Produção Científica - Artigos e Capítulos
Fenomenologia da awareness em Perls e Goodman
Fenomenologia da awareness em Perls e Goodman
Müller, M. J.; Granzotto R. L.
Sinopse: Trata este artigo do modo como, por meio de uma releitura fenomenológica da noção de awareness, Paul Goodman ajudou Frederick Perls na superação dos impasses teóricos implícitos à obra Ego, Fome e Agressão, e que, fundamentalmente, consistiam na dificuldade para se articular, num só discurso, a tese goldsteiniana sobre a existência de uma espontaneidade vivida sob a forma de uma intencionalidade organísmica e a tese psicanalítica sobre o caráter eminentemente histórico dos ajustamentos comportamentais estabelecidos no meio.
Palavras-chave: awareness intencionalidade consciência temporalidade
1 Impasses teóricos de Perls e a virada fenomenológica de Goodman
Conforme Stoehr (1994), biógrafo de Goodman, Perls e Goodman se conheceram em função de um artigo escrito por esse último a respeito de Reich, no qual seu autor concluía sobre a necessidade de uma profunda revisão na metapsicologia freudiana. Perls – que havia feito análise com Reich – interessou-se pelas idéias de Goodman, a quem confiou não apenas uma cópia da obra “Ego, fome e agressão” (1942), como também anotações que havia feito um pouco antes de partir da África do Sul. Em tais anotações, Perls se ocupava de refletir sobre sua prática psicoterapêutica à luz das noções que havia elaborado a partir de Goldstein, Smuts e Friedlaender . O principal desafio de Perls era caracterizar a experiência clínica como um evento de campo em que, paradoxalmente, se manifestasse uma espontaneidade egológica. Mas, ainda que as terminologias de Smuts e Friedlaender tivessem contribuído para tal caracterização, elas não conseguiam dirimir o descompasso entre a visada eminentemente material de Goldstein e a visada principalmente histórica que, por meio da noção de “ego insubstancial”, Perls procurava reabilitar da psicanálise. Ou seja, ainda que a noção goldsteiniana de auto-regulação ou de intencionalidade organísmica permitisse a caracterização do organismo como uma forma de subjetividade, essa subjetividade não incluía elementos temporais, os quais - Perls bem o sabia - eram recorrentes na experiência clínica. Goodman teria então sugerido a Perls a utilização de uma terminologia fenomenológica. Afinal, esta não apenas resguardava a matriz teórica da noção de campo empregada pelos psicólogos da gestalt – a qual Goldstein importou – bem como a fundamentava em uma egologia transcendental, cuja nota característica era justamente a temporalidade . Eis que nascia uma parceria dedicada não apenas a repensar a psicoterapia – da qual se teria desprendido a Gestalt-terapia -, mas também dedicada a descrever essa psicoterapia a partir de um referencial coerente com o caráter temporal dos eventos de campo que a caracterizassem.
Goodman sabia que Goldstein estava certo ao conceber o organismo como uma forma específica de regulação da matéria físico-química junto a um campo amplo de fatores, que denominava de meio. Mas, a psicanálise também estava certa ao dizer que o campo tem relação com uma subjetividade anônima, genérica, que se exprime de um modo particular em cada objeto. Ora, segundo Goodman (apud STOEHR, 1994), a noção fenomenológica de consciência transcendental responderia a essas duas verdades. Por um lado, ela é a dinâmica intencional de constituição de objetos em que ela mesma experimenta sua unidade, sua regulação. Por outro, ela é isso que sobeja em todo objeto, isso que ultrapassa todas as formas objetivas em proveito de sua própria generalidade temporal. Eis porque o próprio Perls (1969) irá dizer que “(e)u fiz da awareness o ponto central da minha abordagem, reconhecendo que a fenomenologia é o passo básico e indispensável no sentido de sabermos tudo que é possível saber. Sem consciência nada há. Sem consciência há vazio” (p. 88). Mas, em que sentido se relacionam as expressões awareness e consciência? Em que sentido o termo awareness designa os processos intencionais, especificamente temporais, que caracterizam a consciência transcendental?
