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Gênese fenomenológica da noção de Gestalt

Resumo: Este artigo se propõe um estudo sobre a origem e modos de utilização do termo gestalt junto as escolas filosóficas e psicológicas do final do século XIX e início do século XX. Interessa, particularmente, os projetos teóricos de Franz Brentano, Edmund Husserl, bem como a repercussão deles junto as investigações promovidas pelos psicólogos da forma, tanto da primeira, quanto da segunda geração. Nosso propósito é estabelecer as bases desde onde possamos compreender em que sentido a Gestalt Terapia pode estabelecer um uso fenomenológico do conceito de gestalt.

MÜLLER, M.J.; GRANZOTTO, R.L. “Gênese fenomenológica da noção de gestalt”. IGT NA REDE. Vol. 1, nº 1, Artigo 2. www.igt.psc.br/ojs/viewarticle.php?id=35&layout=html


I

Não é só no nome que a Gestalt-terapia se vincula à Psicologia da Gestalt. Não obstante as críticas que, em vários lugares de sua produção bibliográfica, Frederick Perls endereçou ao “positivismo lógico” dos trabalhos dos gestaltistas da primeira geração (Perls, 1979: 81), muitas passagens dessa mesma bibliografia sinalizam para os trabalhos de Kurt Goldstein, junto a quem Perls aprendeu um modo específico de emprego do termo Gestalt (1979: 151, 188). Para Goldstein (1939: 300-1), Gestalt não é um “fato” elementar cujas leis constitutivas caberia à psicologia empírica desvendar, mas, sim, o “modo” dinâmico, segundo o qual os organismos se conservam e se modificam. Por outras palavras, Gestalt é a dinâmica “figura e fundo” que opera no interior dos processos de auto-regulação organísmica junto ao meio. De onde Perls inferiu, segundo ele próprio, um novo modo de se compreender essa experiência que, muito antes de ser o desvelamento da infra-estrutura temporal de cada um de nós, é a re-configuração espontânea de nossos motivos temporais em proveito de nossa materialidade cotidiana: terapia (Perls, 2002: 265). Ora, em que sentido a noção de Gestalt pode ser entendida enquanto uma dinâmica “figura- fundo”? Por que essa dinâmica é eminentemente temporal? Em que termos essa compreensão de Gestalt estabelece algo de novo em relação ao modo como os primeiros psicólogos da forma empregavam essa noção? Em que sentido o emprego da noção de Gestalt pelos primeiros psicólogos da forma implica um tipo de positivismo lógico? Responder essas questões é, conforme pensamos, estabelecer a gênese da noção de Gestalt veiculada pela Gestalt-terapia. Mais do que isso, respondê-las é, também, ir de encontro com um modo de pensar que, não por acaso, o próprio Perls reconheceu como constitutivo da Gestalt-terapia, a saber, a fenomenologia. Afinal, é a partir da investigação fenomenológica do conhecimento que a noção de Gestalt adquiriu status teórico e, na teoria de Perls, o nome de self. No presente texto, não pretendemos apresentar os traços constitutivos da teoria do self. Pretendemos algo preliminar, que é a apresentação sumária da história do emprego filosófico e psicológico da noção de gestalt. Nossa expectativa é que esse estudo possa estabelecer as bases que autorizaram o uso eminentemente fenomenológico do conceito de Gestalt da parte de Frederick Perls e colaboradores.


II

Não é incomum se ler, em trabalhos que se ocupam de traçar a gênese da Psicologia da Gestalt, a citação de Christian von Ehrenfels (1859-1932) como o grande precursor e inspirador das idéias de Wertheimer, Koffka e Köhler. Contra o que depõem os próprios envolvidos. Wertheimer, Koffka e Köhler jamais reconheceram nas idéias de Ehrenfels a matriz das suas. É verdade que, em comum, eles compartilhavam o mal-estar frente ao modo como Wilhelm Wundt, em Berlim, definia o “objeto” da recém-criada ciência psicológica. Nem Ehrenfels nem os psicólogos de Frankfurt reconheciam ser o objeto psicológico o resultado de nossos atos psíquicos, muito especialmente, de nossos atos de associação. Sequer o aparato físico-fisiológico importado por Wundt foi suficiente para convencer Ehrenfels, por um lado, Wertheimer, Koffka e Köhler, por outro, de que os objetos psíquicos são construções mentais, especificamente sinápticas, a partir de estimulações exteroceptivas, proprioceptivas e interoceptivas. Mas, daí não se segue que Wertheimer, Koffka e Köhler subscrevessem a alternativa formulada por Ehrenfels. Para este, concomitante às partes envolvidas no processo de associação, haveria uma outra que, à diferença das demais, já resguardaria um sentido de totalidade nela mesma, independentemente de qualquer ação de associação das partes: Gestaltqualität. Ainda que Ehrenfels admitisse que a percepção das partes como um todo dependia da percepção de um certo sentido de totalidade – que ele justamente designava pelo termo Gestaltqualität -, esse sentido de totalidade não era o objeto percebido (psíquico) como tal. Razão pela qual, para os gestaltistas, Ehrenfels ainda estava preso ao atomismo inerente à definição de objeto psíquico de Wundt. Diferentemente destes, os gestaltistas afirmarão que as gestalten já são, por elas próprias, um tipo específico de objeto. O que nos leva a perguntar, de onde veio a inspiração para que os psicólogos da forma pudessem conceber as gestalten como uma objetividade específica? A resposta a essa questão nos remete aos cursos de Husserl, na universidade de Göttingen, em 1900, quando justamente ele tentava repensar essa outra alternativa à teoria do objeto psíquico de Wundt, que é a teoria dos objetos intencionais de Franz Brentano.
