Produção Científica - Artigos e Capítulos

A clínica gestáltica da aflição e os ajustamentos ético-políticos

A CLÍNICA GESTÁLTICA DA AFLIÇÃO E OS AJUSTAMENTOS ÉTICO-POLÍTICOS

MÜLLER, M.J., GRANZOTTO, R.L. “A clínica gestáltica da aflição e os ajustamentos ético-políticos”. Centro de Documentação da Gestalt-terapia Brasileira. URL: http://www.igt.psc.br/ojs2/index.php/cengtb/article/view/194/506

Resumo: Consiste este artigo numa tentativa de compreender, à luz da teoria do self formulada por Perls, Hefferline e Goodman (PHG), a falência social das experiências de contato em que os dados de realidade tornam-se inacessíveis ao agente do contato, precisamente, a função de ego encarnada por determinada personalidade. PHG denominam de “misery” (aflição) o estado de falência social de uma experiência de contato. Nessas situações, o sistema-self perde sua espontaneidade e a função personalidade acaba sendo destruída, tal como ocorre no luto, nos acidentes, no adoecimento somático, na crise reativa, no surto psicótico e na exclusão social. Conforme nosso entendimento, nessas situações, o sistema-self não deixa de funcionar. Não obstante a aflição na qual se encontra, ele produz um ajustamento criador, por nós denominando de ajustamento ético-político.

Palavras-chave: aflição sofrimento ético-político ajustamento ético-político personalidade


Introdução: o sentido ético-político da função personalidade para a Gestalt-terapia

A experiência do contato sempre envolve, conforme podemos ler na obra Gestalt-terapia (PHG, 1951, p. 48), três elementos principais: a preocupação atual (que inclui nossas necessidades fisiológicas e as demandas sociais formuladas na linguagem), os excitamentos (que retornam de um fundo de hábitos assimilados) e as soluções vindouras (que mais não são que nossos desejos formulados a partir da expectativa de nossos semelhantes). E é na forma da ação criadora que esses três elementos são enovelados como um só fenômeno de campo: “(c)ontato é ‘achar e fazer’ a solução vindoura. A preocupação é sentida por um problema atual, e o excitamento cresce em direção à solução vindoura mas ainda desconhecida” (PHG, 1951, p. 48). Qual o “resultado” dessa experiência? Cometeríamos um equívoco se pensássemos que a experiência do contato implica apenas um tipo de resultado. Afinal, os elementos antes mencionados descortinam três dimensões diferentes da experiência de contato. Os excitamentos são “assimilados” como forma impessoal, resíduo que escapa ao nosso saber, às nossas tentativas de elaboração intelectual (awareness reflexiva), permanecendo como fundo de hábitos motores e linguageiros impossível de ser significado: passado operativo. Os desejos são “produzidos” como aquilo que empurramos à frente, qual horizonte, domínio presuntivo do que queremos ser ou alcançar junto às expectativas de nossos semelhantes: futuro de possibilidades. Mas as expectativas dos semelhantes, as demandas sociais, as nossas necessidades atuais: elas implicam algum tipo de resultado? Sim. E eis aqui a base daquilo que constitui, segundo PHG (1951, p. 277), nossa função personalidade: um dos mais importantes resultados do “contato social criativo é a formação da personalidade: as identificações de grupo e as atitudes retóricas e morais viáveis”.
A função personalidade não é aqui uma espécie de síntese entre o que retorna como excitamento (awareness sensorial) e o que surge como horizonte de possibilidades ou, simplesmente, desejo (awareness deliberada). Ela é, sim, uma terceira dimensão de nossa existência, na qual, em grande parte das vezes, alienamos a angústia advinda do fato de nunca conseguirmos fazer coincidir, nas experiências de contato, o passado e o futuro ou, o que é a mesma coisa, os excitamentos e os desejos. Ela é o sistema de pensamentos, valores e instituições às quais recorremos no intuito de lograrmos uma identidade, um “ser social”. Assim compreendida, a função personalidade é uma espécie de Grande Outro Social que experimentamos junto aos grupos que integramos, aos valores que assumimos e aos expedientes lingüísticos de que nos servimos como “réplica verbal” de nossas vivências de campo (PHG, 1951, p. 188). Junto a esse Grande Outro, sentimo-nos amparados, inteiros, reconhecidos e, ao mesmo tempo, incumbidos de responsabilidade. O amor-próprio, o reconhecimento de nosso valor para nós mesmos e para alguém é sempre uma vivência da função personalidade, é sempre um tipo de prazer/desprazer que alcançamos em decorrência de nossa participação na vida desse Grande Outro Social no qual nos espelhamos. O lugar – ou éthos - que ocupamos ante os olhares desse Grande Outro, bem como as relações sociais – e, nesse sentido, políticas – que estabelecemos com os semelhantes que encarnam o Grande Outro são dimensões da função personalidade. O que nos permite concluir, a partir de PHG, que é apenas nos termos da função personalidade que a experiência do contato adquire um sentido ético-político. Afinal, conforme PHG (1951, p. 187), a função personalidade é “o sistema de atitudes adotadas nas relações interpessoais; é a admissão do que somos, que serve de fundamento pelo qual poderíamos explicar nosso comportamento, se nos pedissem uma explicação”.
Ora, conforme sabemos, as experiências de contato podem malograr. Tal significa dizer: uma determinada produção pode não acontecer. Os excitamentos, por exemplo, podem não ser assimilados (como no caso dos autismos e das esquizofrenias) ou, ainda, irromper de maneira desarticulada (como no caso das paranóias e dos comportamentos maníaco-depressivos). A inibição sistemática de um fundo de excitamentos, a sua vez, pode inviabilizar ações criativas em direção a um horizonte de futuro (tal como ocorre nos comportamentos neuróticos). Da mesma forma, pode ocorrer de as experiências de contato não resultarem como função personalidade, o que significa dizer, como identidade social a um grupo, a um valor ou a uma conduta. É nesse momento, então, que vamos nos deparar com uma situação para a qual a Gestalt-terapia brasileira cada vez mais tem voltado seus olhos, precisamente, o sentimento de aflição decorrente do fato de não encontrarmos um lugar ético em que possamos estabelecer relações políticas. Pensemos no que sentem as pessoas vítimas da violência gratuita praticada nos grandes centros urbanos; no que sentem aquelas que foram excluídas da cadeia produtiva ou que tiveram de se submeter a um regime paralelo de produção na condição de escravos. Pensemos ainda no sentimento de quem foi atingido por uma tragédia natural, ou acometido de uma doença. Ou, talvez, como não se sentem pessoas excluídas das relações sociais por conta de preconceitos e conflitos ideológicos. O que se passa com quem foi identificado a representações sociais indesejáveis, como a loucura, a diferença, a minoria, a marginalidade?
PHG tem uma expressão que pode nos ajudar a pensar esses sentimentos. Trata-se do significante “misery”, traduzido ao português como aflição, mas que propomos tomar como estado de sofrimento ético-político. Nas palavras de PHG: “(c)omo distúrbio da função de self, a neurose encontra-se a meio caminho entre o distúrbio do self espontâneo, que é a aflição, e o distúrbio das funções de id, que é a psicose” (PHG, 1951, p. 235). Ora, o que aqui se passa? Ante a impossibilidade de vivermos relações ético-políticas, o que acontece conosco, o que acontece com o sistema self no qual estamos inseridos? Podemos, nessa condição, produzir ajustamentos criativos? É o que pretendemos discutir no presente artigo, tendo como base nossa trajetória de intervenção no campo do sofrimento ético-político e os rudimentos teóricos fornecidos pela teoria do self.