2 Awareness e intencionalidade fenomenológica
É especialmente no segundo tomo da obra “Gestalt Terapia” que Perls, Hefferline e Goodman (1951) se ocupam de esclarecer os conceitos que nomeiam essa forma peculiar de ler e de articular, nos termos de uma nova abordagem psicoterapêutica, chamada de Gestalt-terapia, a intencionalidade organísmica e a historicidade da nossa existência.
O primeiro dos conceitos esclarecidos é justamente o conceito de awareness. Todavia, diferentemente do que acontecia na obra “Ego, Fome e Agressão” (1942), Perls - agora conforme a redação de Goodman - não vai discutir a awareness a partir de Smuts e Friedlaender . Para se compreender em que sentido a awareness designa nossa intencionalidade organísmica, bem como “nossos problemas” na vivência dessa intencionalidade, Perls e Goodman (1951) postulam uma “fenomenologia”, à qual caberia descrever os “fatores” que caracterizassem a awareness não como uma faculdade, mas como um “estado” (p. 33). A fenomenologia, desde então, passa a inspirar o modo de intervenção teórica a ser implementado na fundamentação dessa nova abordagem psicoterapêutica, que é a Gestalt-terapia. Tal abordagem exigiu dos seus criadores uma adequação dos termos utilizados por Perls (1942) em “Ego, Fome e Agressão” ao formato transcendental e, nesse sentido, eminentemente processual, da linguagem fenomenológica. As transformações da noção de awareness são exemplares nesse sentido.
No livro “Gestalt Terapia”, a noção de awareness é, de longe, a mais empregada. Não apenas isso, ela está integrada a quase todas as outras noções-chave do texto, como se pode observar na definição apresentada na introdução do segundo volume do livro. Conforme Perls e Goodman (1951), a awareness “caracteriza-se pelo contato, pelo sentir (sensação/percepção), pelo excitamento e pela formação de gestalten. O seu funcionamento adequado é o reino da psicologia normal; qualquer perturbação cai na categoria de psicopatologia” (p. 33) [grifo dos autores]. A segunda parte dessa definição trata daquilo que Perls (1942) já havia compreendido em “Ego, Fome e Agressão”, a saber, que a saúde organísmica está diretamente relacionada com o fluxo de awareness, ao passo que as formas de ajustamento disfuncional têm relação com a interrupção deste fluxo. A primeira parte, por sua vez, ocupa-se de sintetizar os aspectos principais da awareness entendida não como faculdade, mas como processo ou como “sistema-awareness” (PERLS, HEFFERLINE e GOODMAN, 1951, p. 192). Nesse sentido, a awareness é apresentada como aquilo que se dá no contato, a partir de um sentir, em forma de excitamento e em proveito da formação de “gestalt”. Ora, mas o que significam os termos contato, sentir, excitamento e formação de “gestalt”? Em que sentido designam um processo?
Perls e Goodman descrevem cada um dos termos da definição. Em primeiro lugar, tratam do contato. Ainda que, mais adiante, discutam especificamente esta noção – a qual designa a totalidade de uma determinada vivência que, por meio da awareness, operamos no interior do campo organismo/meio – no que diz respeito à definição de awareness, o contato vem remarcar as transformações que, junto à materialidade, operamos relativamente à nossa própria historicidade. Contatar é ligar-se a algo diferente e, por conseguinte, transformar aquilo que até então vigia como nossa identidade. Isso não significa que toda ligação material ocorrida no organismo ou no meio implique em awareness: a quebra de uma molécula na atmosfera ou a replicação de uma fita cromossômica, por exemplo, não exigem awareness. As ligações materiais que implicam awareness são aquelas que mobilizam meu passado, abrindo para ele um horizonte de futuro.
