Produção Científica - Artigos e Capítulos

Novas Clínicas Gestálticas

MÜLLER, M.J.; GRANZOTTO, R.L.


Tal como se pode ler na terceira parte do segundo volume do Gestalt-terapia (1951), ao conceberem a experiência clínica como um sistema-self, Perls, Hefferline e Goodman (doravante PHG) concebem ao menos três lugares diferentes que podem ser ocupados por um clínico. Eles são pensados a partir da presença ou ausência, em um campo que envolve o clínico, o consulente, ou vários consulentes, das funções atribuídas a um sistema self. Trata-se da psicose (comprometimento da função id, lugar ético de manifestação dos afetos), da neurose (comprometimento da função de ego ou de ato, lugar político da manifestação dos desejos) e da aflição (comprometimento do self espontâneo, a saber, das representações sociais compartilhadas que constituem a dimensão antropológica de nossa existência ou, simplesmente, função personalidade). Segundo os autores em tela: “(c)omo distúrbio da função de self, a neurose encontra-se a meio caminho entre o distúrbio do self espontâneo, que é a aflição, e o distúrbio das funções de id, que é a psicose” (1951, p. 235). O que significa dizer que, o distúrbio (ou vulnerabilidade) de uma função ou de outra reserva ao clínico um lugar especial:
- se não houver fundo afetivo para as demandas, o clínico será convidado a ser testemunha da atividade de produção de suplências aos afetos, suplências estas às quais denominamos de ajustamentos psicóticos;
- se a função de ato (ego) no consulente se apresentar dividida por conta de um fundo inibitório, o clínico será demandado a agir pelo consulente, o que caracteriza um ajustamento neurótico;
- mas se não houver, para o clínico e seus consulentes, representações às quais possam se identificar, seja por conta de uma privação antropológica (como nos desastres), política (como na exclusão psicossocial e político-econômica) ou ética (como nos regimes totalitários de encarceramento), o clínico será conclamado a prestar uma ajuda solidária, será requisitado a participar de um ajustamento de inclusão.
Em rigor, apenas a clínica da neurose foi desenvolvida por PHG. As outras duas, apesar de anunciadas, permaneceram incoativas; e tem sido objeto de nosso esforço desenvolver, a partir da teoria do self, a clínica da psicose e do sofrimento ético-político e antropológico (Müller-Granzotto & Müller-Granzotto, 2007, 2008; Müller-Granzotto, M. J. 2009, 2010; Müller-Granzotto, R.L., 2010.)
Acontece, entretanto, que nenhuma destas três modalidades logra pensar certos fenômenos clínicos típicos de nosso tempo, embora não duvidemos que eles estivessem presentes em outras épocas. Referimo-nos àquelas experiências de consultório, mas não exclusivamente, em que não nos sentimos manipulados (como nos ajustamentos neuróticos, em que somos manipulados a desejar pelos consulentes), ou rejeitados (como nos de busca, em que as buscas na realidade tomam o lugar dos afetos ou excitamentos), ou ainda convocados a uma ação solidária (como nos ajustamentos de inclusão em decorrência do sofrimento ético-político). Referimo-nos àquelas experiências em que nos sentimos antes ameaçados, seja pela inconseqüência dos ajustamentos que nossos consulentes produzem, seja pela finalidade mesma desses ajustamentos, que às vezes faz de nós alvos a serem aniquilados.
Em comum, estas experiências põem em tela um flagrante conflito entre as possibilidades políticas (ou desejos) dos sujeitos (de atos) que nos procuram e nossa posição política e antropológica, a qual, por vezes, encarna os desejos, os valores e pensamentos do Outro Social (conjunto de introjetos compartilhados intersubjetivamente como dispositivos de saber e de poder). Aparentemente, tudo se passa como se aqueles sujeitos não encontrassem lugar para desempenhar, face aos nossos desejos e ao nosso sistema de pensamentos e valores, os desejos que lhes valessem a ocasião de operarem com os excitamentos que nosso encontro houvesse desencadeado. Ou, ainda, tudo se passa como se nossa posição (política e antropológica) significasse para estes sujeitos a impossibilidade de operarem com os próprios desejos. Razão pela qual estes sujeitos ver-se-iam obrigados a substituir seus desejos por semblantes de desejo, como se assim pudessem escapar ao conflito. Ou, então, ver-se-iam obrigados a assumir uma postura quase hostil, eminentemente estratégica, a qual faria de nós alvos a serem aniquilados. Nos dois casos, reconhecemos dois ajustamentos criadores, duas formas originais para lidar com o conflito político e antropológico constitutivo da vida social dos sujeitos de ato: provisoriamente denominamos a estes ajustamentos de “banais” e “anti-sociais”. Entrementes, porquanto nestes modos de ajustamento o conflito não implica a multiplicação das possibilidades de criação social, porquanto, nestes modos de ajustamento, o sujeito de atos ou se aniquila ou aniquila o interlocutor (no caso, o terapeuta), julgamos possível e recomendável o estímulo a novas formas de vivência do conflito, às quais não necessariamente impliquem a aniquilação da interlocução.

