Produção Científica - Artigos e Capítulos

Passividade, criação e subjetivação na arte e na clínica gestáltica

Passividade, criação e subjetivação na arte e na clínica gestáltica

Rosane Lorena Granzotto

No ofício de clínica gestáltica, uma de minhas paixões, já experimentava, e talvez seja isto que me cativasse, algo que se impunha, um estranho, uma novidade, uma orientação tácita que se revelava nos corpos que ali estavam, seja em afetos inesperados, em gestos surpreendentes ou em palavras que escapavam e quebravam a linearidade do sentido. Aprendi, e não foi fácil, a abrir mão do controle, da previsibilidade, para dar lugar ao inesperado, a esta criação no aqui-agora, confiando apenas no “eu posso”, abertura de possibilidades que o presente com sua força concreta nos oferece para que façamos algo com aquilo para o qual somos passivos.
Em outra experiência mais recente, no contato com a arte, experimentei algo muito semelhante. Ao pintar algo ia acontecendo como se as pinceladas escoassem pelos meus gestos criando formas diferentes de minhas primeiras intenções. Era como se meus atos surgissem independentes de uma consciência reflexiva e pouco a pouco uma materialidade, uma obra, surgia e eu podia reconhecer ali os meus próprios gestos. Quis saber se os artistas também se sentiam desta forma e constatei que muitos se referem ao acaso, ao inconsciente, ao deixar-se levar, ao descrever a forma como se entregam à expressão artística.
Teoricamente já compreendia a co-presença deste outrem através da fenomenologia,
Já é de amplo conhecimento para nós gestalt-terapeutas que o ato criador é o ato de transcendência entre o conhecido e a novidade, coração da experiência e sinônimo de crescimento. A criação está presente em todo ato humano, seja nas experiências cotidianas, artísticas ou terapêuticas; criamos algo quando há uma cooperação entre o material externo e o fundo de excitamentos, mudamos os arranjos existentes da matéria, nossos atos se transformam em instrumentos de expressão e comunicação ampliado nossa própria vida.
Qualquer experiência poderia nos servir de guia em um mergulho no processo criativo, mas para nossa discussão farei uma eleição pela experiência artística por se constituir em uma espontaneidade não teleológica se aproximando muito da experiência terapêutica gestáltica. Segundo Dewey (1912) “na experiência estética, o que vem antes não é irrelevante para o que vem depois, mas também não determina rigidamente seu sucessor. A ligação deve ser de tal ordem que leve a experiência não meramente a um fim, mas a um desfecho” (p. 25). Isto significa que contamos com algo que nos orienta na criação, mas este algo só se concretiza no viver da experiência, mesclado com a materialidade que o mundo nos apresenta em cada aqui-agora. Merleau-Ponty (1964) nos diz que “por mais novas que sejam as iniciativas, elas nascem no coração do ser, elas são oriundas do tempo que irrompe dentro de nós” (p. 274). Ele está se referindo ao conjunto de vividos compartilhados com a humanidade e também àqueles constituídos historicamente na convivência familiar e comunitária que ao perder sua materialidade e conteúdo no presente que se foi, guarda a potencia de orientar novas experiências. A estes vividos chamamos de forma ou gestalt. Porém é importante ressaltar que as formas só têm realidade nas encarnações materiais, elas não têm existência separada da matéria, se fazem na matéria a cada nova experiência, assim como a caminhada se faz ao caminharmos. Assim podemos dizer que a matéria adquire forma à medida que a experiência se desdobra. Matéria e forma são inseparáveis e só existem na experiência, na atualidade. Desta maneira o passado se transpõe para o presente como co-presença, expandindo e aprofundando o que se apresenta como conteúdo e abrindo um futuro pleno de possibilidades.

Por outro lado a experiência também pode ser vista como arte, arte em estado germinal, como nos diz Dewey (1912): “Por ser a realização de um organismo em suas lutas e conquistas em um mundo de coisas, a experiência é a arte em estado germinal. Mesmo em suas formas rudimentares, contém a promessa da percepção prazerosa que é a experiência estética” (p. 84).

