Produção Científica - Artigos e Capítulos
SIGILO – GARANTIAS INDIVIDUAIS E DIREITOS COLETIVOS
SIGILO – GARANTIAS INDIVIDUAIS E DIREITOS COLETIVOS
Rosane Lorena Granzotto
A Psicologia se ocupa dos “comportamentos” e dos fenômenos que neles se exprimem. Esses comportamentos são laços sociais, na forma dos quais nos constituímos como subjetividades históricas e como conjunto de atitudes. Ora, a constituição histórica de um sujeito, por um lado, e a sedimentação de atitudes, por outro, são as duas faces da empresa ética. De onde se segue que a Psicologia enquanto ciência, mas, sobretudo enquanto profissão é uma atividade eminentemente ética.
Por esse motivo, discutir temas como a responsabilidade social do psicólogo ou o compromisso do psicólogo para com aqueles que recorrem a seus serviços deveria ser algo tão natural quanto especular acerca de uma teoria da personalidade, por exemplo.
Isso não significa tornar o código de ética do psicólogo a peça mais importante de nossa identidade profissional. Ética é muito mais do que um conjunto de princípios e regras prudenciais – como aqueles formulados em nosso código ou na carta constitucional brasileira. E se a nossa categoria, no momento que se ocupa de refletir sobre nosso código de ética profissional, se detém justamente no ponto que trata do sigilo – essa forma especial de laço social entre o psicólogo e seu destinatário -, é porque, de alguma forma, já percebeu a complexidade do tema. Que complexidade é essa que estou a reconhecer para a ética? Como ela se reflete no campo da Psicologia profissão, especificamente na psicoterapia? Que conseqüências ela implica para a nossa discussão acerca do sigilo profissional, muito especialmente no contexto psicoterapêutico?
Existem várias compreensões possíveis do que seja a Ética dependendo do referencial filosófico que usamos – entendendo-se por referencial filosófico essa habilidade dos conceitos para exercerem a crítica de si mesmos. Não é minha pre-tensão recuperar e discutir as várias matrizes filosóficas a partir das quais a noção de ética é pensada. Quero apenas me servir da etimologia, para apontar um diplopia a respeito do termo “ética” que, paradoxalmente, persiste até hoje, especial-mente no âmbito de nossas práticas profissionais.
O termo éthos vem dos gregos, que o empregavam de duas formas distintas. Na forma mais antiga, êthos era utilizado para significar “morada, abrigo, refúgio”, lugar onde somos “autênticos e despidos” de defesas, estamos protegidos, abriga-dos, e podemos receber o outro. Posteriormente, éthos passa a merecer um uso mais abstrato, ligado à filosofia prática. Segundo Aristóteles, por exemplo, éthos expressa um modo de ser, uma “atitude” diante de si, do outro e do mundo. Indica a postura do homem diante da vida. Esta atitude é fruto de uma construção contínua e não acabada, do nosso vir-a-ser na relação com o mundo.
Nos dias de hoje, quando falamos em Ética, quase só empregamos o termo éthos no sentido aristotélico. Ética significa para nós uma atitude ampla e universalizável, formada de comportamentos que foram legitimados por representações co-letivas, como é o caso das regras prudenciais, convenções sociais, contratos e regras jurídicas instituídos no âmbito de nossas comunidades. Por meio dessas representações, zelamos por uma certa identidade social que é a nossa identidade atitudinal. Ou, então, por meio delas garantimos e favorecemos a emancipação social de cada pessoa. Não apenas isso, também nos protegemos dos comportamentos que poderiam ameaçar nossa unidade objetiva ou, como dizemos em Gestalt Terapia, nossa personalidade, gerando sofrimento social, político, moral, racial, afetivo, dentre outros. Nesse sentido, falamos de uma atitude ética, entendendo por isso um comportamento balizado por representações publicamente sancionadas.
