Produção Científica - Artigos e Capítulos

Desafios da prática clínica na pós modernidade

Desafios da prática clínica na pós modernidade
Rosane Lorena Granzotto

Vivemos num mundo em que tudo é ilusório, virtual e efêmero. A angústia, o medo, o sofrimento e a insegurança são os sentimentos que permeiam nossas experiências nas relações sociais. Há uma sensação de desorientação devido à inconstância e a precariedade dos planos que homens e mulheres fazem para as suas vidas, e não encontramos solução para isso nas certezas passadas e nem nos textos sagrados ou científicos. A corrosão do caráter é outra manifestação marcante da profunda ansiedade que caracteriza o comportamento, a tomada de decisões e os projetos de vida de homens e mulheres.
A sociedade está paralisada pelo medo que reflete o despertar do sono da modernidade, caracterizada pela crença:
- na verdade alcançável pela razão (o mundo caminha para alguma coisa)
- na vida administrada.
A Modernidade (sólida) começou em mais ou menos 1.500 com a crença na transformação do mundo através da ciência e da racionalidade (Copérnico, Galileu, Francis Bacon). Atinge a maturidade no século XIX com os intelectuais acreditando que descobriram a fórmula de como a história anda através da troca de mercadoria. A sociedade ganha mecanismos sociais como por exemplo a certidão de nascimento, escolas que dão uma profissão, etc.
Mas, o no século XX começa a modernidade começa a viver seu pesadelo total. Bauman (1989) traz a experiência do Holocausto como o marco da derrocada da modernidade. A ciência, a ordem e a administração da vida gera um de seus monstros e vimos o ser humano se afastar da reflexão moral. Ficamos preocupados com a ideia de eficácia, em resolver problemas. Não há tempo para se preocupar com problemas morais. No holocausto a dinâmica e violência da racionalidade chegam ao topo. No extermínio trabalharam pessoas normais (não monstros), pessoas que você poderia encontrar na rua.
Nos anos 80 começa a circular a ideia de pós-modernidade. Jean-François Lyotard (1979) diz que a pós-modernidade é a recusa de narrativas longas sobre as coisas (teorias complexas) fundadas na crença no progresso (revolução industrial) e nos ideais iluministas de igualdade, liberdade e fraternidade (revolução francesa). Não há mais garantias, posto que nem mesmo a ciência pode ser considerada como fonte de verdade. A consciência pós-moderna é a consciência do fracasso da modernidade, das utopias que nos prometeu.
Lyotard (1979) entendeu a modernidade como uma condição cultural caracterizada pela mudança constante na perseguição do progresso. A pós-modernidade representa então a culminação desse processo em que a mudança constante se tornou o status quo e a noção de progresso obsoleta.
Bauman (2000) diz que a pós–modernidade, modernidade líquida como prefere chamar, é o despertar maldito de um sonho colorido para um pesadelo. Estávamos construindo um mundo simétrico, acreditávamos na nossa capacidade de organização, na causa e efeito. Mas também é um momento de esperança porque a modernidade, como já vimos, tem uma série de problemas.
Nos tempos pós-modernos vivemos como se estivéssemos sobre uma fina casca de gelo, se pararmos ela racha e quando rachar nos afogamos. Além de não termos nenhuma referência clara de como resolver os problemas, não temos tempo. Esta é uma característica fundamental do diagnóstico do momento. Temos que correr muito, a velocidade é enorme, e não se está correndo para lugar nenhum, mas temos que correr, se não a casca racha.
Em “Modernidade líquida”, Bauman (2000) parte da metáfora “no capitalismo tudo que é sólido desmancha no ar”, dizendo que não se trata de ar, mas de água pois as coisas não tem forma, elas se espalham. Vivemos numa realidade ambígua, multiforme. Tudo é líquido, não podemos pegar nada com a mão. Nossa relação com nossa família, com os filhos, com o companheiro(a) é líquida, nos escapa e a qualquer momento acaba. Não temos nenhuma garantia de que a pessoa que está conosco permanecerá conosco, inclusive porque esta pessoa é alimentada pelo mesmo motor que nós somos (eu mereço ser feliz no que eu faço). Quando a pessoa que está ao nosso lado não preenche os requisitos de felicidade aos quais tenho direito, eu troco.