Franz Brentano (1874) não aceitava a definição de objeto psíquico estabelecida por Wundt. Isso porque, não obstante concordar com a tese de que todos os objetos fossem, em algum sentido, construções da subjetividade, o associacionismo de Wundt não nos permitia distinguir entre objetos psíquicos e objetos físicos. Ademais, a definição associacionista de ato psíquico não nos permitia distinguir, claramente, entre o que é da ordem dos atos e o que é da ordem dos conteúdos. Em algum sentido, atos e conteúdos se confundiam e, conforme suspeitava Brentano, talvez estivesse aí a dificuldade que impedia que se estabelecesse a diferença entre objetos psíquicos e físicos. Por isso, Brentano propôs uma investigação sobre a natureza dos atos psíquicos, de modo a distingui-los dos conteúdos. E foi nesse momento, exatamente, que Brentano se deparou, pela primeira vez, com a diferença entre conteúdos que são dados aleatórios (e que ele chamou de fenômenos físicos) e conteúdos que, mesmo não tendo sofrido a ação de nenhum ato (razão pela qual ainda não tem uma forma objetiva), já implicam um sentido de totalidade (fenômenos psíquicos). Numa linguagem mais própria a Brentano, foi nesse momento que ele pôde distinguir entre “fenômenos físicos” e “fenômenos psíquicos”. Enquanto os primeiros diriam respeito às partes de nossa experiência material, os fenômenos psíquicos tinham a ver com a experimentação de uma totalidade que, espontaneamente, se estabelecia, antes mesmo que um ato dela se ocupasse. Exemplo disso são os sentimentos. Antes mesmo de um ato de percepção, imaginação ou ajuizamento poder identificá-los, nós os experimentamos como uma totalidade espontânea, muito embora ainda ambígua – e eis aqui uma primeira formulação da noção fenomenológica de Gestalt . Para Brentano, enfim, nós não experimentamos objetos psíquicos como o resultado de um processo cumulativo de vivências parciais (fenômenos físicos) – conforme a formulação de Wundt. Os objetos psíquicos são o produto de atos psíquicos que, a sua vez, estão orientados por totalidades que não carecem de gênese, quais sejam elas, os fenômenos psíquicos. Estes, então, são totalidades espontâneas a orientar a direção dos atos da consciência. De onde se seguiu, por um lado, a definição dos fenômenos psíquicos como modo intencional de nossa existência e, correlativamente, a definição de objeto psíquico como resultado de um ato alimentado por um fenômeno psíquico ou intencional.
Ora, se os fenômenos psíquicos são uma configuração espontânea a orientar nossos atos, eles não carecem de ser explicados. Eis a razão pela qual Brentano vai propor não uma psicologia genética (ao modo de Wundt) dos fenômenos psíquicos, mas uma psicologia descritiva dessas vivências. Temos aqui o rudimento programático daquilo que, na pena de Husserl, transformar-se-á em fenomenologia: descrição dessas vivências que, espontaneamente, configuram-se para nós como totalidades anteriores às partes. Husserl tinha um especial interesse nessa disciplina revigorada por Brentano, a saber, a Psicologia descritiva, uma vez que era por meio dela que se poderia esclarecer algo a que o próprio Husserl, como matemático que era, estava bem habituado, a saber, as intuições matemáticas. De certo modo, Husserl acreditava que, diferentemente dos objetos físicos, os objetos matemáticos eram constituídos a partir de intuições – e não a partir de fenômenos físicos, como as supostas sensações individuais, ou a partir de uma gramática lógica e, conseqüentemente, de atos psicológicos. O que não quer dizer que, ao se ocupar dos fundamentos da matemática por meio de uma psicologia descritiva, Husserl admitisse todas as teses de Brentano. Para Husserl, tão importante quanto dizer que os fenômenos psíquicos são totalidades que se impõem aos nossos atos psíquicos, é dizer que, independentemente desses atos, esses fenômenos são vividos como uma unidade que é a “nossa” unidade. Husserl introduz aqui, à noção de fenômeno psíquico de Brentano, um sentido vivencial, uma certa interioridade, que é a forma primitiva de nossa subjetividade. Ademais, mesmo concordando em que os objetos psíquicos têm como origem fenômenos psíquicos, daí não se segue, segundo a avaliação de Husserl, que eles sejam imanentes ao nosso psiquismo. Husserl inova aqui propondo a tese de que todos os objetos, mesmo os psíquicos, são transcendentes à nossa subjetividade, muito embora sejam diferentes entre si. Afinal, os objetos psíquicos (como os objetos matemáticos) têm atrás de si uma vivência intuitiva, que não se verifica no caso de um objeto físico. Este último depende de que um ato psíquico venha reunir as partes (que são os fenômenos físicos).
Precisamos, entretanto, tomar cuidado aqui. Pois, não podemos confundir aquilo que Husserl muito bem distinguia, a saber, a ciência matemática (e todas as demais ontologias regionais, como ele preferia) e a psicologia descritiva. Isso porque, para Husserl, uma coisa é você construir, por meio de um ato e a partir de um fenômeno (seja ele físico ou psíquico) um objeto de conhecimento. Isso é tarefa das ciências. Outra coisa bem diferente é você descrever os fenômenos psíquicos implicados na construção de um objeto – e essa, sim, é tarefa da psicologia descritiva. Mas não é apenas isso. Malgrado Husserl mesmo denominar sua nova empresa de psicologia descritiva, ele fazia questão de distingui-la da psicologia descritiva operada pelos psicólogos. Isso porque, os psicólogos – quando comprometidos com um programa descritivo (o que nem sempre era o caso) – se ocupavam das intuições particulares das diferentes subjetividades. Já a fenomenologia tinha em vista a descrição daquelas intuições que são não apenas ocorrências dos sujeitos psíquicos, mas ocorrências em que nós nos experimentamos como subjetividades, como unidades de sentido – o que não necessariamente acontece a um sujeito psicofísico, porquanto também um grupo pode se experimentar como subjetividade. Por outras palavras, a psicologia descritiva de Husserl visava descrever intuições que fossem, em verdade, fenômenos psíquicos intersubjetivos, porquanto se deixassem reconhecer como base necessária de nossos atos sociais. Husserl denominou essa classe de intuições de essências e eis, então, que a fenomenologia nasceu como uma Psicologia das essências ou, conforme Husserl, Psicologia eidética.