E a experiência é algo que muito nos interessa, como gestalt-terapeutas que somos nosso olhar está sempre voltado para o fluxo da experiência em que estamos inseridos, esteja ele fluindo sincreticamente ou sofrendo percalços e interrupções. Como o entendemos na Gestalt-terapia, o fluxo de experiência equivale ao próprio fluxo do sistema self e suas três funções, dimensões temporais que se abrem no aqui-agora a partir de uma demanda. Enquanto função id vivemos a passividade aos excitamentos, enquanto função de ato (ego) criamos, e enquanto função personalidade nos incluímos como seres sociais. Estas funções se desdobram na experiência alternando-se numa dinâmica figura e fundo onde os atos (função de ato) são orientados pelos excitamentos (função id) constituindo um fluxo que conserva uma unidade com a qual nos identificamos. Esta mesma dinâmica a vivemos na experiência clínica, espaço privilegiado para o acolhimento das vulnerabilidades das referidas funções.

Mas o que nos interessa aqui é aprofundar cada função do sistema self naquilo que mais a caracteriza, utilizando a experiência artística como base de reflexão.

Passividade
O que seria a passividade e a que somos passivos na experiência de criação? Ao pintar, por exemplo, o movimento que leva a tinta à tela não é planejado, simplesmente me escapa, ao faze-lo não sei quem faz pois há algo no processo de pintar que escapa ao sujeito reflexivo, à consciência em si. De repente percebo que entre um tempo e outro se cria um espaço: o quadro. E sou a portadora dos gestos que ali se encontram.
Podemos dizer que a passividade está nos movimentos que surgem antes que o artista defina suas intenções ou suas visadas e requer uma atitude de entrega à uma intencionalidade corporal. A passividade inscreve o trabalho artístico na operação não-teleológica (menos designado à priori a um fim), não se tratando porém de uma atitude negligente e nem de “deixar acontecer”.
Como podemos então entender a passividade? Em primeiro lugar como uma ausência de um “si” da reflexão. Há uma suspensão da consciência tética. (...) A passividade revela-se na dimensão surpreendente da forma ou orientação que toma a obra no decorrer do processo criativo. Não sabemos de antemão para onde a obra vai, pois a cada pincelada algo novo se revela e dialoga conosco estabelecendo uma relação, nos olhando lá do outro lado.
A passividade é portanto o fenômeno de escapamento de todos os atos, é a espontaneidade irrefletida e o consentimento a uma dimensão mundana e contingente da experiência.
Podemos observar diferentes formas de passividade na arte nas obras de Michaux, Dubuffet, Duchamp, nos esgarçamentos de Jean Arp, ou ainda nas decalcomanias de Max Ernest. Todos libertam a experiência ou se reportam a ela sob um olhar dinâmico. Estamos nos referindo à arte não-figurativa onde o ato criador teria por origem uma subjetividade criadora. Há criação, como há criação na natureza, ou seja, anônima. Esta possibilidade de uma não-intervenção racional torna possível uma arte liberta dos modelos acadêmicos e conduz os artistas a desenvolver o modo corporal da atividade e também de deixar uma parte ao contingente na elaboração da obra. A intervenção racional é substituída por uma intervenção corporal.
Jean Arp em Colagem segundo as leis do acaso, procura reduzir a intervenção da fantasia compreendida como manifestação da subjetividade no sentido de um individualismo ou de um particularismo. Vemos isto no papel que ele atribui ao “acaso”, seja quando rasga, seja quando coloca pedaços de madeira flutuantes ou ainda usando resíduos. A passividade pode ser traduzida aqui pela pesquisa de uma intervenção reduzida ao mínimo.
É também o caso de Kurt Schwitters (...)
Como já observamos a passividade se caracteriza pela ausência ou diminuição do trabalho reflexivo, vivida como um deixar-se guiar pela obra que está nascendo, o que pressupõe um princípio interno à obra, a sua maneira de aparecer. Rodin dizia que a forma já está no bloco de pedra ou de madeira, o papel do artista é estritamente o de extraí-la, de fazê-la aparecer, ele é o mediador, ou o daimon. Jean Arp esculpia como se cativasse uma nuvem. Os artistas vivem a possibilidade do deixar-se levar diante dos grandes formatos que requerem uma grande liberdade gestual, uma livre mobilidade. Observamos esta amplitude gestual nas obras de Zao Wou-Ki, Willem de Kooning e Joan Mitchell.
A passividade também pode caracterizar-se por um questionamento do papel da atenção. Dubuffet (1958) nos diz que “a atenção mata aquilo que ela toca”. Ela transforma o trabalho artístico em uma produção segundo uma relação de exterioridade entre o modo de ver e o objeto. Simon Hantaï (data) evoca a necessidade de um olhar flutuante. “Falta de atenção, distração, atenção espalhada, flutuante, periférica, descentrada, délocalisée. […] Pintar sem ver, olhando para outro lugar, vacante, ausência de valores, de conteúdo, desocupado, desabilitado, vago…”
A passividade opera nos e pelos gestos. Pollock pinta no chão e por vezes dança sobre a tela.
Certas vezes, não chegando a alcançar o efeito que procura, Francis Bacon perdendo o controle lança sua esponja. A respeito deste gesto descontrolado diz: “frequentemente, eu não sei na verdade o que vai fazer minha pintura e ela faz muitas coisas melhores do que eu poderia fazer”.
Em Nicolas Staël encontramos a idéia de que o quadro é um espaço de captação de certa ancoragem no mundo. O “ajustamento” não é uma decisão, mas o movimento no qual o artista “como não sei quem” é o meio, o agente. Não há decisão porque não há um sujeito estabelecido que projeta. O sujeito agente é subjetividade apenas a título do “eu posso” (atos). Porém estes atos são orientados por um fundo de passado, é o passado que torna possível a abertura. O sujeito aqui não é posição, mas integração de potencialidades e de experiências.
Há uma mudança do olhar lançado sobre a prática artística, de um olhar para o produto acabado ou inteiramente constituído (conteúdo) para um olhar para a maneira de proceder (forma). A presença de “manchas” manifesta este desejo em obra de uma abolição de uma forma de “fazer”, de gestos concordantes para um movimento de liberação dos gestos, de tal maneira que haja escapamento da obra como a vida em suas potencialidades. Neste sentido a obra surge através de uma experiência de desapego. A mancha parece o objeto que de maneira mais elementar faz tocar a possibilidade de um engendramento não concordante, faz aproximar do caráter inesperado, não premeditado ou predeterminado do engendrado, que se revela sem relação com aquilo que provocou o engendramento, surgindo como inarticulado, do obscuro. Sam Francis ilustra esta reflexão com suas manchas multicoloridas.