Sofrimento ético-político e ajustamento ético-político

Apesar de mencionarem o sofrimento ético-político (misery) como uma dentre as formas malogradas do sistema self, PHG não aprofundaram a descrição deste “quadro”, menos ainda se ocuparam de descrevê-lo em um contexto clínico. Disseram apenas se tratar de uma falha no funcionamento espontâneo do sistema self, o que significa dizer, de uma falha na experiência de contato, cuja conseqüência é a não produção de uma função personalidade. Mas tal não quer dizer que o sistema-self tenha deixado de funcionar. Conforme admitiram para o caso da interdição da função de ego por uma inibição reprimida, qual seja tal admissão, que o sistema self ainda assim é capaz de produzir ações criativas, às quais chamaram de neurose (e que preferimos denominar de ajustamentos de evitação); tal como nós mesmos fizemos em relação àquilo que PHG chamaram de comprometimento da função id, a saber, que apesar de tal comprometimento o sistema self é capaz de produzir ajustamentos psicóticos (ou de busca); dessa vez, arriscamo-nos a dizer que, em se tratando do comprometimento da função personalidade, o sistema self segue criando. A criação, agora, não implica a produção de um laço amoroso/odioso com alguém que deve fazer algo “por nós”, como nos ajustamentos de evitação. Tampouco se trata de uma construção voltada exclusivamente para o fundo de excitamentos, não importando o horizonte de desejo descortinado na mediação das demandas do Grande Outro, como no caso dos ajustamentos psicóticos (de busca). A criação, em situações em que se pode verificar sofrimento ético-político, tem relação com a solidariedade, com os pedidos genuínos de inclusão, na forma da qual efetivamente atribuímos e reconhecemos o poder do semelhante para nos ajudar.
De fato, não é preciso ir muito longe para encontrarmos, em nosso cotidiano, situações que ilustram o que PHG estão chamando de sofrimento ético-político (misery). Os múltiplos conflitos sociais (econômicos, políticos, étnicos, religiosos...), os acidentes e adoecimentos em geral configuram situações de tensão, que aqui estamos chamando de sofrimento ético-político. Mas é importante não confundirmos o sofrimento ético-político propriamente dito com os fenômenos que o possam desencadear. Não obstante se tratar de algo diretamente relacionado à maneira como os estados da natureza e as múltiplas formas de poder viabilizam ou não a autonomia de uma função de ego para viver uma experiência de contato que culmine na produção de uma personalidade, o sofrimento ético-político é tão-somente a vivência da impossibilidade da identificação à determinada personalidade. Isso significa dizer que, em decorrência de uma privação natural ou de um conflito social, nossa função de ego não consegue encontrar dados de realidade (aos quais também chamamos de Grande Outro Social), por meio dos quais possa, por um lado, abrir uma dimensão de desejo a partir das possibilidades oferecidas por tais dados e, por outro, alienar-se nessas possibilidades, de sorte a alcançar uma imagem unificada da própria experiência de contato; imagem essa à qual denominamos de nossa personalidade. De onde se segue que o sofrimento ético-político é antes um efeito dos acidentes naturais e dos conflitos sociológicos e sua característica fundamental tem relação com o fato de a função de ego sentir-se privada dos dados sociais concretos em que pudesse fruir de determinada identificação. Por conta de uma limitação do meio – que assim se furta à livre ação da função de ego – sentimo-nos impedidos de encontrar dados de realidade ou, o que é a mesma coisa, laços sociais (instituições, valores, identidades ou valores), na mediação dos quais conseguíssemos viver o contato. Dizendo de outro modo: apesar de dispormos de um fundo de excitamentos (função id), a falta de dados (de uma realidade material e sociolingüística) impede o sistema self de agir, de desempenhar a função de ego. Conseqüentemente, o sistema não apenas deixa de estabelecer o contato entre sua dimensão passada (excitamentos) e sua dimensão futura (expectativas, desejos), como também se vê impedido de assumir um valor ou identidade objetiva no presente. A função personalidade, portanto, não se desenvolve e o processo self sofre em decorrência de não poder assumir uma identidade objetiva.
Nos contextos em que há sofrimento ético-político (privação de dados ou, o que é mesma coisa, privação de contexto material e sociolingüístico), a função de ego opera um tipo de ajustamento criativo, que chamaremos de “ético-político”. Nele, a função de ego faz da ausência de dados (da exclusão social ou da privação natural) um “pedido de socorro”. Dessa forma, ao mesmo tempo em que aliena seu poder de deliberação em favor do meio, dá ao meio o status objetivo de alteridade. Por outras palavras: o pedido de socorro faz do meio um “ego auxiliar”. O Grande Outro Social deixa de ser um demandante ou um arcabouço de possibilidades para se tornar um “semelhante”. Funda-se, assim, a experiência da ajuda desinteressada e um tipo especial de identificação personalista que é a solidariedade. À gratuidade do Grande Outro como semelhante, a função de ego responde com gratidão e a função personalidade, assim, alcança um patamar propriamente humano.
