filósofo alemão Peter Sloterdijk, um fenomenólogo contemporâneo, cujo pensamento de caráter relacional vai ao encontro de outros pensadores pós-humanistas. Sloterdijk (2016) faz uma investigação a respeito do “sujeito antes do sujeito”, uma espécie de “arqueologia da intimidade”, uma ontogênese onde sempre somos Dois. O autor entende a subjetividade não mais como uma cápsula fechada sobre um indivíduo, mas, desde sempre, como um aparato de ressonância de dois polos que se inicia na vida intrauterina, e que buscamos repetir ao longo da vida construindo novas bolhas de ressonância. A história da subjetividade é, então, uma busca pela intimidade que constrói biunidades, numa tentativa de reestabelecer a ressonância inicial.
Vivemos, desta forma, em um campo de coexistência, em relação não apenas aos sistemas biológicos, mas também aos sistemas simbólicos e sociais. Em sua obra Esferas, uma trilogia que parte da análise das microesferas de intimidade interpessoal (Bolhas) às macro esferas da coexistência social (Globos e Espumas), Sloterdijk afirma que nesta grande esfera global em que coabitamos, os ajustes criativos terão que equalizar certas polaridades como por exemplo inclusão e exclusão, vulnerabilidades e superação, familiaridade e estranhamento, etc. O fracasso em lidar com estas ambiguidades se apresentará como falha em coexistir, dificuldade em habitar espaços de intimidade e de solidariedade. Surgem os sujeitos “singles” em bolhas que tendem a perder o poder de criar vínculos emocionais, sofrendo pela deterioração da solidariedade, confinados em sua solidão, deixando de ser participativos, vendo o mundo passar pela tela das mídias. (Ghiraldelli Jr., 2016)
IV - Um novo ethos
Para pensar um novo ethos para a clínica gestáltica que ultrapasse o paradigma individualista e psicologicista, herança da modernidade no discurso dos autores da abordagem, e que de alguma forma se perpetua na prática clínica e nos cursos de formação de gestalt-terapeutas, temos que caminhar na direção de uma concepção do humano como capaz de coexistir numa ética solidária, um ethos do “ser-junto”. Aqui mais uma vez tomo como referência o pensamento de Sloterdijk (2016), em sua investigação de uma ontologia do Dois, especificamente quando faz a passagem da facticidade do ser-aí para a relacionalidade do ser-junto, do estar-com-outro, redefinindo o paradigma existencial fundamentando a ideia de que a coexistência precede a existência.
Se o ser-aí é invariavelmente ser-juntos, não há ato ou espaço possível que não seja ato dialógico ou espaço comunicacional. [...] O ser-juntos fala não apenas da
essência coletiva do ser humano, mas também da determinante relação deste com sua técnica: não somos humanos que possuem técnica, somos humanos exatamente ao possuí-la. Assim, o ser-juntos diz respeito não apenas aos humanos, mas também às relações destes com os mundos que produzem. (Cespedes, 2018, p. 314, 315).
Este paradigma nos abre a questão sobre nossa posição na clínica. Não só em relação a uma concepção da produção do sofrimento mas também na leitura teórica e prática metodológica que desenvolvemos como clínicos. Afinal, esta é a nossa “técnica”, é assim que construímos mundos.
Podemos por exemplo, nos questionar se é possível conceber uma clínica que vise reconstruir um lugar social, uma clínica que não atribua todo sofrimento psíquico apenas ao sujeito, privatizando seus sentimentos, mas que parta da concepção de campo na produção deste sofrimento, ou seja, que entenda que o contexto social, econômico, afetivo, relacional e tudo mais que implica em existir em um determinado mundo são fatores predominantes na criação de vulnerabilidades.
V - Uma Clínica do Sofrimento Ético, Político e Antropológico
Chegamos então na Clínica do Sofrimento Ético, Político e Antropológico, enunciada por Perls e Goodman como a vulnerabilidade de uma das perspectivas da experiência intersubjetiva denominada de sistema self, a função personalidade, conjunto de construções históricas que constituem nossa humanidade social e compartilhada, dimensão antropológica de nosso existir.
