Produção Científica - Artigos e Capítulos

Clínica gestáltica de casais

CLÍNICA GESTÁLTICA DE CASAIS
Rosane Lorena Granzotto


A intenção deste trabalho é pensar a clínica de casais pela ótica da teoria do self e suas categorias funcionais: id, ego e personalidade.
Compreendemos o self como um sistema de contatos no presente transiente, o que significa dizer, em constante mutação. Contato é aqui um termo bastante amplo que significa a maneira peculiar segundo a qual, determinada relação social repete e recria um hábito em proveito de um futuro, ao qual chamamos de desejo. Tal significa dizer que cada experiência de contato é, simultaneamente, a repetição do passado e a criação do futuro. E o sistema self, a sua vez, é tão-somente a descrição da fluidez de uma vivência de contato a outra.
Em sua fluidez, o sistema self pode ser descrito sob três registros ou pontos de vista, aos quais denominamos de funções do self. São elas a função id, a função de ato (ego) e a função personalidade.
Por função id entendemos o fundo de vividos retidos a partir das experiências passadas e que retornam até nós pelo olhar, pelo desejo do semelhante, como aquilo que nos desvia. Tal fundo é composto por hábitos e situações inacabadas, ponto de partida daquilo que chamamos de excitamentos.
A função de ato (ego) é o corpo motor e linguageiro, o qual, por meio de criações de toda ordem, ajusta os excitamentos às possibilidades fornecidas pelo meio natural e social, desencadeando assim um horizonte de futuro ou desejo.
Mas, a função de ato também pode experimentar, junto ao meio social, uma vivência de auto-reconhecimento, que também denominamos de função personalidade. Trata-se de uma espécie de réplica verbal da experiência.
Ora, essas três funções constituem marcos a partir dos quais, nas clínicas gestálticas, procuramos descrever o que de novo e singular surge num campo sociolinguístico atual. Da mesma forma, aquelas funções ajudam a compreender a peculiaridade de cada contexto clínico e a tarefa ética a ser desempenhada pelo terapeuta.

O que é um relacionamento de casal sob a ótica das funções do sistema self?
É um laço social especial que, por sua intimidade, favorece a repetição daqueles hábitos que constituem, para ambos os amantes, o fundo de excitamentos disponível, ao qual, em Gestalt-terapia, também denominamos de função id. Tal fundo envolve modos de emprego do corpo e da linguagem, os quais, não obstante serem desprovidos de conteúdos que pudessem esclarecer sua origem ou sentido, têm efeito afetivo na atualidade da relação vivida pelo casal. Trata-se de formas retidas daquilo que um dia foi um ajustamento criativo ou uma inibição deliberada frente às condições desfavoráveis do meio e que agora encontram a ocasião para se atualizarem no presente.
Esta relação íntima também é especial porque, nela, a função de ato realiza, a partir dos hábitos que herdou da função id, a mais bela das criações, que é o desejo amoroso.
O desejo amoroso não é qualquer desejo, pois, se é verdade que desejar é provocar, na forma de uma fantasia (ou futuro de possibilidades) o que nos falta, no desejo amoroso, a fantasia diz respeito à satisfação do outro. Não se trata de buscar, junto ao nosso semelhante, aquilo que ele poderia nos dar. Trata-se, antes, de querer alcançar a satisfação que ele poderia sentir a partir de nós. Mas como isso é impossível, continuamos a nos dedicar a ele. Eis então o amor, que é esse desejo que se recria a cada dia, como nosso impulso a ser outro, a ser outro para nós mesmos. Junto ao nosso semelhante, junto a essa pessoa que é nosso companheiro, nossa companheira, procuramos nos experimentar como outro. De onde não se segue que aquilo que pudéssemos receber do companheiro, da companheira não seja importante. O reconhecimento que nosso parceiro amoroso nos dirige e, mesmo, o reconhecimento que o meio social pode nos oferecer a respeito de nossa relação íntima é uma experiência que envolve muito prazer/desprazer. Eis aqui a terceira pilastra que, do ponto de vista da teoria do self, sustenta uma relação íntima. Trata-se do imaginário social alcançado pela dupla entre si ou em suas relações com a comunidade. Ou, ainda, trata-se da função personalidade, que é a carga de expectativas familiares e da sociedade que leva o casal a constituir família, adquirir propriedade, enfim participar dos rituais e assumir papéis esperados para um marido, uma esposa, um pai, uma mãe, etc. Tanto quanto buscar, junto ao nosso parceiro, o outro no qual nós mesmos podemos nos tornar, importa também desfrutar do prazer de assumir e ver reconhecido um lugar social que possamos ocupar ao lado do nosso parceiro.