Ajustamentos banais

É uma realidade de quase todas as famílias a existência de parentes improdutivos, ou estagnados em algum tipo de atividade repetitiva, incapaz de produzir interesse ou respeito. Ou, então, é comum para todos nós termos de conviver com pessoas destituídas de ambições, projetos e desejos, como se a única coisa que lhes restasse fosse reproduzir alguns poucos papéis na periferia das ideologias de massa. Aparentemente, não se interessam em ser reconhecidos (como cidadãos, como empreendedores, como consumidores), preferem desfrutar no anonimato as imagens produzidas em sites de pornografia e em redes de relacionamento (twitter, facebook, Orkut, reality show...), ou entregar-se ao entorpecimento produzido por substâncias marginalizadas (como a cocaína, o álcool, LSD, o ecstasy, para citar algumas). Em vez de se posicionarem nos conflitos e nas disputas de natureza política e econômica, deixam-se governar pelos jogos de azar, pelas previsões místicas e pelos rituais secretos de natureza disruptiva (como nos distúrbios alimentares). São pessoas moldadas às poucas e fugazes possibilidades fornecidas àqueles que desistiram de ocupar um lugar social ou operar com os próprios desejos; o que, por vezes, significa fazer do corpo (tátil, imagético e discursivo) mercadoria sem valor subjetivo, qual gadget (para usar a gíria da eletrônica). O que não significa haver entre estas pessoas e os gadgets uma relação de identificação passiva, como aquela que caracteriza a função personalidade. Ao contrário, os gadgets não desencadeiam nenhum tipo de implicação subjetiva. São apenas geringonças, destituídas de importância e afetividade, destinadas apenas ao consumo sem meta. Quando fazem do corpo-próprio um gadget os sujeitos abdicam da própria capacidade de agir e, por conseguinte, nivelam-se a condição de mercadorias supérfluas.
A vinda ao consultório destes sujeitos-mercadoria é para o clínico algo sempre muito decepcionante. Não se vê, nesses consulentes, nenhuma sorte de reflexão, menos ainda contato com o que possam estar repetindo (função id), ou desejando (função de ato). Os sujeitos-mercadoria não tentam responder (como nas psicoses), menos ainda manipular (como nas neuroses), ou pedir ajuda (como no sofrimento ético-político). Eles simplesmente “substituem” a awareness pelo consumo supérfluo e inconseqüente, como se neste tipo de consumo estivessem desincumbidos de sentir (awareness sensorial), desejar (awareness deliberada) e assumir identidades sociais (awareness reflexiva). Parecem antes desertores da própria condição de sujeitos (de ato). Não querem sentir nada: tomam analgésicos para a dor, antidepressivos para a tristeza, reguladores de humor para a alegria, cafeína para o sono, indutores de sono para a vigília. Também não querem fazer nada: alienam-se na sorte e no azar em vez de trabalhar, consomem em vez de se divertir, usam jargões em vez de se comunicar, vestem-se com tecnologia – fones de ouvidos, telefones, games – para se conectarem a nada. Tampouco querem se refletir em representações sociais que lhes valessem identidades das quais se orgulhassem: mostram-se em restos de semblante – piercing, silicone, músculos “bombados”, tatuagens, tênis de marca (...) – para não serem vistos; fixam-se em imagens pelas quais não precisam responder – pois as comunidades virtuais não exigem “opinião”, “debate”, “reflexão” aos seus seguidores -; acompanham a vida alheia sem o risco de serem interpelados - pois, a vida do outro retratado em álbuns e filmes postados na internet não toma conhecimento de mim -; desprezam a família, a comunidade e a sociedade sem precisar se posicionar – como na anorexia -; posicionam-se de modo a que ninguém possa saber – como na bulimia. Nos restos da cultura ¬– sejam tais restos drogas, semblantes fragmentados, gadgets, jogos de azar ou identidades disruptivas (como no caso dos distúrbios alimentares) - resume-se toda a vida do consulente, que assim se dispensa de ter desejos ou identidades sociais pelas quais pudesse se responsabilizar. Ao contrário, a substituição dos desejos e papéis sociais por restos de cultura parece ser uma estratégia de banalização das demandas.