Porém Perls e Goodman não nos deixaram mais que uma pista, não avançaram no desenvolvimento desta clínica, o que restou como tarefa nossa. Isto exigiu um aprofundamento do sentido e da abrangência da função personalidade e uma compreensão do que seria a interrupção da espontaneidade vivida como aflição, impotência e desespero, dialogando com a filosofia, a sociologia e a antropologia contemporâneas. Já sabíamos que não se tratava de inibições habituais próprias dos ajustamentos neuróticos, nem mesmo da ausência ou desarticulação dos excitamentos, vulnerabilidade esta encontrada nos ajustamentos psicóticos. A que se deveria então este sofrimento tão contundente que nos assola de imediato a partir da perda de um lugar social?
Trata-se de um sofrimento produzido pela falência social das experiências de contato que ocorre quando da emergência de contingências advindas de nossa condição humana de finitude, de habitantes de um planeta vivo e imersos em culturas permeadas pelas relações de poder e pela exclusão da diferença.
Nestes casos os dados de realidade tornam-se inacessíveis e a continuidade dos atos criativos se interrompem abruptamente. Esta vulnerabilidade está presente nas pessoas vítimas de violência familiar, urbana, racial e de gênero, nos excluídos da cadeia produtiva ou que trabalham na condição de escravos, nos que foram atingidos por uma tragédia natural, nos que foram acometidos de uma doença, naqueles excluídos das relações sociais por conta de preconceitos e conflitos ideológicos e nos sujeitos que são identificados a representações sociais indesejáveis como a loucura, a diferença, a minoria e a marginalidade. O sofrimento aqui é decorrente da não formação, da perda ou da aniquilação das representações sociais, identidades às quais se estava identificado e da impossibilidade de vivenciar o futuro que já estava prospectado (Müller-Granzotto & Müller-Granzotto, 2012a).
O sofrimento pode ser caracterizado como antropológico, político e ético dependendo de sua gênese. O sofrimento propriamente antropológico é o nome que damos ao sentimento que compartilhamos com outros sujeitos diante da finitude da
história, a aniquilação circunstancial da materialidade de nossos corpos funcionais, da perda de pessoas queridas, de nossos lugares de abrigo e identificação. O luto é sempre das possibilidades históricas que não temos mais.
Já o sofrimento de motivação política ocorre quando o desejo do outro se impõe às nossas representações sociais para assim dominá-las. Este é o caso das demandas por produtividade e consumo, desejos do outro capitalista que deixa os sujeitos submissos à determinadas identidades sócio históricas. É o poder exercido sobre os corpos, que Foucault (1979) denomina de biopoder. Suas reflexões são de extrema importância para compreendermos a gênese política do sofrimento. Estamos sujeitos à dispositivos micropolíticos de poder, estes são configurações históricas não intencionais de dominância recíprocas que geram uma estabilidade relativa, um assujeitamento. Resulta disso que o sujeito não é uma interioridade, mas um efeito destas configurações de poder. O jogo de dominação está nos corpos e nas práticas sociais, que são os modos de subjetivação, que acabam se tornando naturalizados e normatizados. Quando as demandas por sujeição se intensificam podem levar às crises neuróticas e às transgressões vividas como conflitos políticos e econômicos. Porém os conflitos são necessários para gerar uma diversidade. É nas rupturas seletivas de continuidade e descontinuidade históricas que a diversidade tem lugar.
O sofrimento de fundo ético se refere a exclusão arbitrária dos sujeitos do campo das representações sociais. É o que acontece nos estados de exceção, nos regimes autoritários, na exclusão social das formações psicóticas e interdição dos direitos civis do sujeito da psicose, nas segregações raciais e de gênero, na violência em regime carcerário, entre outros inúmeros exemplos que poderíamos citar (Müller-Granzotto & Müller-Granzotto, 2012a).
VI - Ajustamentos de Inclusão
Diante destas impossibilidades surge um novo ajustamento ao qual denominamos de ajustamento de inclusão. Trata-se de uma criação que tem relação com os apelos por gratuidade, por suporte, verdadeiros pedidos de ajuda por inclusão. Assim o semelhante é colocado no lugar de um corpo auxiliar, que pode se utilizar do que para si não está interditado para ajudar o sujeito excluído a resgatar um lugar social. Funda-se assim, a experiência da ajuda desinteressada, gratuita, e um tipo especial de identificação que é a solidariedade. À gratuidade deste ato, o sujeito sofredor responde com gratidão e a vida social alcança um patamar propriamente humano, onde cada qual é capaz de doar-se a outrem independentemente dos valores ou projetos políticos a que esteja ligado ou submetido (Müller-Granzotto & Müller-Granzotto, 2012b).
