Produção Científica - Artigos e Capítulos
Verbete Aqui-Agora no Gestaltês - Gestalt-terapia
O termo ‘aqui e agora’ é aplicado na Gestalt-terapia tanto para exprimir o caráter temporal do sistema self e das vivências de contato nele estabelecidas, quanto para designar um “estilo” de intervenção clínica adotado pelos gestalt-terapeutas e cujo propósito é promover a “concentração” do consulente no modo “como” este, na atualidade da sessão, opera com isso que, para ele, é passado ou futuro. Os dois empregos estão intimamente relacionados, a ponto de podermos dizer que constituem a mesma noção.
Na obra Ego, fome e agressão (1942), Frederick Perls não emprega, explicitamente o termo ‘aqui e agora’. Todavia, ao criticar as práticas psicanalíticas que fazem do passado a causa dos sintomas presentes, Perls afirma não haver “outra realidade a não ser o presente” (1942, p. 146). O que não significa que desprezasse a importância do passado e do futuro na experiência clínica. Ainda assim, afirma Perls (1942, p. 148), o passado só existe enquanto puder se fazer sentir no presente, da mesma forma como o futuro não é mais que uma possibilidade que se abre na atualidade. A partir dessa constatação, Perls propõe uma forma de intervenção clínica em que, em vez de promover a busca “arqueológica” no passado pelas causas do sofrimento atual, o terapeuta incentiva a “concentração” do consulente nas manifestações presentes desse passado, tal como elas se dão a conhecer na atualidade da sessão. Dessa forma, o consulente recobra a awareness de seus próprios modos de ajustamento, da maneira como se interrompe e das possibilidades que ainda lhe restam ou que a atualidade inaugura para ele lidar com o que tiver restado como situação inacabada vinda do passado.
É só na obra Gestalt Terapia (1951, p. 51) que a expressão ‘aqui-agora’ ganha seu formato definitivo. Os autores acrescentam à forma como Perls concebia a integração das dimensões temporais no presente uma leitura fenomenológica, explicitamente fundamentada no modo como o filósofo Edmund Husserl propunha a noção de “campo de presença”, de que a noção de “aqui e agora” é uma versão. Em sua tentativa para explicitar de que modo nós vivemos, antes de representá-la, a unidade de nossa inserção operativa no mundo da vida, Husserl propõe uma interpretação, segundo a qual: toda vez que somos afetados por uma matéria impressional, por exemplo, uma nota musical, se essa experiência foi capaz de dar, às minhas vivências passadas, a ocasião de uma retomada, ela não desaparece tão logo eu ouça outra nota. A primeira nota permanece “retida” como horizonte de percepções duradouras, o que não quer dizer que permaneça inalterada. A cada nova vivência, aquela que ficou retida sofre uma pequena modificação. Ainda assim, permanece como fundo disponível à espera de retomada. Razão pela qual, o valor de cada nova nota escutada não se restringe às propriedades materiais que essa mesma nota é capaz de mobilizar, mas inclui um fundo de vivências passadas (por exemplo, notas já ouvidas), para o qual a nota atual há de abrir perspectivas, possibilidades de retomada (num todo de sentido, que é a melodia). E eis que, em torno de cada vivência material, forma-se um “campo de presença” temporal (HUSSERL, 1893, p.141), em que o passado e o futuro não estão ausentes, mas comparecem como horizontes virtuais. Esse campo, a sua vez, não permanece eternamente. Tão logo um novo dado material surja demandando a participação de meus horizontes de passado e futuro, o campo de presença se desmancha em proveito da configuração de um novo. Essa passagem assegura à minha própria história uma auto-aparição fluida, porquanto, a cada nova aparição, é a mesma história que retorna, mas em uma configuração diferente.
Perls, Hefferline e Goodman utilizam a expressão ‘aqui e agora’ para elucidar essa unidade de passagem que é o “campo de presença”. Com aquela expressão, os autores não estão querem se referir a um determinado instante ou lugar, mas ao fato de que, em cada instante e lugar somos trespassados por uma história que nos lança ao futuro e, conseqüentemente, àquilo que vem nos surpreender. Cada ‘aqui e agora’ é mais do que uma posição determinada. Trata-se de um campo temporal ou, o que é a mesma coisa: campo de presença do já vivido como horizonte de futuro para a materialidade da relação organismo/meio. No interior de cada ‘aqui e agora’, operamos o “contato”, que é justamente essa reedição criativa (ou ajustamento criativo) do passado frente às possibilidades abertas pela atualidade do dado. Nas palavras dos autores:
(c)ontato é achar e fazer a solução vindoura. A preocupação é sentida por um problema atual, e o excitamento cresce em direção à solução vindoura, mas ainda desconhecida. O assimilar da novidade se dá no momento atual à medida que este se transforma no futuro (1951, p. 48).
O self, por sua vez, é apenas o sistema de contatos no presente transiente, o fluir de um “aqui e agora” noutro, a passagem de um campo de presença para outro, a fronteira-de-contato em funcionamento – que é um outro nome para a síntese de passagem de que falava Husserl. Nas palavras dos autores: “o presente é uma passagem do passado em direção ao futuro, e esses tempos são as etapas de um ato do self à medida que entra em contato com a realidade” (1951, p. 180).
De onde se depreende, mais uma vez, que “em psicoterapia procuramos a instigação de situações inacabadas na situação atual e, por meio da experimentação atual com novas atitudes e novos materiais (...), visamos uma integração melhor” (1951, p. 48). Ou então, conforme Perls, “(a) terapia gestáltica é, então, uma terapia ‘aqui e agora’, em que pedimos ao paciente durante a sessão para voltar toda sua atenção ao que está fazendo no momento, no decorrer da sessão”. Por essa razão: “(p)edimos ao paciente para não falar sobre seus traumas e problemas da área remota do passado e da memória, mas para reexperenciar seus problemas e traumas – que são situações inacabadas no presente – no aqui e agora” (1973, p. 75-76).
AUTORES: MÜLLER, M.J.; GRANZOTTO, R.L.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HUSSERL, Edmund. 1893. Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. Trad. Pedro M. S. Alves. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda,[s.d.].
PERLS, Frederick; HEFFERLINE, Ralph; GOODMAN, Paul. 1951.Gestalt Terapia.Trad. Fernando Rosa Ribeiro. São Paulo: Summus, 1997.
PERLS, Frederick 1942. Ego, Fome e Agressão. Trad. Georges Boris. São Paulo: Summus, 2002.
______. 1973. A abordagem Gestáltica e Testemunha Ocular da Terapia. Trad. José Sanz. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.