Mas é preciso atenção aqui. O Grande Outro enquanto “semelhante” não é, como nos ajustamentos neuróticos, a personalidade a quem nós manipulamos de sorte a ela se sentir responsável por nossa ansiedade (excitamento inibido). Tampouco é alguém a quem desejamos destruir (como nos ajustamentos anti-sociais) ou a quem tornamos representantes de nossos próprios excitamentos (como no caso dos ajustamentos de busca). Ao contrário, “o semelhante” é a personalidade em quem reconhecemos uma genuína capacidade de ajuda solidária, que favoreça nossa inclusão. Isso quer dizer: nos ajustamentos aflitivos, o semelhante não é responsabilizado por nosso “sofrimento”, alvejado por deliberações anti-sociais ou restringido à condição de instrumento. Ele é convocado a ajudar-nos, apoiar-nos; o que significa dizer que ele é simultaneamente reconhecido na condição de “ego fazedor”. Em vez de manipulação, destruição ou uso há, sim, autorização do semelhante. Supomos que ele (o semelhante) saiba como nos ajudar a lidar com isso que para nós é impossível naquele momento: a inclusão em determinado contexto social, que pode ser desde um horário para consulta a uma vaga de internação em um hospital.
O ajustamento ético-político, portanto, é um pedido de reconhecimento, mas um pedido especial, uma vez que ele parte de alguém que não consegue mais se identificar à realidade natural e social em que se encontra. Não há um pedido de reconhecimento específico voltado para esta ou aquela identidade. O sofredor não sabe sequer o que lhe falta. Seu pedido é para que ele possa voltar a pedir. Trata-se de um ajustamento cuja meta é encontrar “suporte” para que se possa voltar a criar, para que os ajustamentos criadores voltem a acontecer, sejam eles sincréticos, de busca, de evitação ou anti-sociais.

Modos clínicos do sofrimento ético-político

Não é incomum ouvirmos, mesmo entre profissionais psicólogos, que as situações que envolvem sofrimento ético-político não são objeto da intervenção clínica. Isso por que a solução daquelas situações implica ações políticas mais amplas, nas quais o psicólogo deve se inserir como mais um. Há dois grandes equívocos aqui. Em primeiro lugar, confunde-se a situação geradora de sofrimento ético-político com o sofrimento ético-político enquanto tal. Em segundo lugar, reduz-se o espectro de atuação clínica às práticas inspiradas no cuidado médico. Afiliados a uma compreensão de clínica enquanto “ética” - desvio em direção às manifestações do estranho enquanto excitamento (função id), ação criadora (função de ego) e identidade frente ao Grande Outro (função personalidade) -, acreditamos que o psicoterapeuta não é apenas mais um a intervir nos conflitos sociais ou nas variáveis naturais que possam estar gerando sofrimento ético-político. O psicoterapeuta é, sim, aquele que pode escutar, nesse sofrimento, o apelo por suporte, o apelo por inclusão, bem como aquele que, a partir desse apelo, pode acompanhar o processo de tomada de decisão que cada sujeito sofredor (cada função de ego) empreende face aos conflitos e dificuldades que esteja vivendo. O psicoterapeuta é aquele que cuida da autonomia dos sujeitos (funções de ego) envolvidos nas situações de exclusão social e privação natural. E a clínica, nesse sentido, não é uma prática curativa, que devesse ser exercida em um consultório a partir de uma farmácia ou de uma biblioteca; ela é sim a co-participação em uma forma de ajustamento criador, no caso, um ajustamento ético-político, cuja característica é justamente a formulação de um apelo, de um pedido de socorro. Afinal, tão difícil quanto sofrer as conseqüências de um acidente ou de uma exclusão social é, às vezes, conseguir pedir ajuda.
É tendo em vista a salvaguarda dessa dimensão ética, que se define como “abertura às manifestações do outro (seja ele um excitamento, um sujeito, um desejo ou a impossibilidade de um deles)”, que propomos um retorno ao significante “clínica”. Não estamos nos referindo às práticas de administração de uma saber junto ao leito (Klinikós), as quais caracterizam o modo de atuar do médico. Estamos, sim, nos referindo à prática do desvio (Clinamen) em direção ao outro. No caso que agora nos interessa: estamos fazendo menção ao desvio da nossa atenção em direção àquilo que se manifesta como sentimento de exclusão (sofrimento ético-político) e pedido de socorro (ajustamento ético-político). Mais do que ver qual é a necessidade material ou por qual razão alguém nos pede comida, dinheiro, emprego, escuta...; interessa-nos acompanhar o processo de reconstrução da autonomia e do auto-reconhecimento da função de ego que nos faz esse pedido. Interessa-nos estar junto dessa função de ego, onde quer que ela precise estar para reconquistar sua autonomia e voltar a fazer ajustamentos criadores, aconteça isso em nosso consultório, em uma agência de saúde, em uma empresa ou em praça pública. Mas para onde, então, essa deriva (clínica) ética nos conduz? Quais são as manifestações clínicas do outro em sofrimento ético-político?
Em nossa experiência clínica observamos alguns contextos em que se configuram, freqüentemente, manifestações de sofrimento ético-político. Basicamente estamos falando dos sofrimentos e dos ajustamentos ético-político que testemunhamos em situações de adoecimento somático, acidente e fatalidade, crise reativa, surto psicótico e exclusão social. Interessa-nos caracterizar os ajustamentos que aí se produzem e as possibilidades clínicas que tais ajustamentos reservam aos clínicos gestálticos.