Essas representações, entretanto, não abrangem a totalidade dos fenômenos que se exprimem em nossos comportamentos e que, malgrado o formato não objetivo, ainda assim integram nossa unidade atitudinal, por exemplo, nossos sentimentos, afetos, esquecimentos, inibições reprimidas etc. Por outras palavras, em nossos comportamentos, há um excesso de sentido que não se deixa apreender pelo formato objetivo de nossas representações coletivas, de nossos códigos, de nossas normas. Trata-se – sem dúvida – de algo intimamente vinculado com nossas formas de interação social, mas que as ultrapassa, como se fosse, senão um efeito inapreensível dessas formas, ao menos uma reação promovida por algo que essas formas ignoram. Em Psicologia, chamamos isso por vários nomes: fundo de vividos ou perfis co-dados, inconsciente, memória involuntária do tempo, espontaneidade ou, simplesmente, subjetividade. Ainda que nas mais das vezes anônima, escondida, encoberta, essa dimensão está presente. Razão porque, às vezes, sen-timos necessidade de nos despir de nossas identificações objetivas, para que essa identidade ignorada, essa experiência irrefletida de nós mesmos possa emergir. De alguma forma, sentimos necessidade de uma morada segura, de um ambiente protegido, em que nosso silêncio possa se exprimir enquanto silêncio, sem ser confundido com uma forma objetiva. Sentimos necessidade de um êthos, de uma morada, que pode ser muitos lugares, mas, também e eminentemente, um ambiente psicoterapêutico, seja ele grupal ou individual. E eis que, de maneira muito especial, a prática psicoterapêutica reencontra e recupera o sentido primitivo da ética e institui, para o psicólogo psicoterapeuta, uma duplicidade de papéis: agente objetivo e guardião da pré-objetividade.
De fato, na psicoterapia – cujo sentido ainda precisamos discutir muito mais -, os profissionais psicólogos se deparam com demandas individuais e coletivas respaldadas em expectativas objetivas fundamentadas em códigos e regras socialmente sancionados. Trata-se de demandas legítimas, em que muitas vezes se exprime um sofrimento ético-político frente ao qual o psicólogo não pode ficar indiferente. Mas, também, para não dizer “sempre”, deparamo-nos com algo que não se caracteriza como demanda objetiva, porquanto se formula sem revelar o conjunto de representações no qual se apóia. Trata-se, antes, da manifestação de uma espontaneidade histórica, formada de hábitos cegos para si, de comportamentos que não reconhecemos como nossos, mas que ainda assim nos mobilizam de for-ma integral e presente. O fato é que os destinatários de nossas intervenções trazem, nas entrelinhas de suas demandas objetivas, um pedido suplementar que, no desenvolvimento do trabalho psicoterapêutico, acaba se revelando como o motivo mais importante. Nos nossos consultórios ouvimos esse pedido, ouvimos esse fenômeno que podemos chamar por diversos nomes: intencionalidade organísmica, pulsão, desejo, existencial etc.
Ora, diante desse pedido suplementar, pré-objetivo, valem as nossas convicções religiosas, políticas, morais, comportamentais para trabalhar na clínica? Certamente não. Nas mais das vezes, para ouvi-lo temos de suspender nossas crenças, temos de praticar uma espécie de redução em proveito dos fenômenos tais como eles se mostram para nós. De onde se segue que nossa prática compor-te algo assim como uma dupla inscrição ética. Por um lado, procuramos preservar :
- a saúde ético-política de um sujeito constituído objetivamente na realidade, enquanto ser sócio-cultural, enquanto unidade atitudinal ou, como prefiro, personalidade.
Mas, por outro, nos ocupamos de promover
- a saúde existencial, na falta de outro nome, e cujo sujeito somos nós mesmos enquanto seres investidos de uma história que está esquecida, mas nem por isso menos atuante em nossas vidas.
É a partir dessa distinção, precisamente, que acredito ser possível se pensar o sentido ético do sigilo apregoado por nosso código de profissionais psicólogos. Afinal, em nome de que eu me comprometeria a guardar segredo sobre fatos e declarações ocorridos e relatados no âmbito de minha prática clínica? Faria isso em função de um padrão comportamental no qual acredito e com o qual me identifico? Ou faria isso em proveito da manutenção de um espaço adequado à manifestação disso que não é da ordem da objetividade? Minha aposta é na segunda alternativa.