Por que um casal vem à terapia?
Quando se trata de ajustamentos neuróticos a busca por terapia é mais uma
dentre as buscas amorosas que um casal possa fazer. Em outras palavras, a busca por terapia tem relação com o desejo amoroso, com o desejo que cada parceiro tem de se experimentar como outro para si próprio. Mas, há na terapia uma singularidade: o desejo amoroso investe um terceiro no lugar da falta, no lugar do outro cuja satisfação cada qual quer experimentar. Isso por que os pares não conseguem mais ser, um para o outro, o outro no qual desejam se tornar. O desejo perde lugar para uma fantasia cristalizada, frequentemente associada a uma forma neurótica do casal funcionar; qual seja essa forma: aquela em que os parceiros se atribuem mutuamente a responsabilidade pela ansiedade advinda do fato de inibirem seus próprios desejos de mudarem. Um terceiro deve então aqui advir como aquele que possa desmontar as fantasias cristalizadas e desafiar o desejo mais além das inibições individuais.
De um modo geral, quando procuram terapia, os casais têm uma vaga ideia do que buscam. Eles sabem que seus desejos precisam ser resgatados. O que, por vezes, significa um atravessamento das fantasias em que estão cristalizados. Noutras vezes, a separação. Para tanto, os casais costumam investir o terapeuta nesse lugar de representante daquilo que está interditado, precisamente, o desejo. O terapeuta terá de frustrar o ardil que, frequentemente, os parceiros criam para si mesmos e que consiste em atribuir, um ao outro, a responsabilidade pela interdição dos desejos. Cada parceiro vê no outro a causa daquilo que, em verdade, é uma auto-inibição habitual. Cada parceiro vê no outro uma versão de sua própria inibição ou, se quisermos, um parceiro-sintoma.
Nesse sentido, mais além do ciúme sincrético, que é um tipo de ajustamento fluido que herdamos de nossa ligação infantil com os cuidadores, os quais nos ensinaram a excluir a presença do terceiro, por vezes, os casais, frequentemente um dos pares, exibe um ciúme neurótico. À diferença do primeiro, o ciúme neurótico não opera verdadeiramente com a exclusão do terceiro, mas faz do terceiro o motivo para responsabilizar o parceiro pela insatisfação que o pseudo-ciumento esteja vivendo. Ora, implicar cada um do par em seu próprio expediente manipulador é a primeira tarefa ética do terapeuta.
Este é o primeiro momento da intervenção gestáltica em ajustamentos neuróticos em regime de terapia de casal. Não se trata de uma tarefa simples, pois o terapeuta deve se introduzir como aquele que quebra a parceria sintomática do casal ao qual atende. Tal significa dizer: o terapeuta deve poder fazer com que cada parceiro se responsabilize por aquilo que acusa ou reclama; e tudo isso na frente do companheiro. Essa auto-implicação testemunhada é algo que tem muito efeito sobre cada qual e, por vezes, acelera o encontro dos pares com suas próprias repetições neuróticas, bem como com seus próprios desejos.
Uma vez que, no processo terapêutico, os pares conseguiram se responsabilizar por seus sintomas e, dessa forma, alcançarem uma compreensão sobre quais repetições estariam a produzir e quais desejos estariam a evitar, inicia-se uma nova fase – a segunda etapa da intervenção gestáltica em ajustamentos neuróticos em regime de terapia de casal - em que cada qual deveria poder vislumbrar quais possibilidades a relação abre para a realização dos desejos então reavivados.
Por vezes, os parceiros não reconhecem mais, um no outro, razão para continuar. Não há, mais entre eles, possibilidades de contato. E esse reconhecimento – caso um dos dois não esteja manipulando – é sempre compartilhado. Assim como é compartilhado – caso também não haja mais manipulação – a retomada da via amorosa.