Ora, em 1900, quando era professor em Göttingen, Husserl publica as Investigações Lógicas, obra na qual estão lançadas as bases de um programa de psicologia eidética. Dentre os ouvintes dos cursos de Husserl encontrava-se Georg Elias Müller, que era diretor do Instituto de Psicologia da mesma universidade de Husserl. Müller imediatamente intuiu, na concepção de Husserl, algo que a psicologia descritiva de Brentano não permitia, a saber, um trabalho empiriológico. Precisamente, dado que, para Brentano, todos os objetos são imanentes à consciência, não há como se estabelecer uma investigação empírica desses objetos, menos ainda das intuições que os originaram. Mas, a partir do momento em que Husserl afirma serem os objetos unidades transcendentes, abre-se a possibilidade para uma intervenção empírica. O objetivo dessa intervenção, segundo Müller, não seria a descrição do objeto, nem tampouco a descrição das intuições (ou essências) desde onde os objetos foram constituídos. O que interessava a Müller, em verdade, era a caracterização dessas intuições enquanto leis ou causas de nossos atos e subseqüentes objetos – o que, evidentemente, Husserl considerou um disparate. Afinal, na contramão do projeto husserliano, Müller propõe uma genética dos objetos a partir das intuições (e não uma descrição das intuições), o que significa abortar o caráter intencional (vivido) daquelas intuições em proveito de um modo objetivista de apresentá-las – positivismo lógico de Müller, ao qual Husserl, assim, como mais tarde Perls, não se cansou de censurar.
Tecnicamente, o que Müller procurava fazer era, a partir dos objetos (que eram percepções representadas na forma de experimentos), tentar identificar quais eram as constantes envolvidas (que muito antes do que intuições vividas, tornam-se estruturas objetivas). Ora, Max Wertheimer era orientado por Muller, e com ele desenvolveu um experimento que consistia em duas ranhuras, uma vertical e outra inclinada mais ou menos 25 graus em relação à vertical. Quando a luz era projetada primeiro através de uma ranhura e, depois, através da outra, a fenda iluminada parecia deslocar-se de uma posição para a outra, se o tempo entre a apresentação das duas luzes se mantivesse dentro de limites adequados. Wertheimer calculou os limites de tempo em que o movimento era percebido. O intervalo ótimo situava-se em torno de 60 milissegundos. Se o intervalo entre as apresentações excedesse cerca de 200 milissegundos, a luz era vista, sucessivamente, primeiro numa posição e depois noutra. Se o intervalo fosse demasiado curto, 30 milissegundos ou menos, as duas luzes pareciam estar continuamente acesas. Wertheimer deu a esse tipo de movimento o nome de fenômeno phi. Tratava-se de um fenômeno que não poderia resultar de estimulações individuais, uma vez que a adição de estimulações estacionárias não poderia redundar, mesmo para o mais ardoroso associacionista, numa sensação de movimento. Em 1912, quando publica sua tese, Wertheimer explica o fenômeno phi em termos muito simples: trata-se de algo para o qual não há explicação, mas a partir do qual podemos explicar nossa percepção objetiva: primado do todo em relação às partes. Eis aqui um exemplo concreto da objetivação das vivências fenomênicas que, de ora em diante, passaram a ser investigadas como se fossem unidades (e não partes, como acreditava Wundt) de sentido autônomas, independentes de minha subjetividade, de meus vividos no tempo. Depois de se mudar para Frankfurt, Wertheimer encontrara dois colegas que, não obstante terem sido formados em escolas distintas, compartilhavam com ele o projeto de uma investigação (a partir de experimentos empíricos) disto que a psicologia eidética de Husserl havia legado, a saber, as essências ou intuições (de totalidades), que eles melhor preferiram tratar como estruturas objetivas chamadas gestalten. Juntos, eles se lançaram na empreitada que consiste em se determinar as características elementares das gestalten que, dessa forma, deixavam de ser vividos psíquicos, para se tornar a causa objetiva de nossos atos e respectivos objetos. E eis que nascia, então, a Psicologia da Gestalt.