Conforme penso, quando uma pessoa ou grupo está em sofrimento ético-político, quando há dificuldade de emancipação social e individual, é dever do psicólogo psicoterapeuta orientar os destinatários do serviço psicológico a buscarem auxílio na rede de apoio. O psicólogo deve promover a conscientização dos consulentes para que estes possam, por conta própria, buscar seus direitos ou, ao me-nos, possam buscar ajuda. Mas o psicoterapeuta não deve obrigá-los a nada, sob pena de pôr a perder aquilo que mais propriamente está em jogo na relação psico-terapêutica, a saber, a expressão da subjetividade pré-objetiva dos consulentes.
Tampouco deve o psicólogo psicoterapeuta informar a sociedade sobre a situação que o consulente esteja vivendo. Uma vez cônscio de seus direitos, cabe ao cliente tomar a decisão de procurar ou não ajuda. Mesmo se quem estiver sob risco seja a sociedade, o psicoterapeuta não deve denunciar os consulentes. Quando muito, ele pode acionar o Conselho Regional para que cumpra a função social de alertar as autoridades públicas sobre possíveis pessoas ou instituições que estariam em risco, desde que o nome dos consulentes e dos profissionais sejam preservados.
Porém, no que diz respeito aos dramas existenciais relatados e trabalhados no âmbito psicoterapêutico, o psicólogo não tem nada a informar às instâncias normativas, tampouco aos familiares do consulente implicado, mesmo se tratando de uma criança. Aqui importa promover a ocasião para o consulente elaborar, dentro de sua especificidade cognitiva e sócio-cultural, os fenômenos pré-objetivos que ele próprio exprime junto aos seus comportamentos. Ninguém, além do próprio consulente, pode realizar essa elaboração, razão porque seria um contra-senso subordinar os acontecimentos psicoterapêuticos à vigilância da norma social. Trata-se, ao contrário, de permitir que o consulente entre em contato com a espontaneidade que há nele, trata-se de trabalhar seus conflitos existenciais, permitindo a ele formular seus próprios desejos, os ajustamentos criativos de que precisa e que não necessariamente se dão no plano objetivo.
Sou da opinião, portanto, que o psicólogo psicoterapeuta não deve “ser obrigado” a quebrar o sigilo quando estiver lidando com situações de risco, seja à integridade do consulente, dos familiares e da sociedade, ou a sua própria integridade. Mesmo porque, a partir de seu aporte teórico e do acompanhamento terapêutico que realiza, o psicólogo psicoterapeuta pode discernir quando há evidências de que o consulente possa provocar ou sofrer dano contra ou a partir de quem quer que seja. E, então, “pode”, se assim o julgar, acionar o Conselho Regional para prevenir-se, como prevenir os familiares ou quem julgar necessário, observa-dos os princípios objetivos que regem o código de ética profissional e os códigos superiores.
Quanto a depoimentos de ordem judicial, penso que o mesmo critério deva ser seguido. Nada que seja formulado no âmbito da psicoterapia e que implique o compromisso ético do psicoterapeuta com a dimensão existencial do processo terapêutico deve ser revelado, a não ser a pedido do consulente e visando sua proteção.
Enfim, acredito que nós, psicólogos, temos de nos preocupar com o bem-estar objetivo de nós mesmos, de nossos consulentes e da sociedade em geral. Por isso, devemos estar atentos às demandas ético-políticas que, de diversas formas, chegam até nós. Mas, também, é nosso dever assegurar este espaço (morada, abrigo, refúgio, à qual a noção primitiva de êthos faz referência) para que os beneficiários de nossos serviços possam lidar de forma protegida com essa dimensão pré-objetiva que todos nós trazemos conosco. O sigilo foi pensado para favorecer essa função ética especificamente.
REFERÊNCIAS
JACQUES, M.G.C. (et al.) (Orgs.) (1995). Relações Sociais e Ética. Porto Alegre: ABRAPSO - Regional Sul.
NOVAES, A. (Org). (1992). Ética. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura.
SANT’ANNA, D. B. (1999). Passagens para condutas éticas na vida cotidiana. Margem. Faculdade de Ciências Sociais – PUC-SP – N. 9, 81-94.
SCHMID, W. (1996). Da ética como estética da existência. Margem. Faculdade de Ciências Sociais – PUC-SP – N. 5, 149-156.
VOLPE, A. J. (1999). Resenha: A reinvenção do Homem. Insight – Ano IX – Nº 102, 27-29.