Porém não são apenas os quadros neuróticos que levam os casais à terapia. Por vezes, um dos pares necessita da ajuda de um terceiro para poder administrar o que sozinho, não consegue, por exemplo, a desarticulação comportamental de seu parceiro (surto psicótico), a doença somática, a violência doméstica ou determinado quadro de exclusão social, que constrange a si ou ao parceiro. Por exemplo, um homem pode estar precisando fazer uma depressão para lidar com a impossibilidade de eleger um dentre os excitamentos que o acometem. Sua mulher não compreende o que se passa, uma vez que não apenas não se sente desejada, como tampouco identifica desejo em seu parceiro. Ainda assim o deseja. E quanto mais manifesta esse desejo, mais sofrimento parece gerar em seu par. A questão aqui não é simples pois acompanhar o esforço de articulação que alguém possa estar fazendo exige abrir mão de seus próprios desejos até que o parceiro possa voltar a desejar. A intervenção de um terceiro, de um terapeuta, pode abreviar a espera da mulher, como ajudar o seu parceiro em seu processo de reconstrução.
A intervenção aqui difere radicalmente da intervenção nos ajustamentos neuróticos, pois se trata de orientar o casal a compreender o que acontece com cada um e trabalhar no sentido da abertura de novas possibilidades, aquelas que, em cada caso particular, dê suporte para o momento de crise e ajude o casal a sobreviver. O terapeuta se coloca no lugar de um corpo auxiliar, que dê ao casal condições de, por um lado, continuar operando a partir de seus excitamentos e, por outro, continuar criando um horizonte de expectativas (desejo), o que inclui muitas vezes a elaboração de um luto.

O lugar do terapeuta neste campo
A clínica de casais se constitui num campo terapêutico peculiar, onde os efeitos das ações de cada um sobre o outro se faz sentir na própria sessão criando uma realidade tal que permite ao clínico a possibilidade de intervir diretamente na dinâmica relacional do casal.
Neste sentido somos este terceiro que estará atento ao que aparece no campo,
àquilo que se manifesta no momento presente, com uma escuta aberta, apenas acompanhando o que se manifesta, sem em nenhum momento dar sentido ou interpretar as atitudes do casal.
Pelo contrário, a intervenção terapêutica gestáltica acontece pontualmente
quando uma forma se revela, quando uma repetição acontece ou quando um hábito é retomado, abrindo a ocasião para que cada um possa se implicar, se responsabilizar pelo que produz na relação e criar algo a partir desta experiência.
É muito comum que os processos iniciem com relatos e queixas que um faz do
outro. Ao mesmo tempo que estamos disponíveis para ouvir um e outro, não é o conteúdo de suas falas que nos interessa mas as formas que aparecem em sua comunicação, em suas discussões, em seus corpos, em como brigam ou amam.
Na clínica de casais o terapeuta estará atento à “forma” da relação, que refletirá
sem dúvida as “formas” de cada um. Trabalhamos com o que acontece no momento presente da sessão e não com relatos de acontecimentos. O relato é apenas a ocasião em que a “forma” de cada um pode se revelar.
Enfim, o terapeuta gestáltico na clínica de casais trabalha a partir dos
ajustamentos que ali se produzem, sejam eles ajustamentos fluidos, de evitação, de busca, banais, antissociais ou de inclusão, que por sua vez orientarão qual o lugar que o terapeuta ocupará neste campo tão peculiar.

Etapas da Intervenção da clínica de casal
• Princípio fundamental: o clínico é o terapeuta da relação.

1ª etapa: Função Id, afetos, satisfação secundária.
• Implicação de cada cônjuge em seu próprio discurso. Ajudar os pares a compreender que a origem dos afetos pode estar em outra cena.
• Distinguir os afetos da ordem da repetição (afetos, satisfações secundárias) e sentimentos atuais.

2ª etapa: Função de ato, desejo, fantasia.
• O que cada um deseja do outro?
• Que lugar o parceiro pode ocupar no meu desejo?
• Que lugar eu posso ocupar no desejo do meu parceiro?
• É importante olhar se há a possibilidade de um suportar o desejo do outro. Aqui é importante ter cuidado, porque a tolerância ao desejo do outro pode afetar o amor gerando prazer ou desprazer.
O clínico pode fazer algumas provocações como:
• Quais lugares cada indivíduo ocupa na relação?
• Qual a importância do parceiro nos projetos futuros do outro?

3ª etapa: Função Personalidade (amor, prazer, projetos e histórias compartilhadas)
• Olhar para história, para os projetos, para o patrimônio (emocional) construído pelo casal até o momento.
• Olhar para a relação historicamente. O que construíram juntos? O que pretendem construir?
• Os projetos são concretos, e estão relacionados com a possibilidade de construir uma realidade. O clínico ajuda o casal a perceber os projetos que já construíram juntos (casa, filhos), e assim atribuírem valores aos patrimônios da relação.