A passividade na filosofia de Merleau-Ponty
É no filósofo Merleau-Ponty que vamos buscar a reflexão que nos permite compreender a passividade e sua relação com a experiência criadora. Ele diz “não sou […] o autor deste oco que se faz em mim pela passagem do presente a retenção, não sou eu que me faz pensar, como não sou eu que faz bater meu coração” (Merleau-Ponty, 1964, p.275). Através do problema da passividade, Merleau-Ponty procura mostrar que o alargamento do campo é o próprio princípio de nossa experiência porque nós estamos no mundo no desvio. Consequentemente, pela passividade, ele funda a experiência como abertura. Abertura do novo, a campos de experiência insuspeitados, estranhos ou passados, tanto quanto a conhecimentos inéditos. Merleau-Ponty realiza este projeto ao recolocar a deiscência, o desvio, a opacidade, o lacunar, a espessura no coração do sujeito e da história.
É o sentido de “ter consciência” que o problema da passividade conduz à reformulação. Ter consciência, segundo Merleau-Ponty (1968), é “realizar um certo desvio, uma certa variante em um campo de experiência já instituído” (p. 67). Este desvio se faz no corpo sensível, motor ou linguageiro. Neste sentido o corpo ganha uma importância crucial em nossa discussão sobre a passividade. Ao pintar, o artista participa com seu corpo, enquanto corpo animado pelo movimento da vida, campo de experiência histórico-cultural. Seu trabalho é um trabalho do corpo ou de incorporação do movimento, uma maneira de emprestar seu corpo ao nascimento de um outro corpo.