Gilles Lipovetsky (1993) prefere o termo hipermodernidade: exacerbação de certas características das sociedades modernas: o individualismo, o consumismo, a ética hedonista, a fragmentação do tempo e do espaço. Caracteriza-se pela multiplicidade, fragmentação, desreferenciação e pela entropia, que , com a aceitação de todos os estilos e estéticas, pretende a inclusão de todas as culturas como mercados consumidores. O pós-modernismo é hostil à ideia de uma verdade única, exclusiva, objetiva, externa ou transcendente. A verdade é ilusiva, polimorfa, íntima, subjetiva…
Toda esta reflexão e a experiência que vivemos no dia a dia da prática clínica dos tempos contemporâneos nos abrem novos desafios. O primeiro deles diz respeito à vivência da identidade. Quando olhamos no espelho vemos uma mercadoria, sem que se tenha a fórmula de como se deixa de ser mercadoria graças por exemplo a uma classe social que vai quebrar este jogo. Falta a fé, a crença de que há uma fórmula. Hoje, o máximo que conseguimos ter como identidade é a noção de estilo – você é o que você veste, o restaurante que frequenta, os amigos que tem, os livros que te vêem com eles na mão, a praia que frequenta. A noção de estilo substitui a noção de personalidade (identidade, pertencimento). Afinal, para que ter personalidade (estabilização)? Precisamos ser leves. Memória só as boas, que ajudem a melhorar nossa auto-imagem (facebook). Estamos diante da fragilidade e da condição eternamente provisória da identidade. As “identidades” flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta, e é preciso estar em alerta constante para defender as primeiras em relação às últimas. A internet facilita a expressão de identidades prontas para serem usadas.
A essência da identidade – a resposta a pergunta “Quem sou eu?” e, mais importante ainda, a permanente credibilidade da resposta que lhe possa ser dada, qualquer que seja – não pode ser constituída senão por referência aos vínculos que conectam o eu a outras pessoas e ao pressuposto de que tais vínculos são fidedignos e gozam de estabilidade com o passar do tempo. Precisamos de relacionamentos aos quais possamos referir-nos no intuito de definirmos a nós mesmos. Precisamos deles pelo benefício da coesão e da lógica de nosso próprio ser. Tornamo-nos conscientes de que o “pertencimento” e a “identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a “identidade”.
Diante destas questões nos deparamos na clínica com novas formas de ajustamento, neste caso, ajustamentos banais que consistem na substituição da personalidade constituída a partir de experiências de contato por semblantes de personalidade, imagens criadas pela lógica consumista. Ajustamentos banais são aqueles que, diante deste Outro muito poderoso, que é o Outro capitalista, os sujeitos abrem mão dos seus excitamentos, de suas autonomias criativas e de suas identificações personalísticas. No entanto, nem por isso se submetem a ele, elegendo a banalização das demandas como forma de resistência. Nestes ajustamentos os sujeitos parecem desertores da própria condição de sujeitos (de ato).
• Não querem sentir nada: tomam analgésicos para a dor, antidepressivos para a tristeza, reguladores de humor para a alegria, cafeína para o sono, indutores de sono para a vigília.
• Também não querem fazer nada: alienam-se na sorte e no azar em vez de trabalhar, consomem em vez de se divertir, usam jargões em vez de se comunicar, vestem-se com tecnologia – fones de ouvidos, telefones, games – para se conectarem a nada.
• Tampouco querem se refletir em representações sociais que lhes valessem identidades das quais se orgulhassem: mostram-se em restos de semblante para não serem vistos; fixam-se em imagens pelas quais não precisam responder, – pois as comunidades virtuais não exigem “opinião”, “debate”, “reflexão” aos seus seguidores -, acompanham a vida alheia sem o risco de serem vistos.