O sofrimento e o ajustamento ético-político nos acidentes e fatalidades

A função de ego pode se deparar com uma privação de possibilidades de atuação em decorrência de acidentes e fatalidades. A morte de alguém por quem se tinha muito afeto, a destruição de um bem investido de valor (não importa qual), as vicissitudes e mudanças muito drásticas vividas em estado de natureza, todas essas ocorrências podem fazer desaparecer, do horizonte de futuro de uma função de ego, as possibilidades junto às quais ela poderia não apenas realizar (como desejo) um fundo de excitamentos como também lograr uma sorte de identificação ou regozijo personalista.
É o que, por exemplo, viveram as pessoas vítimas das catástrofes naturais que atingiram o Estado de Santa Catarina em dezembro de 2008. Após um período de mais de cem dias com chuvas contínuas, o litoral norte catarinense foi atingido por uma precipitação avassaladora, a qual provocou, além das inundações, deslizamentos que mudaram para sempre a geografia das cidades da região, causando a morte de 140 pessoas e o desalojamento de outras 79.000. As pessoas não apenas tiveram suas casas inundadas. Em diversas cidades bairros inteiros foram soterrados pela lama que desceu das encostas encharcadas, mesmo em locais cuja vegetação estava preservada. Os atingidos perderam familiares, amigos, bens e, por conseqüência, o horizonte de expectativas nos quais investiam no curto e médio prazo de suas vidas. Não apenas isso: também perderam as referências por meio das quais compartilhavam valores e histórias a respeito de si, das famílias, das comunidades e das instituições. Obrigados a viver em abrigos e alojamentos improvisados, não vislumbravam mais os objetos e, por vezes, as pessoas junto a quem celebravam suas próprias identidades sociais.
O encontro com as pessoas nessas condições é uma experiência marcante. Mais além da sombra de todas as nossas perdas, encontramos a aflição de quem não consegue encontrar um suporte a partir de onde possa voltar a agir. As expressões e movimentos por vezes desesperados não se confundem com a hebefrenia dos autistas que a todo custo tentam se livrar das injunções às quais não conseguem responder. A desorganização comportamental das pessoas vítimas de perdas tem relação com o fato de não acharem meios para agir, para tomar decisões, para elaborar o que estejam vivendo ou precisando. Repetem comportamentos totalmente desarticulados com as demandas sociais presentes e que, em parte, lembram as buscas empreendidas nos ajustamentos psicóticos. Mas a busca não é por um saber sobre si (como no caso dos ajustamentos de preenchimento) e, sim, por um saber sobre o que está acontecendo no meio social. Afinal, em decorrência do acidente, tal meio se tornou inóspito. Nesse sentido, aqueles movimentos desorganizados são, em verdade, pedidos de socorro.
A intervenção que acreditamos produzir um efeito de potencialização da autonomia da função de ego nos sofredores é aquela que empresta corpo ao desesperado. Um simples abraço, um olhar sem demanda, a escuta aos lamentos, dentre outras posturas que possamos assumir e que tem relação com os cerimoniais sociais de solidariedade que aprendemos, produz um efeito muito grande junto aos sofredores. Trata-se de ações que autorizam a função de ego nos sofredores a procurar uma solução. É como se nós estivéssemos a garantir o tempo necessário para que os sofredores pudessem se representar o que eles estão vivendo naquele momento, de sorte a compreenderem as possibilidades imediatas de que dispõem, muito especialmente, a possibilidade do luto.