III

Apesar de ter sido concebida a partir da psicologia eidética de Husserl, a Psicologia da Gestalt não se estabeleceu como uma psicologia descritiva, voltada para as nossas vivências, que são as essências elas próprias. Mesmo aceitando a tese de que todo objeto psíquico estava precedido por um sentido de totalidade (e não por partes associadas) – qual seja esse sentido, as essências ou fenômenos psíquicos - eles não consideravam essas essências vividos da subjetividade, mas, sim, configurações autônomas. De certo modo, as essências eram entendidas como estruturas sem interior. Razão pela qual, a unidade delas tinha de ser explicada. Eis em que sentido, inspirada no projeto de Georg Elias Müller, a Psicologia da Gestalt nasceu antes como uma psicologia genética, tal como a psicologia de Wundt, muito embora se opusesse frontalmente à genética wundtiana (e que consistia em se explicar os objetos a partir da associação de percepções de dados isolados). Importava a Max Wertheimer, Wolfgang Kölher e Kurt Koffka (os quais compõem a primeira geração da Psicologia da Gestalt) compreender o que eram as essências enquanto “fatos” elementares, independentemente de nosso psiquismo. O que implicava a introdução de uma postura “objetivista” na consideração das essências ou intuições, de ora em diante denominadas de gestalten. Ora, para Husserl, assim como para Brentano, nossas intuições não são ocorrências às quais podemos atribuir características positivas. Elas são vivências de cada um de nós e desde onde nossos atos podem constituir objetos. Razão pela qual, ao considerar as essências fatos elementares que deveriam ser esclarecidos em seus traços característicos, os psicólogos da Gestalt transformaram-nas em quase-objetos. O que é algo extremamente problemático, uma vez que, dessa forma, não só se abortava o caráter vivido (e, nesse sentido, intencional) das gestalten, quanto se reavivava uma dificuldade crônica, que se impunha a toda a tradição genética desde o século XVII. Qual seja essa dificuldade, o esclarecimento do tipo de vínculo que haveria de vigorar entre nossas representações ou objetos psíquicos (no caso, nossas percepções) e sua causa objetiva (no caso, as essências entendidas como gestalten). Nem bem havia nascido, a Psicologia da Gestalt já tinha de lutar contra essa doença clássica, que incomodava os filósofos há séculos.
De fato, depois de 1912, Wertheimer cada vez mais se distanciou dos motivos fenomenológicos de Husserl – e que consistiam na descrição do modo como os atos, a partir dos vividos intencionais (que são as essências ou fenômenos psíquicos), constituem objetos – para se dedicar a um programa genético de explicação dos objetos (da percepção) a partir de estruturas autóctones – que são as gestalten. Isso implicava o árduo trabalho de se determinar, primeiramente, o que eram tais estruturas. O que efetivamente Wertheimer fez e divulgou por meio de um conjunto de enunciados empíricos que se tornaram uma marca distintiva da primeira geração da Psicologia da Gestalt. Em 1923, Wertheimer apresentou o que ele chamou de princípios da organização da percepção, os quais costumam ser testados mediante um tipo de prova demonstrativa (que não vem ao caso aqui reproduzir). Esses princípios e suas respectivas definições são os seguintes: i) proximidade: os elementos próximos no tempo ou no espaço tendem a ser percebidos juntos; ii) similaridade: sendo as outras condições iguais, os elementos semelhantes tendem a ser vistos como pertencentes à mesma estrutura; iii) direção: tendemos a ver as figuras de maneira tal que a direção continue de um modo fluido; iv) disposição objetiva: quando vemos um certo tipo de organização, continuamos a vê-lo, mesmo quando os fatores de estímulo que levaram à percepção original estão agora ausentes; v) destino comum: os elementos deslocados, de maneira semelhante de um grupo maior, tendem eles próprios, por sua vez, a ser agrupados; vi) pregnância: as figuras são vistas de um modo tão “bom” quanto possível, sob as condições de estímulo, de onde se segue que a boa figura é uma figura estável., que não pode se tornar mais simples ou mais ordenada por um deslocamento perceptual. Ora, é preciso não confundir aqui a gestalt, enquanto essa tendência das partes a assumirem uma certa configuração – que é o que os enunciados empíricos de Wertheimer apresentam - e minhas percepções efetivas, que são os objetos psíquicos propriamente ditos. As gestalten estariam mais próximas daquilo que os fenomenólogos chamavam de essências intuídas ou fenômenos psíquicos. Todavia, não obstante elas estarem caracterizadas como totalidades anteriores às partes, elas implicam antes uma certa “realidade” transcendente ao nosso psiquismo. Mais do que isso, trata-se de totalidades que se impõem e formatam nossos atos e, conseqüentemente, nossas representações objetivas – o que lembraria, de certo modo, a noção clássica de coisa extensa, da metafísica cartesiana. Somente a última lei, que fala de uma “boa forma” – a qual não pode existir independentemente da subjetividade, porquanto é a própria subjetividade o critério do que seja “bom” - ainda mantém vínculo com a noção de essência enquanto vivido subjetivo, que é a forma como a fenomenologia propõe a noção de essência . De resto, as gestalten já são outra “coisa”, leis de organização gravitando entre nossos vividos (tal como compreendidos pela fenomenologia) e nossos objetos efetivamente representados (por meio de nossos atos).
Ora, essa inclinação objetivista de Wertheimer acabou lhe rendendo complicações epistemológicas. Afinal, se nossas percepções (ou objetos psíquicos) estão orientadas desde estruturas autônomas (que não são nossas vivências, conforme crê o fenomenólogo, mas, sim, gestalten, tendências de agrupamento das partes de um certo contexto segundo leis próprias), o que assegura a validade objetiva de nossas percepções? Como podemos saber que nossas percepções são correlativas a uma gestalt específica? A resposta para essa questão foi estabelecida nos termos de uma teoria do isomorfismo. Ou seja, para Wertheimer, é como se houvesse, entre essas essências (que são as gestalten) e nossos atos (e respectivos objetos), uma forma comum, uma proporcionalidade um para um (1:1). Mas o isomorfismo, em vez de uma solução, acabou se tornando mais um problema, afinal, qual é essa forma comum, como podemos averiguá-la?