A intervenção diante da banalidade consiste, por um lado, na
responsabilização dos sujeitos envolvidos; mas, também, no encorajamento da capacidade de cada qual para enfrentar o Outro social. O trabalho de restituição do lugar de protagonistas aos sujeitos que desistiram de sua capacidade ativa em favor de restos da cultura de massa é a estratégia mais eficiente tanto para a redução dos danos advindos da alienação irresponsável, sem reflexão (como diria Hannah Arendt), quanto para o enfrentamento da verdadeira causa do esvaziamento da capacidade crítica destes sujeitos, precisamente, o totalitarismo do Outro capitalista, constitua-se ele na forma de uma demanda de consumo ou de uma demanda por adesão cega a uma ideologia. Resgatar, nos sujeitos banais a indignação e a capacidade reativa é o mesmo que fortalecer, em cada qual, a função de ato por cujo meio eles haverão de mobilizar desejos a partir dos excitamentos disponíveis e identidades sociais críticas (face às demandas totalitárias).

Outra questão que nos surpreende na prática clínica são os
“relacionamentos” na pós-modernidade. A consciência pós-moderna descobre que o amor incondicional não existe. Todo amor é condicionado e parece que alguém está roubando no jogo. O amor para funcionar tem que ser como doença. Vivemos uma ambivalência nas relações interpessoais, em tudo que as acompanha – amor, parcerias, compromissos, direitos e deveres mutuamente reconhecidos - , são simultaneamente objetos de atração e apreensão, desejo e medo, locais de ambiguidade e hesitação, inquietação, ansiedade. Estamos na era do “homem sem vínculos” líquido-moderno. A maioria de nós tem uma opinião ambígua sobre essa novidade que é “viver livre de vínculos”- de relacionamento “sem compromisso”. Nós os cobiçamos e os tememos ao mesmo tempo.
As pessoas estão desesperadas por terem sido abandonadas aos seus próprios sentimentos facilmente descartáveis. Se sentem ansiosas pela segurança do convívio e pela mão amiga com quem possam contar num momento de aflição. Desesperadas por relacionar-se, e no entanto desconfiadas da condição de estarem ligadas, em particular de estarem ligadas permanentemente, para não dizer eternamente. Temem que tal condição possa trazer encargos e tensões que elas não se consideram aptas nem dispostas a suportar. Pois estas poderiam limitar severamente a liberdade de que necessitam para relacionar-se. Os relacionamentos são ambíguos, oscilam entre o sonho e o pesadelo e não há como determinar quando um se transforma no outro.
Tendemos a reduzir os relacionamentos amorosos ao modo “consumista”, o único com que nos sentimos seguros e à vontade. Perdidos e sem referências, homens e mulheres aprendem que é possível buscar relacionamentos de bolso, do tipo de que se pode dispor quando necessário e depois tornar a guardar. O “modo consumista” requer que a satisfação precise ser, deva ser, seja de qualquer forma instantânea, enquanto o valor exclusivo, a única “utilidade” dos objetos é a sua capacidade de proporcionar satisfação. Uma vez interrompida a satisfação (em função do desgaste dos objetos, de sua familiaridade excessiva e cada vez mais monótona ou porque substitutos menos familiares, não testados, e assim mais estimulantes, estejam disponíveis), não há motivo para entulhar a casa com esses objetos inúteis.
Assim, toda parceria está fadada a ser permanentemente derrotada pela ansiedade: e se a outra pessoa se aborrecer antes de mim? A disponibilidade de uma saída fácil é em si um terrível obstáculo à satisfação no amor. Torna o tipo de esforço de longo prazo que essa satisfação exigiria muito menos provável, tendente a ser abandonado bem antes que uma conclusão gratificante possa ser alcançada.
O “relacionar-se” é substituído pelo “estar conectado”. As pessoas ao relatarem suas experiências e expectativas não utilizam mais termos como relacionar-se e relacionamento, mas em conexões, ou conectar-se e ser conectado. Em vez de parceiros, preferem falar de redes. Nas relações, parentescos, parcerias, há engajamento mútuo ao mesmo tempo que excluem ou omitem o seu oposto, a falta de compromisso. Uma rede serve de matriz tanto para conectar quanto para desconectar, não é possível imaginá-la sem as duas possibilidades. Nela as conexões são estabelecidas e cortadas por escolha. As conexões podem ser rompidas, e o são, muito antes que se comece a detestá-las, enquanto que as relações, mesmo quando indesejáveis, não são rompidas sem culpas e ressentimentos.
Assim, estabelecemos relações virtuais. No envio e recepção de mensagens se elimina da troca a simultaneidade e a continuidade, impedindo-a de se tornar um diálogo genuíno e, portanto, arriscado. O contato auditivo vem em segundo lugar. É um diálogo, mas felizmente livre do contato visual, aquela ilusão de intimidade portadora de todos os perigos de traição involuntárias (por gestos, mímica, expressão do olhar) que os interlocutores prefeririam manter excluída do “relacionamento”. As conexões são relações virtuais. Ao contrário dos relacionamentos antiquados (para não falar daqueles com “compromissos”, muito menos dos compromissos de longo prazo), elas parecem ser feitas sob medida para o líquido cenário da vida moderna, em que se espera que as possibilidades românticas surjam e desapareçam numa velocidade crescente e em volume cada vez maior, aniquilando-se mutuamente e tentando impor aos gritos a promessa de “ser a mais satisfatória e a mais completa”. Em comparação com a “coisa autêntica”, pesada, lenta e confusa, eles parecem inteligentes e limpos, fáceis de usar, compreender e manusear.
Mas o que costumamos ouvir é que as pessoas não estão felizes. A facilidade do desengajamento e do rompimento (a qualquer hora) não reduzem os riscos, apenas os distribuem de modo diferente, junto com as ansiedades que provocam.
Há uma preocupação excessiva com a qualidade do relacionamento. Somos sistematicamente atormentados pela consciência de que tem que ter qualidade na relação, é preciso trabalhar a relação, discutir a relação… Isto se torna uma sombra. Ficamos nos observando o tempo todo para ver se está funcionando e acabamos observando que não está funcionando direito, pela simples razão de que nada funciona direito. O cidadão contemporâneo sabe que quando está dentro de uma relação, existem outras oportunidades no mercado e não se pode perder nada.