Para que um passado seja mobilizado em direção ao futuro é preciso, evidentemente, que esse passado esteja disponível, que ele acompanhe cada vivência material de contato. Eis então que Perls e Goodman falam do sentir. Ele é o responsável por essa disponibilidade da história de cada qual. Aliás, ele é a própria disponibilidade da história. Sentir não é, portanto, uma faculdade “receptiva” imanente à nossa constituição orgânica. Tal como os fenomenólogos, Perls e Goodman invertem a relação clássica entre estímulo e reposta, para dizer que não é o estímulo que gera um efeito (denominado recepção sensível), mas, ao contrário, é a nossa história que se transcende em direção à novidade material, determinando assim a natureza específica dessa novidade. Por isso, “(o) sentir determina a natureza da awareness, quer ela seja distante (p.ex., acústica), próxima (p.ex., tátil) ou dentro da pele (proprioceptiva)” (PERLS, HEFFERLINE e GOODMAN, 1951, p. 33). Afinal, o sentir é a prévia presença do passado como aquilo a partir do que cada dado material pode assumir um sentido, um valor.
Isso não significa, porquanto sejamos dotados de sensibilidade, que todo e qualquer dado material possa se transformar em um valor para nossa existência. Para advir como valor ou sentido em nossa vida, o dado precisa “mobilizar” nosso fundo histórico, o que significa dizer que ele deve perfilar um horizonte de possibilidades futuras para nosso passado. Ou, então, o dado precisa despertar para nossa história uma perspectiva de futuro, a chance de uma retomada. Perls e Goodman denominam de excitamento esse processo de mobilização da história em torno do dado material. Excitamento, portanto, não se restringe ao que está materialmente dado (no contato) ou co-presente como dimensão temporal (sentir). Excitamento é um processo eminentemente temporal, por cujo meio, na materialidade do dado, experimentamos a possibilidade de retomada presuntiva de nós mesmos.
Eis porque, enfim, se é verdade que a awareness é a passagem da nossa história pela série dos eventos materiais, porquanto, em cada uma dessas passagens, todas as outras são recuperadas como dimensões, o sistema-awareness é muito mais do que a sucessão de episódios isolados. Ele é um fluxo figura/fundo: enquanto uma determinada configuração material se apresenta como figura, as demais comparecem como fundo, e assim sucessivamente. Perls e Goodman, assim, vêm a dizer que o sistema-awareness corresponde à formação e destruição de “gestalten” – entendendo-se por “gestalt” um campo organizado segundo a dinâmica figura/fundo.
Essa definição de awareness - como aquilo que se dá no contato, a partir de um sentir (retido), na forma de um excitamento (ou unificação histórica), em proveito de um fluxo de unidades de sentido - repete, ainda que por meio de uma terminologia mais afinada com a teoria organísmica de Goldstein, a definição husserliana de intencionalidade. Também essa se caracteriza pelo processo de vivência de um fluxo de dados materiais que, a cada novo dado, caem como fundo de co-dados para o próximo, de modo a fornecer, para esse novo dado, um sistema de orientações em proveito de uma só totalidade de sentido. Não apenas isso, a definição de awareness de Perls e Goodman distingue, tal como o fez Husserl relativamente à noção de intencionalidade, dois níveis de articulação.