Eis por que, inspirados nos relatos da filósofa Hannah Arendt (1963) a respeito do julgamento do nazista Adolf Eichman, resolvemos denominar de banais a estes ajustamentos. Trata-se de sujeitos que, diante deste Outro muito poderoso, que é o Outro capitalista, abrem mão dos seus excitamentos e de suas autonomias criativas, mas nem por isso se submetem a ele, elegendo a banalização das demandas como forma de resistência. De onde não se segue nossa adesão à leitura de Hannah Arendt. Se, por um lado, concordamos com Hanah Arendt em que os sujeitos devem poder ser responsabilizados pelas conseqüências de seus atos banais, por outro, eles devem poder ser ajudados. Afinal, ainda que se trate de atos injustificáveis, os atos banais podem ser reações face às injunções totalitárias do Outro social. Por outras palavras, os atos banais – ainda que inconsistentes do ponto de vista do ideal que reconhece a autonomia e responsabilidade de cada ser humano – podem ser compreendidos como uma forma de resistência – ineficiente, sem sombra de dúvida – diante da exigência capitalista de que nos tornemos sujeitos consumidores a despeito de nossos excitamentos e de nossas identidades sociais. E nossa proposta gestáltica diante da banalidade consiste, por um lado, na responsabilização dos sujeitos envolvidos; mas, também, no encorajamento da capacidade de cada qual para enfrentar o Outro capitalista.
O tratamento ao sujeito banal é uma demanda do próprio Outro capitalista. Afinal, porquanto se transformaram em sujeitos-mercadoria, os sujeitos (agora banalizados) deixaram de desejar, o que significa dizer, deixaram de consumir novas mercadorias e, assim, movimentar o mercado capitalista. Reabilitar o desejo por novas mercadorias: eis a expectativa do Outro Social capitalista em relação aos sujeitos banais. E, na contramão da expectativa capitalista, acreditamos que não devemos tirar de todo o objeto da alienação banal (a droga, a imagem, o vício...). Afinal, não podemos esquecer que este objeto seja, talvez, uma forma de resistência face ao Outro Social. De onde nossa simpatia pela política de “redução de danos”: ela é um acompanhamento que, ao mesmo tempo em que preserva as poucas formas de defesa construídas pelo sujeito banal, mobilizam nele alternativas de enfrentamento, porquanto, na redução de danos, não se trata de reabilitar um consumidor, mas de reabilitar um sujeito crítico em relação às causas de sua banalização.
Nas formas de banalização relacionadas ao escamoteamento do conflito, como é o caso das formações disruptivas, tais como a anorexia (em que o sujeito despreza a família, a comunidade e a sociedade sem precisar se posicionar) e a bulimia (em que o sujeito posiciona-se de modo a que ninguém possa saber), a estratégia de intervenção também consiste no encorajamento dos sujeitos. Eles devem poder ser mobilizados a assumir e a executar o desejo de enfrentamento ao Outro Social, geralmente representado por algum familiar, parente ou figura de poder, contra o qual não conseguem fazer valer os próprios desejos.
De um modo geral, acreditamos que o trabalho de “restituição do lugar de protagonistas aos sujeitos que desistiram de sua capacidade ativa em favor de restos da cultura de massa” é a estratégia mais eficiente tanto para a redução dos danos advindos da alienação irresponsável, sem reflexão (como diria Hannah Arendt), quanto para o enfrentamento da verdadeira causa do esvaziamento da capacidade crítica destes sujeitos, precisamente, o totalitarismo do Outro capitalista, constitua-se ele na forma de uma demanda de consumo ou de uma demanda por adesão cega a uma ideologia. Resgatar, nos sujeitos banais, a revolta, indignação e capacidade reativa é o mesmo que fortalecer, em cada qual, a função de ato por cujo meio eles haverão de mobilizar desejos (políticos) a partir dos excitamentos disponíveis e identidades sociais críticas (face às demandas totalitárias).