Outra característica da pós-modernidade é a perda de referências. A modernidade acreditava que os indivíduos modernos se tornaram esclarecidos e autônomos. O que aconteceu? Ficamos autônomos. E para onde vamos quando somos autônomos? Quais são as referências? Somos esclarecidos e autônomos, mas perdemos as referências.

O mal estar do pós-moderno é ser livre, é a angústia pós-moderna. A modernidade era caracterizada por um alto investimento humano na racionalidade, segurança e organização. A pós-modernidade é caracterizada por um alto investimento humano na liberdade. O que caracteriza a liberdade é saber que tudo pode, porém não tem coisa pior no mundo do que ter alguém livre do seu lado. A única coisa que temos que obedecer é a lei do mercado, desta não tem como escapar, fora isso somos livres. E é esta liberdade que nos atormenta. Ninguém mais sabe o que é o bem e o mal (perda de referências). Ser livre é um peso gigantesco. Gostaríamos muito que alguém dissesse para nós para onde estamos indo e principalmente gostaríamos de investir nos afetos e no amor confiando nele… mas quem é louco para confiar plenamente no amor e no parceiro?

Nosso desafio enquanto clínicos é acompanhar estes homens e mulheres vivendo suas relações nesta ambiguidade, insegurança e constante mudança. Também aqui os ajustamentos banais aparecem como forma de lidar com os conflitos, elegendo o modo “consumista” de relacionar-se, ampliando conexões em quantidade e velocidade crescentes, através dos aplicativos disponíveis, onde a oferta de “pessoas mercadoria” é abundante. Seja em atendimentos individuais ou de casal são estas as questões que se apresentam e nós clínicos não podemos ignorar estas mudanças no comportamento social pós moderno.
A consciência crítica de si e de suas relações, o enfrentamento dos vazios, das perdas, da instabilidade e das rápidas mudanças (clínica do sofrimento), a coragem para reconstruir e enfrentar o outro social demandador em seus apelos consumistas (fortalecimento da função de ato nos ajustamentos banais), são caminhos terapêuticos possíveis.
A autonomia em relação ao Outro social, o exercício do protagonismo e a responsabilização em relação às suas escolhas e atos ainda são as formas de resgate de uma subjetividade alienada e em sofrimento. Ainda buscamos as referências em nosso sentir e em nossas identificações, mesmo que efêmeras e instáveis. Ainda acreditamos que nos deixar guiar pelo desejo nos preserva das demandas por alienação.
E acima de tudo, ainda acreditamos que a experiência, a expressão, o ato criativo que nos recria e renova, nos dá suporte para enfrentar a turbulência destes tempos pós-modernos.

Referências
Arendt, H. Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal, São Paulo, Companhia das Letras, 1999
Bauman, Z. Identidade, Rio de janeiro, Zahar, 2005.
____ Modernidade Líquida, Rio de janeiro, Zahar, 2001
____ Modernidade e Holocausto, Rio de janeiro, Zahar, 1989
____ Amor Líquido, Rio de janeiro, Zahar, 2003
Lipovetsky, G. L’Ère du vide. Essais sur l’individualisme contemporain, Paris, Gallimard, 1993
Lyotard, J-F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979