Kurt Koffka evita falar da teoria do isomorfismo. Ele tenta resolver o problema da relação entre nossas percepções e as gestalten apelando para uma postura que ele próprio denominou de fisicista. Segundo Koffka, a diferença entre nossas percepções e as gestalten diz respeito apenas a uma diferença de ótica. Se olharmos por uma ótica molar, o que iremos encontrar é o domínio ou ambiente comportamental. É nele que estão sitiadas as nossas representações objetivas. Trata-se do conjunto de percepções e condutas que estabelecemos de maneira sensório-motora e simbólica. Mas, por outro lado, se nos servirmos de uma ótica molecular, o que encontraremos é o ambiente que Koffka chama de geográfico. Neste, localizamos todos os eventos fisiológicos, químicos e físicos que envolvem nosso organismo e o meio. Ora, acredita Koffka, tanto no ambiente comportamental quanto no ambiente geográfico estamos diante do mesmo fato, apenas que segundo óticas diferentes: molar ou molecular. E é essa diferença de ótica que nos permite pensar a diferença entre nossas representações objetivas (nível molar ou ambiente comportamental) e as gestalten (nível molecular ou ambiente geográfico). Em última instância, elas são a mesma coisa, razão pela qual, um mapeamento dos circuitos nervosos é complementar a uma descrição de nossas representações objetivas.
Köhler não descarta o fisicismo de Koffka, apenas acha que a diferença de óticas não esclarece o principal, que é discriminar em que sentido o ambiente comportamental e o ambiente geográfico são comparáveis. Por essa razão, Köhler retoma a teoria do isomorfismo de Wertheimer, mas tentando esclarecer em que consiste a aludida proporcionalidade entre as gestalten e as nossas representações objetivas. Para tal, Köhler resgata de Edgar Rubin - um discípulo de Husserl em Göttingen e que, à diferença de Müller, manteve-se fiel ao projeto de uma psicologia eidética – o binômio “figura-fundo”. O interesse de Rubin, em verdade, era compreender nossas vivências de percepção espacial. Ou, por outras palavras, Rubin queria entender as essências implicadas no processo de construção de representações objetivas do espaço. E, por sugestão daquilo que aprendera com as Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo de Husserl (1994), Rubin construiu uma teoria que muito auxiliou Köhler.
Husserl compartilhava com a tradição, que remonta a Kant, o entendimento de que a percepção de um objeto material sempre é precedida pela representação da unidade de nossas vivências materiais no tempo. Para que tal representação se dê, entretanto, é de fundamental importância nossa intuição sobre a unidade do tempo, a qual Husserl descreveu nos termos de uma teoria sobre a consciência interna do tempo. Conforme essa teoria, não devemos entender o tempo como uma forma a priori da sensibilidade (da percepção interna especificamente), tal como postulava Kant. Se é verdade que o tempo tem a ver com a subjetividade, isso não quer dizer que subsista nela como uma forma. Tempo é sim a experimentação que a consciência tem de seu próprio fluir, o qual se apresenta, por um lado, como um continuum em constante mutação (a cada nova vivência, a vivência antiga continua vinculada à minha existência, apenas que de forma modificada, como um perfil da primeira e, sucessivamente, como perfil do perfil e assim por diante). Por outro lado, esse fluir configura-se como uma rede de perfis retidos em torno de cada vivência atual, de modo a se estabelecer, para essa vivência, uma espécie de horizonte em dupla direção: passado e futuro. E eis em que sentido, para Husserl, em cada vivência material, a consciência pode intuir um sentido de totalidade, que é sua própria vida em constante escoamento ou, numa só palavra, tempo. Husserl, ademais, vai dizer que essa experimentação que a consciência tem de seu próprio fluir é a forma mais elementar de nossa vida psíquica (e, nesse sentido, de nossa intencionalidade), porquanto estabelecemos, sem a necessidade do recurso a um ato psíquico, um horizonte de perfis para nossas vivências atuais (as quais sempre requerem um ato psíquico). Razão pela qual Husserl vai chamar a experiência de apercepção da unidade do próprio fluir de intencionalidade operativa (e não de ato, como no caso de nossas demais intuições). Por meio dela, deflagramos um “campo de presença” de “perfis retidos” em favor de “vividos atuais” . Ora, para Husserl, é essa experimentação que a consciência tem de si mesma como campo de presença junto a um vivido material que permite que esse vivido adquira um sentido que, por si só, ele não poderia ostentar. Tal significa que, se eu vejo uma face e reconheço se tratar da face de um cubo, é porque, concomitantemente à percepção material desse dado, comparecem perfis retidos de outras vivências, que então eu experimento como uma só vida, e exprimo como um só objeto. Eis em que sentido, para Husserl, toda percepção espacial está alicerçada na experiência temporal que a consciência tem de si mesma.
Em 1912, Rubin toma para si o desafio de descrever, a partir de experiências de percepção espacial (e não a partir de experiências de constituição de objetos temporais, como seria mais fácil), esse primado da intuição temporal. E eis, então, que introduz as expressões “figura” – para designar o correlato objetivo do ato de visar, em um dado material, uma unidade de sentido – e “fundo” – para indicar a ocorrência intuitiva de um campo de presença formado por perfis que, como tais, não são experimentados materialmente. No experimento do vaso, Rubin mostra como a representação de uma certa figura (por exemplo, o vaso), depende de que eu ofereça, para um certo dado material (a parte branca do desenho), um certo horizonte (fundo) de perfis, em detrimento dos outros dados materiais presentes ao lado do dado visado (e que assim se tornam quase imperceptíveis, como é o caso das partes pretas, no experimento de Rubin). Ademais, em favor de sua teoria, Rubin mostra que posso tranqüilamente visar, na mesma base material, uma outra figura, desde que eu escolha outro dado material, fazendo desaparecer o dado de antes em proveito de outros perfis retidos. E eis que posso, na mesma configuração material em que percebi um vaso, reconhecer duas faces desenhadas de perfil.