Para Husserl (1893), quando investigamos as condições dinâmicas que permitem à consciência transcendental representar, na forma de um objeto transcendente, a unidade de suas próprias vivências, é forçoso reconhecermos a vigência de um tipo especial de intencionalidade, que não se confunde com a intencionalidade de ato (Aktintentionalität). Trata-se, conforme a expressão de Merleau-Ponty (1945), da “intencionalité operative” (fungierende Intentionalität) (p. xviii, 418), que é para Husserl (1893), uma sorte de “gênese espontânea (genesis spontanea)” (p. 100), na forma da qual vinculamos cada uma de nossas vivências com todas as demais, sem que um ato de unificação seja exigido. Essa intencionalidade, conforme Husserl, nós a experimentamos de duas formas. Primeiramente, nós a vivemos como retenção do vivido enquanto fluxo de “modificações sucessivas” (p. 100). O que é vivenciado materialmente (a percepção de uma melodia, por exemplo), tão logo é experimentado, decompõe-se em sua organização material, o que não quer dizer que tal vivência deixe de existir. Sua permanência, entretanto, implica uma variedade de modificação: ela continua retida, mas como matéria modificada e, a cada nova vivência, como modificação da modificação, até que todas essas modificações estabeleçam, para as novas vivências, um tipo de horizonte. A constituição desse horizonte, por sua vez, corresponde à segunda forma de nossa intencionalidade operativa. Ela diz respeito, então, à organização espontânea desses vividos retidos enquanto “horizonte” de retrospecção e de prospecção para os novos vividos materiais. Nesse segundo formato, a intencionalidade operativa implica um tipo de “síntese passiva” (porque não é estabelecida por meio de atos reflexivos) entre o que eu vivi (e que comparece como horizonte de passado e futuro) e as minhas vivências atuais (HUSSERL, 1924, p. 256-257). Todavia, essa síntese é provisória, de “transição” (Uebergansynthesis), porquanto os elementos históricos (os co-dados retidos) me arrebatam de minha atualidade em direção a uma virtualidade, que é a abertura para um novo dado material (HUSSERL, 1924, p. 292). Assim, a vivência da intencionalidade operativa, ao mesmo tempo que caracteriza a retenção dos vividos em proveito da formação de um campo de presença em torno de um dado material atual, implica o desvanecimento desse campo em proveito do surgimento de um novo dado e, conseqüentemente, da formação de um novo campo, caracterizando a continuidade de um fluxo, que denominamos de vivência interna do tempo. Segundo Husserl (1893), trata-se de uma temporalidade
pré-fenomenal, pré-imanente, constitui-se intencionalmente como forma da consciência constituinte do tempo, e em si própria. O fluxo da consciência imanente constitutiva do tempo não é apenas, mas ele é de uma maneira tão notável, e no entanto compreensível, que nele se dá necessariamente uma auto-aparição do fluxo, a partir da qual o próprio fluxo deve poder ser necessariamente captado no seu fluir (p. 83).
Essa intencionalidade operativa, portanto, é diferente daquela “de ato” (Aktintentionalität), cuja nota constitutiva é justamente o ato de retroação lingüística em direção aos campos de presença vividos no passado e que, dessa forma, tornam-se “eternos” enquanto objetos da consciência intencional (1924, p. 107-108). Por meio de atos de retroação – os quais não são mais que signos indicativos empregados como representantes do passado retido - eu transformo o horizonte de co-dados em um anteparo determinado, em que posso me refletir ou me reconhecer como o autor das vivências então representadas.
Tal como na definição fenomenológica de intencionalidade, também na definição de awareness, há dois níveis. No primeiro – como correlato à noção de intencionalidade operativa de Husserl – encontramos aquilo que, no livro “Ego, Fome e Agressão”, Perls (1942) denominava de [1] “awareness sensomotora” (p. 69), mas que agora, mais ao estilo fenomenológico, Perls e Goodman (1951) subdividiram em [1.1] “awareness sensorial” (p. 42) ou “primária” (p. 223) e [1.2] “awareness deliberada” (p. 49), também denominada de “comportamento motor” ou de “resposta motórica” (p. 42), dependendo do contexto em que é utilizada . Enquanto a “awareness sensorial” designa o processo de retenção do já vivido (ou, simplesmente, o sentir), a “awareness deliberada” designa o excitamento (que, por sua vez, sempre implica a mobilização de nossa história ou, o que é a mesma coisa, uma ação historicamente motivada em direção ao futuro). No segundo nível – como correlativo da intencionalidade fenomenológica de ato - encontramos a “awareness reflexiva ou consciente” (p. 44), cuja característica é justamente a fixação verbal das “gestalten” vividas, que, dessa forma, se transformam em aquisições objetivas.