Criação
É porque o sujeito é uma abertura de campo que a experiência do ser se faz como criação. Pintar ou qualquer outra atividade criadora significa produzir “um pedaço de mundo”, “abrir um campo, deslocar ou modificar uma configuração, uma percepção, transformar um pouco o mundo” (?), assim como ser transformado por ele.
Entre a passividade e a criação, não há oposição: a passividade se encontra, antes, do lado do movimento em obra, ela revela a modalidade do ato ou do processo e não dos efeitos deste ato sobre o mundo. Porém, a passividade longe de tornar impossível a liberdade, é o que funda o movimento: “minha liberdade, o poder fundamental que tenho de ser o sujeito de todas minhas experiências, não é distinto de minha inserção no mundo” (?).
A criação é menos solicitação do que consentimento ao inarticulado, ao indeterminado, ao irrefletido, investimento do lacunar. E mesmo procedendo metodicamente eu não saberia totalmente o que a obra vai se tornar durante a elaboração, porque não posso ver ou saber antes de ter feito. O fazer não se reduz ao querer. No fazer, há poder. Ser criador é ousar se afastar do que sabíamos, do já conhecido, do já percorrido. O sujeito enquanto “eu posso” e como corpo é o mediador da experiência nova. É assim que através do corpo eu persigo o “eu posso”.
A passividade obra em toda atividade humana, nada pode escapar dela e o escapamento é a própria experiência. A arte tal como a definimos, a saber, prática criadora que integra a experiência como abertura à passividade, exprime uma dimensão da realidade que é escapamento, que não se deixa apreender, um indomável, um ser selvagem. A criação seria o movimento que inscreve uma fratura, uma brecha, uma abertura.
A passividade e a atividade no seio da criação não se opõem, mas se completam. A passividade é um deixar ser. Ela requer uma potência a não ser nada ou antes nada além que um consentimento em trabalhar com o que se apresenta.

Passividade e subjetividade
Em cada expressão artística há uma forma ou um sentido particular da passividade, uma relação diferente da expressão, seja uma relação particular com o mundo ou com o sentido de ser no mundo. Porém, não podemos reduzir a expressão artística a quaisquer traços, já que se trata de uma criação, é antes a colocação em obra de um olhar particular do mundo, mas apesar disto um olhar do mundo. O mundo entendido como “aquilo sobre o qual se abre todas as perspectivas” (Merleau-Ponty, 2003, p. ).
Estamos diante de uma forma particular de subjetividade: onde o sujeito se manifesta em uma forma que o distingue da consciência soberana. Ele é sujeito a título de participante de uma experiência com certa capacidade de inventar outras modalidades ou outras maneiras de proceder, ou ainda, outros gestos: uma liberdade funcional.

Arte e Subjetivação
“Cada sujeito, ao construir um objeto, pintar uma tela, cantar uma música, faz algo mais que expor a si mesmo e o próprio sofrimento. Ele realiza um fato de cultura, no momento em que contribui para abrir uma fenda naquela espécie de muralha intransponível entre os que se exprimem de certa forma e os que nessa forma não encontram mais a si mesmos. Os produtos dessas experiências estéticas podem ser materiais e imateriais: obras, quase-obras, acontecimentos, efeitos sobre os corpos, novas subjetividades\" (Lima, 2012, p 49).
Deleuze (2006) nos diz que a arte repete todas as repetições, imprimindo, sempre a marca do novo, podendo aparecer de diversas maneiras. É no “fazer de novo” que o mais genuíno do sujeito pode aparecer, e uma produção original se dá a partir do estranhamento, induzindo a novos pensamentos, a novas reflexões, a novas criações. Através de um “ fazer repetitivo”, há possibilidade de se resgatar o lugar de sujeito, visto que o ato que se repete continuamente traz a dimensão da diferença, da criação, da possibilidade do novo e da transgressão.

Arte e Inclusão
Entretanto, o sujeito que se insere numa criação sustenta uma singularidade, produz mudanças em sua posição subjetiva pois sempre há a possibilidade do aparecimento do novo. A criação torna-se uma saída, representando um meio do sujeito restabelecer seus laços com o mundo e o que vai sendo tecido, a partir de constantes repetições durante o “fazer artístico”, conduz os envolvidos a se tornarem artistas da própria vida e do próprio discurso.

Referências

DELEUZE, G. (1968). Diferença e repetição. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006
DEWEY, J. Arte como Experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
HUSSERL, E. Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994.
LIMA, E. A. \"Artes menores: criação de si e de mundos nas ações em saúde mental\", in AMARANTE, P. NOCAM, F. (Org.), Saúde Mental e Arte, práticas, saberes e debates. São Paulo: Zagodoni, 2012.
MÉNASÉ, S. \"Passividade e criação: pintura e abertura, a partir de Merleau-Ponty\", in VALVERDE, M. (Org.), Merleau-Ponty em Salvador. Salvador: Arcádia, 2008.
MERLEAU-PONTY, M. Le visible et l’invisible. Paris: Gallimard, 1964
_____. Resumés de cours. Paris: Gallimard, 1968.
_____. “Le problème de la passivité: le sommeil, l’inconscient, la mémoire”, in MÉNASÉ, S. Institution – passivité, cours au Collège de France, 1954-1955. Paris, Berlim, 2003.