Pois bem, Köhler apoderou-se das experiências de Rubin (que só foram publicadas em 1915), mas para ressaltar algo que não necessariamente tinha a ver com os propósitos de Rubin, a saber, que em toda configuração material, há elementos que são figura e outros que são fundo, podendo ser intercalados, em alguns casos. Ao fazer essa interpretação, Köhler desprezou a importância do elemento intencional (que é a configuração subjetiva de um campo de perfis temporais), como se ele não fosse necessário para a caracterização de uma figura ou de um fundo. Mais do que isso, Köhler afirmou ser o arranjo figura-fundo algo característico tanto das gestalten, quanto de nossas representações psíquicas. E eis em que sentido podia falar de um isomorfismo entre as gestalten e os objetos de nossa percepção.
Ora, não tardou muito para que o próprio Köhler se desse por conta de que o programa de investigação assumido pela Psicologia da Gestalt alterava muito pouco aquilo que a própria Psicologia da Gestalt tanto procurava criticar, a saber, o atomismo das teorias associacionistas. A única diferença que os gestaltistas conseguiram introduzir era a consideração das sensações não como partes, mas como totalidades. O que não alterava o quadro de conseqüências, uma vez que os objetos continuavam sendo concebidos como a representação segunda de uma positividade de primeira ordem, completamente desprovida de interioridade e, nesse sentido, estranha ao homem. E talvez fosse por isso que Husserl dissesse, num tom de desencanto, que “tanto a psicologia atomística como a estrutural conservam, no mesmo sentido primordial, um naturalismo psicológico” (1913: 390).


IV

Não se passaram muitos anos depois da publicação das Investigações Lógicas (ocorrida em 1900) para que Husserl percebesse que, se em algum sentido a fenomenologia deu caução a essa forma de naturalismo, que é a Psicologia da Gestalt, ele próprio tinha responsabilidade nisso. Afinal, o projeto de uma fenomenologia escrita como psicologia eidética deixava na bruma o sentido preciso da “eidética”. Por um lado, Husserl era claro ao dizer que as essências eram fenômenos psíquicos, efetivamente intuídos pelos sujeitos. Mas, por outro, dizia serem tais essências ocorrências intersubjetivas – o que dava margem a que se pensasse em um tipo especial de natureza, que em vez de concebida como coleção de partes, devesse ser entendida como um conjunto de totalidades autóctones. E é para reparar essa ambigüidade que Husserl, nos anos seguintes, se ocupou da consecução de uma fenomenologia que, em vez de psicológica, se tornaria uma verdadeira filosofia. Husserl entendeu a necessidade de se suspender o naturalismo recalcitrante em suas posições iniciais, em favor de uma abordagem verdadeiramente descritiva, que não partisse da suposição de nenhuma natureza preestabelecida (fosse ela entendida como subjetividade psicofísica, fosse ela entendida como estrutura ou gestalt), mas da experiência intuitiva ela mesma. Por outras palavras, Husserl não queria partir de uma certa representação objetiva (um ente, uma substância, uma coisa...), mas das “vivências” desde onde toda e qualquer representação fosse possível. Para tanto, seria preciso se resguardar a primazia dessas vivências em relação às representações objetivas, o que Husserl julgou poder fazer assumindo um ponto de vista transcendental. Afinal, a abordagem transcendental não se dirige a objetos, mas ao “modo” como conhecemos objetos. Eis em que sentido, então, Husserl propôs uma “redução” do domínio da fenomenologia, o que significou limitá-la à descrição estritamente dinâmica dos processos de constituição de objetos a partir de intuições (redução eidética) e à descrição estritamente dinâmica da vivência (subjetiva e intersubjetiva) dessas intuições (redução transcendental). De onde se depreendeu uma fenomenologia das essências, agora entendidas não como vividos “dos” sujeitos psicofísicos, mas como vividos constituidores da subjetividade empírica. Trata-se, em verdade, de processos transcendentais, que Husserl reuniu sob o título de “ego transcendental”, querendo com isso designar não a minha individualidade, mas a minha implicação no todo. O “ego transcendental” não é uma substância – no interior da qual poderíamos encontrar o universo inteiro -, mas uma dinâmica, um processo que não existe independentemente das partes envolvidas (subjetividades empíricas, objetos transcendentes), muito embora não se resuma a essas partes, consistindo antes na relação que as faz existir. O “ego transcendental”, nesse sentido, é o “a priori da correlação”, o “a priori do campo”.
Ora, mais do que as duras críticas que Husserl dirigiu à noção de gestalt, a proposta de uma fenomenologia como descrição do campo de correlação, deu novo alento a Psicologia da Gestalt, muito embora já não se tratasse da mesma escola. Podemos inclusive falar de uma segunda geração, muito embora nem todos os envolvidos se autodenominassem psicólogos da gestalt. De certo modo, é o próprio Köhler quem começa a transformação, a partir do momento que admite não fazer sentido se buscar na “natureza” essências como “gestalten”. As condutas (dos antropóides, por exemplo), não são a representação de uma essência que estaria a meio caminho entre o mundo físico e o psiquismo de cada qual. A conduta é muito mais do que isso; ela é o próprio campo no interior do qual revela-se uma constituição física particular e uma certa “cultura” de representações, que é nosso psiquismo. Essa mudança de ótica repercutiu enormemente junto ao trabalho de jovens pesquisadores, como Kurt Lewin, que reconheceu no tema do “campo” a melhor formulação da noção de gestalt. Essa deixa de ser uma configuração específica da natureza – e a que nosso psiquismo procuraria representar de modo objetivo - para se tornar a própria relação de constituição e diferenciação de nossa individualidade frente aos outros e ao mundo. De onde Lewin intui a necessidade de uma psicologia escrita nos termos de uma teoria de campo.