Em verdade, assim como para a fenomenologia husserliana, para os criadores da Gestalt-terapia, entre esses dois níveis de articulação da awareness não há ruptura. Há integração. A diferença entre esses níveis significa apenas a “orientação” retrospectiva ou prospectiva da fluidez. Nesse sentido, enquanto a awareness sensomotora (incluindo-se aí a sensorialidade e a resposta motora) implica um visar, através do dado material, as possibilidades futuras que se possam oferecer ao horizonte retido, a awareness reflexiva sempre envolve uma fixação ou um retardamento radical, geralmente exercido de modo lingüístico, em proveito da determinação objetiva de uma “gestalt” vivida no passado. Esse retardamento (ou objetivação) é extremamente importante para que o passado – que é um aspecto da awareness sensomotora e, por conseguinte, algo que está sempre se modificando a cada nova “gestalt” – seja então disponibilizado como uma gestalt imutável e, nesse sentido, como um valor determinado.
Ora, esse tratamento da awareness, nos moldes da filosofia fenomenológica, como “sistema intencional”, permitiu a Perls e Goodman safar a noção goldsteiniana de intencionalidade organísmica de sua conotação exclusivamente material. A fenomenologia acrescentou à noção de organismo materialmente inserido no meio um fundo temporal. Conseqüentemente, viabilizou a re-introdução do domínio psicológico, sem com isso eliminar as conquistas da fisiologia goldsteiniana em seu empenho para compreender a conduta como um fenômeno de campo organismo/meio. Afinal, o domínio psicológico – que Perls e Goodman entendiam como o universo dos co-dados retidos como fundo intencional junto a cada novo dado – não tinha existência autônoma ou separada da materialidade daquilo que se apresentasse no contato. Ao contrário, é somente junto aos dados materiais que os excitamentos poderiam acontecer, razão porque, em Perls e Goodman, o psicológico e o fisiológico são indissociáveis. Eles só podem ser compreendidos na imanência do sistema-awareness.
3 Awareness e consciência
O fato de Perls e Goodman atribuírem à awareness reflexiva ou consciente o poder para “determinar” valores, não significa que esses valores não tenham sido “compreendidos” num nível mais elementar, ainda que de forma indeterminada. Perls e Goodman admitem que, mesmo em um nível sensomotor, há apercepções que são vividas como pequenas interrupções na fluidez do processo de formação e de destruição de “gestalten”. Tais apercepções indicam que também a awareness sensomotora está investida da capacidade de abstração ou fixação, muito embora não se trate de uma fixação reflexiva exercida por meio da linguagem, como no caso da awareness reflexiva. E eis porque Perls e Goodman (1951) vão afirmar que também a awareness sensomotora (seja ela sensorial ou deliberada) implica uma forma de “consciência” (entendida como capacidade de fixação). Afinal, para Perls e Goodman (1951), “[...] (o que se denomina ‘consciência’ parece ser um tipo especial de awareness, uma função-contato em que há dificuldades e demoras de ajustamento)” (p. 44). A propósito, é preciso ter cuidado aqui. Essa consciência de que falam Perls e Goodman não é a consciência transcendental descrita por Husserl. Como equivalente dela, Perls e Goodman reservam o termo “self”, que designa a forma espontânea segundo a qual o sistema-awareness se configura como uma unidade no curso de nossos muitos contatos (lembrando que cada contato é a unidade de uma determinada vivência temporal junto ao campo organismo/meio).
O termo “consciência”, por sua vez, limita-se a designar aquela abstração ou fixação, por meio da qual se alcança a “compreensão” de que cada vivência é provida de uma espontaneidade, que se manifesta como mudança. Nesse sentido, a consciência é, primeiramente, esse momento do contato em que a awareness sensorial retarda-se (fixa-se ou, como preferia Perls (1942), concentra-se) nos co-dados mobilizados junto ao dado material até que, por conta própria, um horizonte de futuro se anuncie. Num segundo nível, a consciência é a “fixação” nas possibilidades futuras (que o dado abriu para os co-dados passados), até que, de forma espontânea, um novo dado material se apresente , dando início a uma nova experiência de contato. Por fim, há um nível mais abstrato de consciência que é imanente à awareness reflexiva ou propriamente consciente. Conforme Perls e Goodman (1951),
(a)té aqui estivemos falando de uma consciência rudimentar, que compartilhamos com os animais selvagens do campo e da floresta. Vamos iluminar um pouco o cenário e buscar uma ilustração mais elevada, o processo de abstrair e verbalizar (e até de escrever para revistas eruditas) (p. 76).