Sloterdijk se refere à solidariedade como uma “ética da generosidade”, que também se traduz em bravura, sentido de cuidado, capacidade de colocar a indignação em favor do que se quer preservar. “Dar mais que receber e fazer as coisas por doação e orgulho de cuidado é mais inteligente e natural para Sloterdijk” (Guiraldelli, 2016, p. 320).
VII - Clínica da Inclusão
Esta clínica se caracteriza pelo desvio da nossa atenção em direção àquilo que se manifesta como sentimento de exclusão, para o sofrimento expresso como desespero, impotência e aflição. É a clínica da escuta ao pedido de socorro ao qual somos conclamados e respondemos com suporte e acolhimento, acompanhando o processo de
reconstrução da autonomia e tomada de decisão que cada sujeito sofredor empreende face aos conflitos e dificuldades que esteja vivendo.
Temos a mais importante das ferramentas conceituais, nossa compreensão da experiência de subjetivação e dessubjetivação como uma função de campo. A partir daí entendemos a própria experiência clínica como uma experiência de campo de afetos, gestos e significados. Olhamos prioritariamente para a relação, para o vínculo. Trabalhamos na relação, criando e recriando realidades sociais, atuando politicamente. Trabalhamos com horizontes temporais que nos permitem construir no agora com um olhar prospectivo, sabendo que isto só é possível a partir de um fundo de passado que é permanentemente requisitado no presente. E é neste lugar, tão conhecido por nós gestalt-terapeutas, que vamos vivenciar aquilo que nos aflora espontaneamente frente aos ajustamentos de inclusão. A doação de nossos corpos para a criação de um novo oikos de ressonância que favoreça a inclusão do sujeito sofredor no mundo do reconhecimento social.
Iniciamos este processo acolhendo o sofrimento. Isto implica em uma atitude de aproximação, um disponibilizar-se a ouvir o outro, a dar crédito aos seus lamentos, a dar lugar ao sujeito sofredor. Essa é uma das atitudes de maior relevância ética, política e antropológica da intervenção nos ajustamentos de inclusão.
Ética por reconhecer a alteridade, acolher o semelhante em suas diferenças, seu sofrimento, mas também suas alegrias, suas formas singulares de sentir e agir na vida. É o cuidado que podemos dirigir àquilo que nos é outro. Política porque potencializamos protagonismos, acompanhamos as tomadas de decisão na reconstrução de identidades fragmentadas ou perdidas, o que também implica em um compromisso com a coletividade. Antropológica porque trabalhamos reconstruindo vínculos que proporcionem uma vida mais humanizada e solidária.
A intervenção clínica em relação ao sofrimento ético, político e antropológico se traduz em atitudes de disponibilidade gratuita, sem objetivos pessoais, onde emprestamos nosso corpo, nossa presença, nosso conhecimento, mas principalmente nosso cuidado e sensibilidade. Sua marca fundamental é a solidariedade, a inclusão, a luta pela criação de um mundo plural onde possamos coabitar com os que são diferentes. E é nos momentos mais dramáticos que compartilhamos com nosso semelhante, que nos damos conta de que participamos de um mesmo destino, de uma mesma vulnerabilidade, expostos à violência, à dor e à morte, que somos comunidade e que vivemos numa dependência mútua.
Nesta realidade de nada vale a atitude individualista e competitiva, temos sim que nos solidarizar e nos sustentar coletivamente, numa sociedade colaborativa e inclusiva, orientados por um novo ethos, o de “sermos juntos”.
REFERÊNCIAS
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Sloterdijk, P. Esferas I: Bolhas. Trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2016.
i Artigo publicado em BOCCARDI, D.O. (org). Gestalt-terapia e Sociedade, São Paulo: Ed. LiberArs, 2021, p.75 a 85.