Lewin retoma de Koffka a distinção “mundo geográfico e mundo do comportamento (também chamado de fenomênico, numa alusão ao psiquismo)”. Mas, diferentemente de Koffka, Lewin não os considera dois lados de uma mesma moeda, que para Koffka seria a realidade física. Isso porque a noção de realidade física faz crer que, em última instância, tanto o mundo geográfico, quanto o mundo do comportamento, estão regidos por leis ou estruturas extemporâneas à efetivação das condutas e dos eventos materiais. Contra o que Lewin introduz a noção de espaço vital, noção essa que, em certo sentido, procura corresponder à noção fenomenológica de campo. O espaço vital diz respeito à totalidade dos fatos que determinam o comportamento do indivíduo num certo momento. Ele inclui a pessoa e o meio, e representa a totalidade dos eventos possíveis. O que não quer dizer que Lewin aceitasse a pertinência de relações de causalidade entre a pessoa e o meio. Ao contrário, quando fala de espaço vital, Lewin tem em mente a configuração espontânea de fronteiras (topológicas e não quantitativas) e direções de deslocamentos (hodológicos e não geométricos), por meio das quais, junto ao meio circundante, uma pessoa (que tanto pode ser um indivíduo, como um grupo) se singulariza. Por outras palavras, o espaço vital tem a ver com o processo amplo de emergência de figuras no interior de um campo, que é a gestalt. Aquelas fronteiras (que não são áreas delimitadas, mas regiões de permeabilidade entre as partes e o todo) e aqueles deslocamentos (que não são propriedades físicas descritas geometricamente, mas correlações de força no interior de um espaço topológico) não são leis extemporâneas, ou estruturas transcendentes às partes envolvidas nesse campo que é o espaço vital. Ao contrário, elas são as essências fenomenológicas, que Lewin prefere chamar de constructa. Uma constructa, seja ela uma fronteira de permeabilidade ou uma certa valência de nosso deslocamento no interior de um todo, não é, portanto, uma estrutura a priori ou física, tampouco um evento privado de minha subjetividade empírica. A constructa é uma forma dinâmica de configuração das partes no todo. Entretanto, não obstante a teoria de campo fazer jus à demanda husserliana de uma fenomenologia devotada à descrição de uma dinâmica, o recurso de Lewin à matemática topológica e a física hodológica acabaram por solapar algo muito caro à fenomenologia, a saber, a egoidade dos processos transcendentais – e que a fenomenologia designa por meio da noção de intencionalidade ou motivação. Ainda que Lewin tivesse se ocupado de demarcar pessoas, ainda que falasse de valências específicas de um movimento de deslocamento no interior do todo, essas referências à subjetividade não conseguiram caracterizar a experiência de apercepção da unidade de todo – que é o que propriamente caracteriza a intuição fenomenológica. É como se Lewin falasse de pessoas que não são ninguém, de um mundo no qual não se está, pois em momento algum ele se deu o trabalho de descrever a “sua” implicação no todo. Ora, se é verdade que a fenomenologia suspende o ponto de vista do sujeito psicofísico (que é um ponto de vista representado, constituído a respeito de nós mesmos), isso não quer dizer que ela tenha eliminado a subjetividade. O importante aqui é percebermos que a subjetividade não é um estado, uma qualidade ou uma ação. Menos ainda uma substância. A subjetividade é nossa participação no todo. O que efetivamente Lewin não descreveu, malgrado reclamar para sua teoria o status de fenomenologia.
Ora, diferentemente de Lewin, Kurt Goldstein sempre foi muito atento à demanda de “subjetividade” estabelecida pelo discurso fenomenológico, não obstante só admiti-lo tardiamente. Por outras palavras, Goldstein sempre se preocupou em demarcar o lugar do sujeito da experiência – o qual não se confunde com o eu psicofísico ou com qualquer outra representação objetiva produzida no âmbito de nossas teorias psicológicas. O sujeito da experiência é, para Goldstein, uma dinâmica de auto-regulação (self-actualization) ou, numa alusão não confessa à fenomenologia, “essência” (1933: 267).
A rigor, Goldstein nunca se considerou um fenomenólogo – muito embora, em sua autobiografia (1967), publicada postumamente, admitisse que suas principais teses eram muito semelhantes às de Husserl. O interesse pela noção fenomenológica de subjetividade deu-se por meio de Adhèmar Gelb, assistente de Köhler e leitor de Husserl. Nas décadas de 20 e 30, Gelb e Goldstein não só trabalharam juntos, quanto publicaram estudos sobre o problema gestaltista da relação figura-fundo, o qual, justamente, Köhler importou da fenomenologia. A preocupação principal de Goldstein, nessa época, era compreender os distúrbios de linguagem dos soldados vítimas de lesões cerebrais contraídos na Primeira Guerra Mundial. E no artigo Analyse de l’aphasie et étude de l’essence (1933), ele esclarece precisamente, em que sentido está a entender a relação figura-fundo. Esta não é, assim como para Köhler, a lei constitutiva dessas formações espontâneas, que são as gestalten físicas, ou a forma específica de nossas representações mentais. Figura-fundo tem antes a ver com o modo de funcionamento do organismo como um todo. Não apenas isso, figura-fundo tem a ver com a dinâmica de inserção do organismo no meio. O que é o mesmo que dizer que, para Goldstein, a relação figura-fundo não diz respeito a uma certa objetividade, mas a uma certa vivência, a uma certa operação, que ele denominava de “essência”. E, tal como Husserl, Goldstein compreende essência não como uma coisa (sentido ontológico), ou como uma finalidade ou tarefa específica (sentido teleológico). A essência é, segundo o próprio Goldstein, um princípio de conhecimento, nos termos do qual deveríamos poder descrever o organismo que efetivamente somos (1933: 267).