Aqui, a consciência coincide com nossa fixação nos produtos da linguagem e nas representações lingüísticas com as quais nos referimos às consciências que agora já são para nós inatuais. É aqui e tão-somente aqui que a consciência adquire status de “saber”, saber sobre o passado, sobre o que está agora representado.
O fato de Perls e Goodman terem admitido que mesmo a awareness sensomotora compreenderia formas de consciência estabeleceu um ponto de tensão com relação à teoria husserliana da intencionalidade operativa. Afinal, para Husserl, a intencionalidade operativa não implicava qualquer “re-conhecimento”, mesmo tácito ou antepredicativo, das vivências essenciais que, nesse nível irreflexivo, se pudesse exprimir. Em certo sentido, Perls e Goodman estão, aqui, mais próximos de Merleau-Ponty do que de Husserl. Ou, então, as consciências imanentes à awareness sensomotora aproximam-se muito daquilo que Merleau-Ponty (1945), na “Phénoménologie de la perception”, denomina de cogito tácito:
Ce que je découvre et reconnais par le Cogito, ce n’est pás l’immanence psychologique, l’inhérence de tous les phénomènes à dês “états de conscience prives”, le contact aveugle de la sensation avec elle-même, - ce n’est pas même l’immanence transcendentale, l’appartenance de tous les phénomènes à une conscience constituante, la possession de la pensée claire par elle-même, - c’est le mouvement profond de transcendance qui est mon être même, le contact simultané avec mon être et avec l’être du monde (p. 432).
De fato, o interesse de Perls e Goodman (1951) não era debater com Husserl, sequer seguir Merleau-Ponty. Queriam, sim, estabelecer uma diferença entre o sistema-awareness e as noções freudianas de consciência e de inconsciente. Por essa razão, introduzem a temática das consciências, a despeito de Husserl e, coincidentemente, na direção de Merleau-Ponty, na discussão sobre o sistema-awareness.
Quase desde o princípio Freud descobriu fatos poderosos do “inconsciente”, e esses se multiplicaram em discernimentos brilhantes sobre a unidade psicossomática, os caracteres dos homens, as relações interpessoais da sociedade. Entretanto, de algum modo esses discernimentos não se combinam numa teoria satisfatória do self, e isso, acreditamos, deve-se a uma má compreensão da assim chamada vida “consciente”. A consciência ainda é considerada, na psicanálise e na maioria de seus ramos (Rank foi uma exceção), como o receptor passivo de impressões, o associador aditivo de impressões, o racionalizador [sic] ou o verbalizador [sic]. É aquilo que é manejado, reflete, fala e não faz nada (p. 53).
Para Perls e Goodman (1951), se Freud precisava destacar o inconsciente do domínio de nossas vivências conscientes, tal se devia às limitações da noção de consciência com a qual trabalhava. Por se restringir às características de “receptor passivo, associador, racionalizador [sic] e verbalizador [sic]” (p. 53), o sistema consciente não podia abranger essas ocorrências lacunares, em que se anuncia uma espontaneidade para além de nossa capacidade reflexiva. Eis porque Freud propõe a tese do inconsciente, como se nossa existência tivesse um segundo centro, uma outra consciência regida por leis que não são as leis da consciência reflexiva. Para Perls e Goodman, ao contrário, não se trata de reconhecer, para nossa existência, dois centros diferentes, dois “senhores”. Trata-se de mostrar que nossa existência não tem centro, que ela é uma espontaneidade que se reconhece em níveis diferentes, em diferentes consciências. Sistema-awareness é o nome dessa espontaneidade que se revela parcialmente junto a esses instantes de fixação ou de retardamento, que são as nossas “consciências”. Elas, portanto, não são substâncias ou simples formas de censura. Elas são pequenas interrupções que, ao mesmo tempo em que dificultam o fluxo de awareness, instauram uma espécie de cogito, o qual, no caso das consciências sensomotoras, não chega a ser um saber, mas um cogito tácito, uma abertura àquilo que se