O sofrimento e os ajustamentos ético-políticos na doença somática

A ampliação das políticas de saneamento e distribuição de renda, por um lado, e a ostensiva intervenção tecnológica (farmacêutica e biomecânica) no corpo humano, por outro, aumentou consideravelmente a longevidade nos seres humanos, ao menos se compararmos os tempos de hoje aos do século XVIII. Isso significa dizer que, em alguns casos, nós conseguimos erradicar moléstias, noutros, conseguimos um maior controle dos sintomas e dos efeitos do adoecimento. Esse maior controle, a sua vez, possibilitou a sobrevida aos doentes, mas, também, uma maior convivência com os sintomas e com os efeitos do adoecimento. Ás vezes pacífica, noutras muito dolorosa, essa maior convivência com a doença aprofundou, mais além do fenômeno da dor e da falência metabólica e funcional, nosso contato com o “sofrimento psicossocial ou sociolingüístico” desencadeado por aqueles sintomas e efeitos. Depois que um quadro agudo é revertido, a convivência com as seqüelas orgânicas é, em certas ocasiões, mais tranqüila do que a convivência com a piedade alheia. Ou, ainda, a convivência com as limitações motoras e cognitivas é mais fácil do que a convivência com as demandas “otimistas” dos “terapeutas da alegria”, os quais, no intuito louvável de ampliar as possibilidades de vida nos adoecidos, acabam demandando aquilo que nem sempre os doentes podem e querem oferecer. Em certa medida, o meio social não tolera bem o luto; e as exortações animistas, a interdição da queixa e as demandas oportunistas dirigidas aos doentes acabam desencadeando um quadro de sofrimento ético-político.
O sofrimento ético-político nos contextos de adoecimento somático tem muitas semelhanças com o que acontece nos contextos marcados por acidentes e perdas. Há também aqui a falência de um dado social que impede a função de ego de produzir uma personalidade à qual pudesse se identificar. Mas, dessa vez, o dado que está se perdendo é o corpo anatomofisiológico (base de qualquer evento social). Sem esse dado, como o sabemos, o sistema self não opera sua função ego. Na doença, entretanto, é apenas parte desse corpo que está indisponível. Ainda assim, essa limitação impede a função de ego de almejar no futuro (como horizonte de desejo), modos de satisfação (de seus excitamentos) especificamente ligados ao corpo agora adoecido. Não apenas isso, o corpo adoecido priva a função de ego do desfrute da imagem social à qual ele se identificava até então. “Já não sou mais aquele trabalhador bem disposto, que sabia tudo o que se passava em meu setor”, afirma o trabalhador vítima de um acidente vascular cerebral. As limitações motoras que restaram como seqüela da intercorrência orgânica ameaçam seu posto de trabalho e sua estima. E os exercícios e comandos da fisioterapeuta, às quais o doente tenta corresponder, em alguns momentos são ouvidos como verdadeiros atestados de sua incapacidade laboral. A aflição toma conta do trabalhador, porquanto, em seu horizonte de futuro, ele não encontra mais lugar para si mesmo.
A intervenção nos casos de adoecimento somático não se volta, evidentemente, ao tratamento da patologia orgânica. Não é essa a função do clínico gestáltico. A intervenção destina-se sim a salvaguarda e restabelecimento da autonomia possível que o adoecido possa sustentar. Trata-se, nesse sentido, de vitalizar a função de ego que o adoecido possa desempenhar. Mas, se o corpo está adoecido, o que significa dizer, com parte de sua constituição anatomofisiológica indisponível, a tarefa do clínico nesse momento é oferecer um corpo auxiliar. Afinal, o doente precisará encontrar um duplo que o ajude a se ajustar no campo. Por outras palavras, a função de ego no consulente aflito necessita de um corpo auxiliar, que dê a ela condições de, por um lado, continuar operando a partir de seus excitamentos e, por outro, continuar criando um horizonte de expectativas (desejo), o que inclui o luto. O corpo substituto pode ser a escuta do terapeuta, um recurso lúdico, uma técnica de arte-terapia, dinâmicas em terapia de grupo...
É no contexto hospitalar que mais nos deparamos com quadros de sofrimento ético-político motivado por doença somática. E aqui é sempre importante distinguir a queixa relativa aos sintomas da doença e o sofrimento em decorrência da perda de uma determinada identidade subjetiva frente às expectativas sociais. Somente esse segundo faz parte do que estamos denominando de sofrimento ético-político. Mesmo do ponto de vista das manifestações comportamentais, o sofrimento ético-político é muito diferente das manifestações corporais de dor. Diferentemente destas, aquele não é um comportamento sem-meta. Ao contrário, trata-se de comportamentos que claramente dirigem um pedido de ajuda a alguém, mesmo que de forma não verbal. Diante desses quadros, os clínicos não se sentem manipulados (o que caracterizaria um ajustamento neurótico), mas convocados a ouvir e a falar sobre o que está mais além do quadro de convalescência que os doentes estão vivendo, precisamente, a finitude ou morte. As perguntas sobre a doença não são especulações teóricas sobre o que seja a doença ela mesma, mas tentativas de compreensão sobre as conseqüências e possibilidades que, a partir da doença, o doente poderá contar ou perder. Eis aqui o ajustamento ético-político propriamente dito. Frente a ele, a intervenção consiste no oferecimento de recursos expressivos, com os quais os sofredores possam:
1. elaborar o luto do órgão e da função que esteja sendo perdida;
2. celebrar o passado;
3. discutir possibilidades de nova inserção social (quando não se tratar de pacientes terminais).
Desse modo, oferecemos, aos consulentes aflitos, uma oportunidade de aceitação social de suas experiências passadas, de suas expectativas, e também da experiência de perda.

