Produção Científica - Artigos e Capítulos

Clínica dos ajustamentos psicóticos: uma proposta a partir da Gestalt-terapia

O texto que ora propomos não é um artigo científico. Ele tem como base nossa experiência clínica de acompanhamento terapêutico de pessoas que se ajustam psicoticamente e se destina a apresentar reflexões iniciais sobre uma possível leitura dos ajustamentos psicóticos à luz da teoria do self e de suas funções fenomenológicas apresentados por Perls, Hefferline e Goodman na obra Gestalt Therapy (1951). Conforme tal obra, a psicose é um tipo de ajustamento criador em que a função de ego opera em proveito da suplência do fundo temporal de vivências que, espontaneamente, a função de id não reteve ou não pôde articular como base para os processos de contato. O trabalho de intervenção gestáltica que estabelecemos procurou assegurar, às pessoas terapeuticamente acompanhadas, suporte para a constituição de laços sociais necessários às elaborações alucinatórias e delirantes, na forma das quais essas mesmas pessoas tentavam preencher e articular cada qual seu próprio fundo de excitamentos.

Abstract:

The text we here propose is not a scientific article. It is based on our clinical experience of therapeutic accompaniment with patients who adjust themselves psychotically and aimed, as well, at presenting initial reflections on a possible reading of psychotic adjustments under the light of the self theory and of its phenomenological functions presented by Perls, Hefferline and Goodman in the work Gestalt Therapy (1951). According to that work, psychosis is a sort of creative adjustment in which the functions of the ego operate on behalf of the supplying of the temporary living experiences background that, spontaneously, the function id could not retain nor articulate as a basis of the contacting process. The gestaltic intervention work we established tried to make sure, to therapeutically accompanied patients, support to the constitution of social bonds necessary to hallucinatory and delirious elaborations, in the form of which these same people tried to fill in and articulate each one his own background of excitements.

MÜLLER, M.J.; GRANZOTTO, R.L. Clínica dos ajustamentos psicóticos: uma proposta a partir da Gestalt-terapia. IGT NA REDE. URL: http://www.igt.psc.br/ojs/viewarticle.php?id=176&layout=html

1. Psicose na “literatura de base” da Gestalt-terapia

No prefácio à edição de 1945 da Knox Publishing Company da obra “Ego, Fome e Agressão”, Perls anuncia que “no presente momento estou envolvido em um trabalho de pesquisa sobre o mal funcionamento do fenômeno figura-fundo nas psicoses em geral e na estrutura da esquizofrenia em particular” (1942, p. 32). Mais do que sua relevância clínica, a pesquisa veicula uma hipótese que dá continuidade às intuições de Perls relativamente aos ajustamentos neuróticos: que todo ajustamento é um fenômeno figura-fundo e que a “psicopatologia” é tão-somente um mau funcionamento desse fenômeno. Mas, como se Perls soubesse de antemão que não poderia dar cabo deste projeto, anuncia: “(a)inda é cedo demais para dizer quais serão os resultados; parece que vai resultar em alguma coisa” (1942, p.32). E até os dias de hoje estamos no aguardo desses resultados que, entretanto, nunca se fizeram conhecer.
Alguns anos mais tarde, pela pena de Paul Goodman, Perls e seus companheiros de fundação da Gestalt-terapia afirmaram, em trecho que tratava da “neurose como perda das funções de ego”, que: “como distúrbio da função de self, a neurose encontra-se a meio caminho entre o distúrbio do self espontâneo, que é a aflição, e o distúrbio das funções de id, que é a psicose” (1951, p. 235). Para eles, a psicose pode ser entendida como “a aniquilação de parte da concretude da experiência; por exemplo, as excitações perceptivas ou proprioceptivas. Na medida em que há alguma integração, o self preenche a experiência: ou está degradado por completo ou incomensuravelmente grandioso, o objeto de uma conspiração total, etc.” (1951, p. 235). Com certeza, a passagem mais aprofundada escrita por Perls e seus companheiros sobre a psicose. Mas lacônica demais para orientar, por exemplo, uma prática clínica.
Já no livro “Gestalt-terapia explicada”, Perls escreve: “(e)u tenho muito pouco, ainda, a dizer sobre a psicose. [...] O psicótico tem uma camada de morte muito grande, e esta zona morta não consegue ser alimentada pela força vital. Uma coisa que sabemos ao certo é que a energia vital, energia biológica [...], torna-se incontrolável no caso da psicose. [...] o psicótico nem mesmo tenta lidar com as frustrações; ele simplesmente nega as frustrações e se comporta como se elas não existissem” (1969, p.173-5). Tudo se passa como se, no enfrentamento das demandas do cotidiano, às quais incluem tanto as necessidades biológicas quanto os pedidos formulados no laço social, o “psicótico” se visse desprovido daquela camada de excitamentos (também denominada de função id), a partir da qual ele poderia operar com seu próprio corpo ou responder aos apelos sociais. O que nos sinaliza para o entendimento de que, para Perls: a psicose poderia ser um ajustamento em que, mais do que dar conta dos excitamentos junto às possibilidades abertas pelos dados na fronteira de contato, vivemos uma tentativa de preenchimento ou organização do próprio fundo de excitamentos (função id) que, no dizer de Perls, apresenta-se como uma “camada de morte”.
De todo modo, dizer que a psicose é um ajustamento cuja meta é preencher ou organizar o fundo de excitamentos (função id) não é ainda uma conclusão; apenas uma hipótese psicodinâmica. Para ratificá-la, temos de esclarecer os possíveis empregos que os autores deram a expressões como “concretude da experiência”, “função id”, “mal funcionamento do fenômeno figura-fundo”, “preenchimento”, “degradação”, “engrandecimento”, “camada de morte”. Nesse sentido, propomos as seguintes questões norteadoras de nossa especulação: o que Perls, Hefferline e Goodman querem dizer quando se referem à aniquilação de parte da concretude da experiência? Em que sentido as excitações perceptivas e proprioceptivas constituem a concretude da experiência? Que ações são essas por cujo meio o self “preenche” a experiência, constitui um objeto de conspiração total, se “degrada” ou se “engrandece” incomensuravelmente? Trata-se de uma referência aos quadros clássicos da esquizofrenia, da paranóia, da melancolia e da mania?