Ajustamentos anti-sociais

Assim como o sujeito banal, o anti-social não está alienado na cultura, no Outro social (capitalista). Também tenta destruí-lo. Mas, à diferença do banal, lança mão de seus excitamentos e produz desejos (políticos) de confrontação, cuja meta, em última instância, é repetir a satisfação advinda da supressão da presença do Outro Social. O que significa dizer que, diferentemente dos ajustamentos banais, nos ajustamentos anti-sociais, os sujeitos enfrentam abertamente o Outro autoritário. Não se trata de um expediente paranóico, como se o sujeito induzisse o Outro Social a ocupar uma posição que justificasse o enfrentamento. Ao contrário, o sujeito agora parece não precisar de motivos para enfrentar o Outro Social. E o faz de um modo que sequer o Outro Social percebe que está sendo aniquilado.
Seja na Atenção Básica, no trabalho junto ao território em que vivem as famílias, ou nos consultórios particulares, é relativamente freqüente entre os profissionais de saúde o sentimento de desconforto, fortemente relacionado ao medo proveniente de uma ameaça que se anuncia na postura assumida por determinados usuários ou consulentes, os quais, não obstante a forma sedutora com a qual nos investem no lugar de cuidadores ou defensores, paulatinamente impõe-nos condições constrangedoras, que inviabilizam nosso trabalho. Não se trata da presença de ações manipulativas, como nos ajustamentos de evitação, em que somos requisitados a nos responsabilizar pela ansiedade dos sujeitos demandantes, como se pudéssemos ou devêssemos fazer algo que eles próprios não querem fazer. Ao contrário, tudo se passa como se, sob o pretexto de uma solidariedade ético-política, ou de uma encantadora manipulação neurótica, fôssemos enredados em uma trama, cujo desfecho fosse nossa aniquilação ou, pelo menos, a aniquilação de nossos valores e instituições (PHG, 1951, p. 148). Tornamo-nos confidentes de crimes, contravenções e vulgaridades, cujo relato – por parte do consulente – gera em nós constrangimento; constrangimento que ao consulente parece divertir. Ou, então, somos enredados em jogos relacionais, como aquele em que determinada pessoa começa a fazer terapia para destruir a relação terapêutica que havíamos estabelecido com o amigo dela – e por quem, ademais, fomos recomendados. Sentimo-nos obrigados a sair da condição de clínicos para defender nossa própria moralidade ou condição profissional, uma vez que sentimo-nos ameaçados por inverdades e estratégias belicosas estabelecidas pelos consulentes. A estes consulentes, muito mais do que qualquer ajuda profissional, interessa-lhes nosso mal-estar por havermos sido denunciados em nosso constrangimento ou parcialidade. Interessa o poder destrutivo que possam exercer sobre nós, o medo que possam gerar e com o qual parecem satisfazer-se.
Na segunda parte do segundo volume do Gestalt-terapia, PHG (1951, p. 141) apresentam um pequeno estudo sobre o que podemos entender por anti-social. Segundo eles:
(e)sforçamo-nos para mostrar que no organismo, antes que se possa denominá-lo de algum modo uma personalidade, e na formação da personalidade, os fatores sociais são essenciais. (...) É nesse sentido que podemos falar de um conflito entre o indivíduo e a sociedade e denominar determinado comportamento de “anti-social”. Nesse sentido também devemos certamente denominar certos costumes e instituições da sociedade de “anti-pessoais”.