O sofrimento e o ajustamento ético-político nas situações de crise reativa

O estado crônico de formação reativa em pessoas que estejam vivendo a falência social de seus ajustamentos neuróticos (ou de evitação) também caracteriza um quadro de sofrimento ético-político. Suponhamos uma situação em que o meio social não tolera mais as manipulações neuróticas por cujo meio alguém tenta diminuir a ansiedade decorrente da inibição inconsciente de seus próprios excitamentos. Por conta dessa intolerância, nosso personagem neurótico não pode mais produzir ajustamentos de evitação. Mais além da ansiedade, ele agora vai enfrentar um quadro de aflição em decorrência da exclusão social de seus comportamentos. A alternativa que encontra é promover a destruição do sistema-self do qual faz parte, especialmente as identificações nas quais se apoiava até ali. Eis a crise reativa, que é um estado crônico de formação reativa voltada contra si.
É verdade que, por vezes, a frustração social de um ajustamento de evitação pode favorecer o neurótico. A recusa das pessoas em participar de uma manipulação pode levar o neurótico à suspensão de seus próprios hábitos inibitórios em proveito de novos ajustamentos criadores. Mas, mesmo nessas situações, é preciso que o meio social forneça suporte para que aqueles ajustamentos criadores aconteçam. Caso esse suporte não seja oferecido, não há como a função de ego no neurótico retomar a regência da vivência do contato. Tal função vai ficar no vazio, no vazio de possibilidades, o qual é um estado aflitivo, de sofrimento ético-político. De sorte que, seja por não dar direito de cidadania a um ajustamento neurótico, seja por privar uma função de ego de dados que lhe permitissem ultrapassar os ajustamentos neuróticos, a exclusão social está na gênese desse tipo específico de sofrimento ético-político, ao qual chamamos de crise reativa e que outra coisa não é senão a falência social da neurose.
Um exemplo dessa situação é a crise (ou ataque) de pânico. Os dados na fronteira de contato não corroboram os expedientes de defesa que, inconscientemente, alguém desempenha. Ao contrário, é possível que esses dados aproximem ainda mais o sujeito ansioso dos excitamentos que ele evita habitualmente. A ansiedade torna-se então intolerável e ele não encontra no meio social nenhum suporte, seja para aliená-la, seja para enfim operar uma ação criativa a partir dos excitamentos agora debelados. A alternativa que sobra é a defesa fóbica, a regressão a um estado ou posição espacial anterior, em que possa se sentir mais seguro. Isso poderia nos levar a pensar se tratar de um ajustamento de busca – alucinação dissociativa, especificamente paranóica. O que não é o caso, uma vez que o sujeito consegue reconhecer a natureza da demanda que a ele é dirigida (porquanto ele dispõe de um fundo de excitamentos), o que não acontece nos ajustamentos alucinatórios. Ainda assim, ele não tem dados de realidade com os quais pudesse operar. E a própria função de ego começa a entrar em falência: crises respiratórias, espasmos musculares, desmaios...
Tais reações, em verdade, são apelos desesperados por ajuda. Desesperados porquanto não sabem o que pedir, o que esperar. A regra básica é não confrontar o agente desses comportamentos reativos, que geralmente é a própria inibição reprimida. Ao contrário disso, recomenda-se reforçar o controle da função de ego na pessoa aflita, começando com um trabalho de atenção à respiração, depois ao controle da motricidade e, finalmente, atenção aos conteúdos semânticos (função personalidade) que tal pessoa possa articular com a fala.
Quando as crises reativas acontecem em situações de consultório ou de trabalho terapêutico com grupo, não é recomendável qualquer tipo de pontuação a respeito de hábitos motores e linguageiros (os quais constituem as formas ou excitamentos presentes). Tal pontuação somente seria o caso se o consulente respondesse às intervenções por meio de ajustamentos de evitação. Mas, a crise reativa é justamente a falência do ajustamento de evitação. Nessa situação é fundamental que o clínico possa ajudar o consulente a identificar qual é o dado (ou necessidade) faltante que possa restabelecer a segurança no sistema self que esteja sendo vivido.