faz por conta, precisamente, o fluir dos dados e dos co-dados em proveito do processo de formação e destruição de “gestalten”. Para Perls e Goodman, quando – no senso comum – se fala em “mente”, é a essas várias consciências que se faz referência; muito embora seja freqüente o homem comum relacionar a noção de mente a uma instância empírica ou a uma estrutura a priori, pura, tal como fazem os filósofos. Entretanto, a mente – entendida como uma consciência – é algo que não está em um lugar específico, o que também não quer dizer que ela não esteja em lugar algum. Enquanto consciência e, nesse sentido, enquanto interrupção do fluxo de awareness em proveito da configuração de novas possibilidades, a mente é um instante da experiência - de toda e qualquer experiência - razão pela qual há tantas mentes quanto experiências puderem acontecer. Com essa tese, Perls e Goodman novamente se aproximam de Merleau-Ponty (1942) que também afirma, em “La Structure du Comportement”, que se pode encontrar consciência por toda parte, mas não a pura consciência ou a subjetividade pura almejada pela filosofia. É possível encontrar, sim, a “conscience enracinée”: abertura ao mundo como “milieu universel” (p. 199), parada estratégica para que o mundo, ele próprio, possa imprimir o seu ritmo, suas possibilidades.
4 Considerações finais
Por meio de Goodman, Perls teve acesso à terminologia fenomenológica, a qual permitiu a ambos estabelecerem as reformulações que tornaram compatíveis teses que pareciam inconciliáveis: a tese psicanalítica de que somos seres eminentemente históricos e, portanto, implicados pelo passado, e a tese goldsteiniana de que, a cada momento, somos seres espontâneos, investidos de uma capacidade criativa incomensurável. Em Husserl, ambos encontraram a justa formulação daquilo que nivela, num só registro, a historicidade e a liberdade de nossa existência no mundo. Trata-se da noção de intencionalidade, a qual designa a forma como, diante dos eventos materiais, nossas vivências se distinguem em diferentes possibilidades, em diferentes individualidades. Perls e Goodman denominam de sistema-awareness o fluxo de vivências intencionais, por meio das quais nos generalizamos e nos distinguimos no campo organismo/meio, na linha divisória entre o passado e o futuro. Mas, diferentemente de Husserl, Perls e Goodman não acreditam que essas vivências necessitem da caução de uma consciência tética. A consciência tética é apenas uma das múltiplas formas de consciência – especificamente lingüística - que o fluxo de awareness pode desencadear. Ela é mais uma dentre as formas de consciência por cujo meio podemos retardar o aparecimento das possibilidades que nossa história almeja ante a contingência dos dados materiais. De sorte que, nos termos de uma fenomenologia da awareness, Perls e Goodman constituíram uma ampliação, quase merleau-pontyana, da noção de intencionalidade operativa, na qual o próprio Husserl reconhecia o fundamento de toda forma de consciência.
REFERÊNCIAS
FRIEDLAENDER, Salomo (Mynona). 1918. Schöpferische Indifferenz. Frankfurt: Verlag, 2001.
HUSSERL, Edmund. 1893. Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. Trad. Pedro M. S. Alves. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994.
______. 1924. Formal and transcendental logic. Trad. Dorian Cairns – The Hague: Martinus Nijhoff, 1969.
MERLEAU-PONTY, Maurice. 1942. La structure du comportement. Paris: Puf, 1942.
______. 1945. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard.
PERLS, Frederick; HEFFERLINE, Ralph; GOODMAN, Paul. 1951. Gestalt Terapia. São Paulo: Summus, 1997.
PERLS, Frederick 1942. Ego, Fome e Agressão. Trad. Georges Boris. São Paulo: Summus, 2002.
______. 1969. Escarafunchando Fritz dentro e fora da lata de lixo. Trad. George
Schlesinger. São Paulo: Summus, 1979.
SMUTS, Jan Christian. 1926. Holism and Evolution. Danton: MacMillan, 1926.
STOEHR, Taylor. 1994. Here Now Next: Paul Goodman and the origins of Gestalt Therapy. San Francisco: Jossey-Bass Inc.