Ou seja, antes de considerarmos o anti-social como um delinqüente, é preciso perceber que se trata de alguém que procura “aniquilar” (e não destruir) aquilo que ameaça sua capacidade de sobrevivência social (PHG, 1951, p.148). Desse ponto de vista, o anti-social é um comportamento criativo, um ajuste diante da ameaça que vem do mundo social. Conforme tentamos mostrar no IX Congresso Nacional de Gestalt-terapia em Vitória (Müller-Granzotto, 2009), acreditamos que a gênese das condutas anti-sociais possa estar relacionada às vivências de desistência estabelecidas pelas crianças em relação às identificações ao Outro Social, quando este Outro Social apresenta-se de maneira muito autoritária. Porquanto as identidades imaginárias fornecidas pelo Outro Social exigem ou provocam a interdição das ações desejantes desempenhadas pelas crianças, estas desistem das imagens às quais se associaram (ou foram obrigadas a se associar). Em vez da entrega passiva aos rituais e valores impostos, as crianças operam pequenos atos supressivos, os quais, não obstante declinarem do prazer (ou desprazer) advindo da identificação ao Outro Social, geram para elas certa satisfação. E eis a base daquilo que, mais tarde, pode retornar não apenas como uma decisão política face ao Outro Social, mas como uma fantasia supressiva, a que chamamos fetiche.
Não é impossível que as experiências infantis de enfrentamento ao Outro Social sejam assimiladas como hábitos; o que significa dizer que, uma vez dissolvidas em sua materialidade, restem como formas motoras e linguageiras disponíveis às demandas por excitamento que possam vir a receber nas configurações sociais futuras. É o certo que estes hábitos assimilados não pertencerão às crianças ou aos adultos nos quais vierem a se transformar, mas às situações sociais em que estiverem inseridas e nas quais uma demanda por hábitos estiver vigendo. Razão pela qual, pode ocorrer de uma demanda social exigir do sujeito de atos de então, mais do que a contrariedade ou a submissão (que corresponderiam a representações sociais específicas), certo envolvimento afetivo mais além da inteligência social requerida. E o afeto que pudesse emergir na realidade poderia ser carreado justamente por um hábito relacionado a alguma supressão que, do fundo de excitamentos disponíveis (o qual, como sabemos, não diz respeito à biografia de um sujeito, mas a sua participação na história impessoal ou função id), retornasse como orientação intencional. O sujeito de atos, então, mais além da resposta submissa ou combativa (que, como dissemos, são papéis sociais), articularia uma fantasia anti-social, como se a submissão ou o combate pudessem simultaneamente desencadear a supressão do demandante ou de qualquer agente representativo do Outro Social.
E eis então os ajustamentos anti-sociais, os quais consistiriam na produção de fantasias específicas voltadas para a supressão do Outro Social. Correlativamente às respostas da ordem da função personalidade, os sujeitos de ato articulariam no campo intersubjetivo uma fantasia cuja meta, ainda que indeterminada (como sucede a toda fantasia), dirigir-se-ia à supressão daquele que representasse o Outro Social . O nome que damos a esta fantasia supressiva é “fetiche”. À diferença da situação inacabada característica dos ajustamentos de evitação, o fetiche não é uma fantasia que ficou retida no passado por conta da ação de uma inibição. Ele é uma fantasia produzida no presente, razão pela qual, ademais, não está acompanhada de ansiedade (como no caso das fantasias manipulativas produzidas nos ajustamentos de evitação).
Intervir clinicamente nestes casos é, sobretudo, introduzir para o consulente um motivo com o qual possa se identificar e por meio do qual possa preferir o prazer da identificação a determinados papéis sociais em vez da satisfação da aniquilação. O primeiro passo da intervenção clínica, portanto, é distinguir até que ponto o ataque que estejamos a sentir é uma reação a uma postura arbitrária que estejamos a ostentar, ou é uma fantasia em que nos sentimos convidados a repetir um ritual de supressão que possa nos aniquilar. Caso a configuração de campo aponte para a segunda hipótese, é tarefa do clínico desviar o consulente para aquilo que pudesse ser surpreendente na articulação da fantasia supressiva, precisamente, que houvesse da parte do Outro Social (seja ele ou não representado por nós) tolerância suficiente para reconhecer, nas fantasias do consulente, uma demanda por inclusão social respeitosa. Ademais, a valorização da capacidade de confrontação que pudesse haver no consulente o deslocaria para um lugar não apenas desejável, mas também louvável, junto ao qual poderia desfrutar de certo prazer. De todo modo, a prudência deve ser a regra de ouro do clínico, afinal, a busca por satisfação (com a supressão alheia) não é uma deliberação da qual o consulente tenha “consciência” e a ingenuidade pode ser desastrosa para ambos.

Referências
ARENDT, Hannah. 1963. Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
GRANZOTTO, M.J.M.; GRANZOTTO R.L. 2009. Gênese das funções e dos modos de ajustamento no universo infantil à luz da teoria do self. In: XII Encontro da Abordagem Gestáltica e IX Congresso Nacional de Gestalt Terapia, Vitória – ES. 2009
_____. 2010. Clínica de los ajustes psicóticos. Una propuesta a partir de la Terapia Gestáltica. Revista de Terapia Gestalt de la Associación Española de Terapia Gestalt. Nº 30, enero de 2010, p. 92-97.
GRANZOTTO, M.J.M.; GRANZOTTO, R.L. 2010. La clínica gestáltica de la aflicción y los ajustes ético-políticos. Revista de Terapia Gestalt de la Associación Española de Terapia Gestalt. Nº 30, enero de 2010, p. 98-105.
_____. Fenomenologia e Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 2007.
_____. 2008. Clínica dos ajustamentos psicóticos: uma proposta a partir da Gestalt-terapia. IGT NA REDE, v. 5, p. 8-34
[PHG] PERLS, F.; HEFFERLINE, R.; GOODMAN, P. 1951. Gestalt
Terapia.Trad. Fernando Rosa Ribeiro. São Paulo: Summus, 1997.