Sofrimento e ajustamento ético-político em situações de surto psicótico

Se a crise reativa é a falência social de um ajustamento de evitação, o surto psicótico é a falência social de um ajustamento de busca. O buscador (que é aquele para quem o fundo de excitamentos está ou ausente ou desarticulado) freqüentemente procura no meio social os recursos que lhe permitem alucinar, delirar ou identificar criações que façam às vezes de fundo de excitamentos. Talvez por não priorizar o horizonte de expectativas aberto (ou demandado) pelo meio social, ou, simplesmente, por não desejá-lo (tal como se esperaria), o buscador têm atitudes “estranhas” à cultura dominante. Ou, então, ele faz uso dos recursos oferecidos pelo meio social sem neles se alienar. Afinal, o buscador não pode abrir mão da regência de suas próprias ações, as quais sempre visam fazer da realidade seu próprio horizonte de excitamentos. Por conta disso, ele é freqüentemente tachado de inconveniente e, por extensão, excluído dos laços sociais. Tal exclusão tem para ele conseqüências muito sérias. Por um lado, o buscador vê sua angústia aumentar, uma vez que foi impedido de buscar suplência para seus próprios excitamentos. Por outro, sua angústia passa a ser tratada pelas múltiplas formas de poder instituídas na sociedade como uma ameaça à ordem e a paz social. O buscador é então interditado, impedido de exercer seus direitos civis e submetido a um regime carcerário “branco”, que é a internação psiquiátrica. Talvez aqui encontremos o lado mais sombrio do sofrimento ético-político.
A exclusão social do buscador acontece de várias formas, especialmente por juízos de atribuição, que fazem dele um “louco”, um “desajustado”, um “sem juízo”... O buscador passa a ser estigmatizado não apenas por representações sociais desqualificadoras, mas também pelo próprio saber psicológico e psiquiátrico. O psicodiagnóstico, quando utilizado mais além dos estritos limitas da comunicação entre os agentes de saúde, torna o buscador alguém assujeitado a um saber e a um tipo de curatela com a qual ele não pode interagir. O psicodiagnóstico, ademais, torna o buscador alguém indesejável aos olhos de sua comunidade de referência. O quadro evolui para um estado de extrema angústia, que se deixa perceber na radicalização dos ajustamentos de busca (alucinações, delírios e identificações). Estes acontecem cada vez mais isolados das formas de interação social e aquilo que antes era angústia agora se transforma em aflição, verdadeiro estado de sofrimento ético-político. Na fronteira de contato, testemunhamos uma espécie de desistência em relação às possibilidades que o meio social poderia oferecer. Os buscadores se fecham em alucinações, delírios e identificações descoladas das relações sociais. E passam a sofrer todo tipo de discriminação.
A pior delas, certamente, é a que obriga os buscadores à internação psiquiátrica. Afastados de seu meio social, os buscadores perdem as poucas referências de realidade com as quais enfrentavam aquilo que para eles em algum momento torna-se muito angustiante, precisamente, a ausência ou a desarticulação do fundo de excitamentos. Sem seus objetos cotidianos, sem os espaços habituais e a intimidade das pessoas próximas, os buscadores não podem produzir suplências para tal fundo. Ao contrário disso, são submetidos a um regime institucional que os priva de singularidade e autonomia, pois já não podem ter objetos pessoais, tampouco decidir sobre sua própria rotina. Não há mais como operar ajustamentos de busca, pois é preciso antes lutar para readquirir a liberdade de criar, quando não para defender a vida. É o que ouvimos freqüentemente de nossos consulentes e, sobretudo, dos usuários do programa substitutivo CAPS, os quais têm histórico de internação. Enquanto estiveram internados, mesmo em clínicas “altamente qualificadas”, com setor de psicologia instalado, os buscadores conviviam cotidianamente com a violência do confinamento e da administração de drogas, as quais interditam a criatividade da função de ego em cada qual. A recusa à participação do tratamento geralmente é encarada como uma “resistência” que deve ser domada; e não são poucas as denúncias de maus tratos sofridos por pacientes em hospitais e clínicas psiquiátricos. Vide o livro, escrito em forma de dossiê, intitulado “A instituição sinistra – mortes violentas em hospitais psiquiátricos no Brasil” (SILVA, 2001). Organizado por este eminente militante da luta antimanicomial brasileira, que é Marcus Vinícius de Oliveira da Silva, ex-presidente do Conselho Federal de Psicologia, o livro reúne sete estudos sobre casos hediondos de mortes ocorridas em instituições psiquiátricas no Rio Grande do Sul, Goiás, Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Bahia. Nas palavras de Oliveira da Silva: “(o) que mais impressiona, quando tomamos conhecimento de cada um desses crimes da paz, é o caráter naturalizado e banal assumido por estes ‘eventos’ na dinâmica das instituições nas quais eles ocorrem” (2001, p. 8). Pior ainda, continua o autor é “o caráter conspiratório e farsante que cerca, de modo geral, a apuração das responsabilidades nesses casos”. Afinal, “o silenciamento, a cumplicidade e a impunidade consituem uma espécie de marca registrada. Ninguém viu, ninguém ouviu, ninguém sabe de coisa alguma. Aconteceu e pronto! A única urgência é fechar a ocorrência e encerrar o caso” (2001, p. 8). Ora, o horror vivido dentro dos hospitais psiquiátricos retorna às vezes como um efeito anatomofisiológico (afinal, a violência física deixa marcas visíveis e, às vezes, permanentes) outras ainda como rejeição social crônica, porquanto, depois da internação, os buscadores têm muitas dificuldades para se reintegrarem à cadeia produtiva.
E mesmo nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), o despreparo da equipe para operar o manejo dos usuários que chegam aflitos, em estado de sofrimento ético-político (o que significa dizer, vitimizados pelos efeitos da internação psiquiátrica e pela rejeição social), hiperboliza o quadro de desajuste social. Ante a angústia de quem não consegue encontrar suporte social para continuar a buscar a si mesmo, os profissionais muitas vezes recorrem a práticas censuradas por inúmeras portarias moralizadoras do Ministério da Saúde e efetivamente expungidas pelos princípios que orientam o acolhimento num CAPS. Tomam-se medidas de contenção, aciona-se a polícia e, nos casos de lesão corporal, em vez de encaminharem o usuário a um hospital geral, fazem-no retornar a um hospital psiquiátrico. Parte da responsabilidade por essa situação é dos gestores de saúde nos municípios, que não investem na qualificação dos profissionais e, por vezes, mantêm o serviço sem a presença de psicólogos. Mas qual deveria ser, então, a intervenção?
Nos surtos psicóticos, a melhor intervenção é aquela que tenta amarrar a produção de busca às possibilidades oferecidas pelo ambiente social. Tal pode ser feito por meio de um processo de AT (acompanhamento terapêutico). A função de um acompanhante terapêutico é restabelecer a função de ego que, no surto, está perdida. A intervenção consiste num trabalho de inclusão do ajustamento falido (desqualificado socialmente). É de fundamental importância se salientar que o que se trata de incluir é o ajustamento falido, o qual não coincide com nossa expectativa social a respeito do que seria melhor ao nosso consulente. Muitas estratégias de inclusão (oficinas terapêuticas, programas de re-inserção social no campo do trabalho...) são antes modos de alienação dos consulentes nos interesses do estado e da comunidade. Inclui-se uma personalidade, mas exclui-se uma função de ego (um ajustamento). Por isso, não podemos confundir a assistência ao aflito com a aplicação de um programa de metas (seja ele definido pela comunidade, pelo estado, por nossa categoria profissional ou por nossa abordagem). Mesmo ante as reações violentas, os profissionais devem saber identificar qual é o elemento que encarna a organização paranóica que o usuário está tentando elaborar. E o manejo consiste em simbolizar, para o usuário, que ele está em segurança. Para tanto, é fundamental que o psicólogo possa estar acompanhando o histórico das produções buscadoras do usuário. O que significa dizer que, tal histórico é tão ou mais importante que as metas de integração social estipuladas pelo programa.