Ora, a descrição dessa essência vivida – que é a implicação global das partes no todo do organismo e, correlativamente, do organismo no meio – fez mais que simplesmente reaproximar os conceitos gestálticos (sobremodo o conceito de figura e fundo) de sua matriz fenomenológica. Ela também, e principalmente, se prestou à elaboração de uma teoria que se tornou conhecida pelo nome de “organísmica”. O que não nos autoriza a pensar que Goldstein estivesse falando de uma certa “entidade” empírica, correlativa do eu psicofísico. Quando fala em organismo, Goldstein tem em conta aquelas essências, que são nossas vivências de pertencimento a uma totalidade, que é a subjetividade que constituímos junto ao meio. A melhor ilustração dessa noção de organismo, Goldstein a fornece descrevendo o comportamento de seus pacientes acometidos de lesão cerebral. Segundo observou Goldstein, tal comportamento só podia ser entendido quando vinculado a um exame da matriz total do comportamento do paciente. O que, no começo, parecia ser um resultado direto da lesão, revelava-se, no decurso da observação (na qual Goldstein se envolvia pessoalmente), uma reação indireta, uma tentativa de ajustamento das conseqüências da lesão (perda da capacidade de abstração) ao mosaico da vida por inteiro. Nesse sentido, a mesma lesão física podia implicar uma variedade enorme de síndromes do comportamento. De onde Goldstein inferiu a tese de que não somos, primitivamente, o resultado de causas estruturais (sejam elas atômicas ou gestálticas), mas uma dinâmica de respostas à estímulos ou de equalização de contingências que desafiam nossa própria experimentação como totalidades.
Goldstein, entretanto, reconheceu que essa dinâmica se dá em dois níveis diferentes. Por um lado, temos o nível vital ou conservativo, que consiste nos sistemas internos de compensação fisiológica, os quais funcionam como um todo inter-relacionado (onde o que acontece a uma parte tem implicação no todo). O que poderia sugerir a definição gestaltista de todo. Porém, isso não é verdadeiro. Pois, enquanto a noção gestaltista de todo sinaliza para um sistema de equilíbrio desprovido de interioridade (trata-se apenas de um equilíbrio autóctone das partes), a noção de todo de Goldstein requer uma interioridade, que é o poder de centragem das células num organismo (1940: 300-2). Essa centragem não é senão a capacidade de cada célula para “conservar” o “equilíbrio (homeostase)” entre sua própria concentração interna (razão entre suas partículas solventes e suas partículas solúveis) e a concentração das células vizinhas. O que implica uma sorte de comunidade, que se estabelece por meio da liberação e absorção de íons entre as células envolvidas. Em certo sentido, a noção de todo de Goldstein retorna à noção fenomenológica de todo, porquanto requer uma centragem que é, simultanemante, descentramento, assim como a subjetividade fenomenológica é, concomitantemente, intersubjetividade.
O outro nível da dinâmica organísmica é aquele que Goldstein denomina de valorativo ou funcional. Ele diz respeito aos sistemas de contato, sensoriais e motores, pelos quais o organismo obtém do meio o que precisa para atender às suas necessidades vitais. Goldstein descreve aqui o organismo como um processo de individuação ou auto-realização (self-actualization) no meio (1939: 146). Um organismo sexualmente impulsionado realiza-se no coito, um organismo faminto na alimentação. Goldstein resgata aqui um outro tema fenomenológico sobre o qual a Psicologia da Gestalt calou, a saber, nossa intencionalidade (seja ela operativa, como no caso de nossa auto-realização sensório motora, ou de ato, como no caso de nossas condutas simbólicas). Enquanto totalidades dotadas de interioridade, não somos seres isolados do meio ou, então, passivos frente a ele. Somos capazes de realizar, na transcendência, modos de ampliação de nossa existência organísmica. Entretanto, faltou a Goldstein uma reflexão mais específica sobre o sentido dessa dinâmica de auto-realização, o que exigiria uma teoria da subjetividade, algo que só uma investigação sobre o caráter temporal de nossa dinâmica organísmica poderia apurar . De toda sorte, a descrição goldsteiniana do organismo como um processo de individuação ou auto-realização, mostrou que não só não somos passivos, como o mundo não é para o organismo um conjunto de “leis” físicas e químicas, mas uma sorte de sinais e significados. Por conta disso, podemos nos colocar de acordo com ele. “Em circunstâncias adversas, o organismo desenvolve mecanismos adaptativos que podem ser mais funcionais, ou menos. Um sintoma é, antes de mais nada, uma forma de ajustamento” (Tellegen, 1984: 38-9).


V

Ora, se tivermos em conta os desdobramentos da teoria de Goldstein junto à Gestalt-terapia, talvez já não pareça estranho que, não obstante assumir o nome Gestalt, Perls e seus colaboradores. tivessem recusado quase todos os enunciados empíricos da Escola de Frankfurt. Da mesma forma, talvez já não pareça estranho que Perls tivesse considerado sua própria teoria uma psicologia eidética, tema da fenomenologia. Afinal, foi o próprio Goldstein que, ao criticar a Psicologia da Gestalt e resgatar o ponto de vista das essências, abriu essa possibilidade. Mas isso é tema para um outro trabalho.


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