O sofrimento ético-político nas situações de exclusão econômica e interdição política

A exclusão de alguém (função personalidade) ou de um comportamento (ajustamento da função de ego) diz respeito ao laço social, de onde esse alguém ou esse comportamento são afastados. Tal laço pode ser compreendido desde dois pontos de vista distintos e complementares. Ou se compreende o laço do ponto de vista econômico, o que significa dizer, do ponto de vista de uma determinada cadeia de produção de valor a partir da natureza. Ou se compreende o laço do ponto de vista das relações políticas a ele implícitas e que dizem respeito aos contratos por meio dos quais se formam as diferentes personalidades.
A exclusão política, na maioria das vezes, tem como fundo uma exclusão econômica. Na exclusão econômica, priva-se um sistema self da única fonte possível de riqueza, que é a natureza. Como sabemos, a natureza está quase sempre alienada, na forma de propriedade, emprego ou valor de circulação (moeda), em favor do interesse de nosso semelhante ou de nossa identidade objetiva frente ao semelhante (função personalidade). Nas situações de sofrimento ético-político, especificamente econômico, somos privados dos laços sociais em que uma natureza pudesse estar alienada (valorada) em nosso favor. Esse é o caso dos sem-teto, dos sem-terra, dos sem-chance-de-inclusão-no-mercado-de-trabalho, seja por razões étnicas, religiosas, de gênero... Ou, então, participamos de laços sociais (como o emprego) em que aquilo que seria, para nós, uma fonte de riqueza (nosso corpo ou o que ele tenha produzido), é expropriado em seu valor em favor de um terceiro (seja este o estado de direito, uma corporação econômica ou uma causa ideológica, como a defesa do meio ambiente, ou a salvaguarda da saúde das instituições financeiras...).
No caso da exclusão política, somos privados dos contratos sociais (sejam eles institucionalizados ou não) que reconheceriam nosso direito de exercer uma forma de poder (como o voto, a petição, a autodefesa...). A exclusão política geralmente tem uma motivação econômica. Quando não cumprimos a função ou desempenho esperado pela cadeia produtiva, somos privados do direito de decidir sobre ela. A exclusão acontece por diferentes formas, algumas delas politicamente institucionalizadas, como a que tira, dos buscadores surtados, a autonomia civil. A institucionalização da exclusão política, ademais, não depende da existência de instituições políticas. Ela pode ser exercida na forma de representações sociais que infligem, às personalidades indesejáveis, as mais diferentes formas de sanções.
Intervir em situações de exclusão sócio-política significa disponibilizar-se a acompanhar os excluídos em seus pedidos de socorro, de modo a ajudá-los a encontrar os meios pelos quais eles possam ser ouvidos e atendidos em seus apelos. Tal envolve: i) ajudá-los a identificar as suas necessidades (e não seus excitamentos ou desejos); ii) ajudá-los a reconhecer e constituir o “semelhante” junto a quem possam merecer atenção e resultado; iii) e ajudá-los a executar as tarefas que possam valer o resgate de um lugar social Porém, isso não significa “fazer por”. O trabalho de acompanhamento de alguém em sofrimento ético-político não caracteriza uma forma de assistência social. Trata-se, como em toda clínica gestáltica, de um “treinamento” ou “ampliação” da autonomia da função de ego. No caso dos ajustamentos ético-políticos, trata-se de favorecer a autonomia da função de ego na construção de um pedido de inclusão. Ademais, a intervenção gestáltica nunca é normativa. Ela não visa “defender” ou “criticar” uma ideologia especificamente. Trata-se de ajudar alguém a compreender e fazer sua opção econômica e política.


Referências Bibliográficas


FREUD, S. 1912b. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Estabelecida por James Strachey e Anna Freud. Trad. José Otávio de Aguiar Abreu. SP: Imago. 1976. Vol 12.

GRANZOTTO, M.J.M. & GRANZOTTO, R.L. 2007. Fenomenología y Terapia Gestalt. Santiago de Chile: Cuatro Vientos, 2009.

PERLS, Frederick; HEFFERLINE, Ralph; GOODMAN, Paul. 1951. Terapia Gestalt: Excitación y crecimiento de la personalidad humana. Trad. Carmen Vázquez. Madrid: AETG y CTP, 2006, v. II.