2 Psicose como um ajustamento


Conforme se pode perceber pelas perguntas norteadoras, nosso trabalho toma partido das formulações sugeridas na obra “Gestalt-terapia”. Ele consiste numa tentativa de aprofundamento das “pistas” legadas pelos fundadores da Gestalt-terapia no sentido de pensar a psicose à luz da teoria do self. A partir de tais pistas propomos aos gestalt-terapeutas a seguinte hipótese psicodinâmica: a psicose poderia ser definida como uma forma de ajustamento do sistema self em que os dados vivenciados (na fronteira de contato entre o passado e o futuro desse mesmo sistema): i) ou não são assimilados e, nesse sentido, retidos como fundo de excitamento de novas vivências, ii) ou, uma vez assimilados, não se integram entre si, de modo a também não se constituírem como fundo para os novos dados na fronteira de contato. De certa maneira, é como se as experiências de contato: i) ou não pudessem ser “esquecidas” e, nesse sentido, inscritas como uma estrutura histórico-afetiva, ii) ou não pudessem estabelecer, depois de retidas, uma relação espontânea capaz de servir de alavanca para as novas experiências de contato. Por esse motivo, as novas experiências aconteceriam privadas de uma intencionalidade específica ou, conforme a linguagem própria da Gestalt-terapia, desprovidas de awareness sensorial. Em rigor, nessa forma de ajustamento, a função id (que justamente se caracteriza pela formação e mobilização do fundo de excitamentos) não cumpriria seu papel, razão pela qual a função de ego (caracterizada pela ação motora e linguageira) estaria desprovida dos meios para lidar com o dado (seja ele uma demanda social ou uma necessidade orgânica) na fronteira de contato. O sistema self seria, então, acometido de uma espécie de “rigidez (fixação)” (1951, p. 34), tal como aquela observável nos comportamentos por vezes descritos pela psiquiatria.
Aqui é preciso introduzir um parêntesis, em que possamos distinguir nossa hipótese sobre a psicose como um ajustamento da noção psiquiátrica de psicose. Afinal, de um modo geral, a psiquiatria se ocupa mais do malogro de nossas tentativas de elaboração social daquilo que em nós não se retém ou se articula espontaneamente; e menos de nosso esforço para estabelecer um ajustamento capaz de preencher ou articular, junto aos dados na fronteira de contato, o fundo (id) que deveria poder se repetir. Por outras palavras: a psiquiatria não descreve aquilo que, aqui, estamos chamando de ajustamento psicótico propriamente dito, mas a falência social dele. Exceção para a psiquiatria fenomenológica.D e um modo geral, podemos dizer que os psiquiatras fenomenólogos , assim como Jacques Lacan (em seus muitos trabalhos dedicados a pensar a psicose ), preocupam-se em fazer a distinção entre: i) a psicose enquanto um modo de funcionamento ou estrutura e ii) a psicose como um fenômeno propriamente patológico, o que significa dizer, como um quadro em que os envolvidos perdem a capacidade para administrar o próprio estado psíquico. Na esteira deles, insistimos na importância de não confundirmos o “surto” psicótico com o “ajustamento” psicótico, tal como o estamos propondo. O surto psicótico consiste no estado aflitivo que acomete aqueles que não encontram, nos diversos laços sociais dos quais participam, condições para estabelecer ajustamentos psicóticos. Os ajustamentos psicóticos, a sua vez, são tentativas socialmente integradas de organização do fundo de excitamentos espontâneos.
Uma alternativa que estamos ainda avaliando e que poderia contribuir para a melhor distinção entre o “surto” e o “ajustamento” psicótico talvez fosse utilizar uma nova nomenclatura para designar os ajustamentos psicóticos. Nesse sentido, estamos sugerindo o emprego da expressão “ajustamento de busca” como um termo equivalente à noção de ajustamento psicótico. Busca significaria aqui o trabalho criador de alucinação, delírio ou identificação de um fundo que está ausente, falhado ou desarticulado. O ajustamento de busca, nesse sentido, seria diferente do ajustamento de fuga (que é o ajustamento neurótico e no qual tudo se passaria como se algo devesse ser evitado, um excitamento devesse ser omitido, muito embora a “forma de evitação” ela mesma permanecesse ignorada). A desvantagem na utilização dessa nova nomenclatura repousaria no fato de ela afastar o gestalt-terapeuta de uma tradição multidisciplinar que emprega o termo psicose para designar não apenas o surto, mas certa estrutura ou psicodinâmica específica, se comparada à psicodinâmica neurótica. Por ora, no contexto desta apresentação, vamos manter a terminologia “ajustamento psicótico”. Em futuro próximo, almejamos abrir mão desses termos carregados de conotação patológica (como são os termos psicose e neurose, por exemplo) em proveito de uma terminologia mais afinada com a maneira como os fundadores da Gestalt-terapia consideram a neurose e a psicose, precisamente, como ajustamentos. Nesse sentido, apostaremos nas expressões: ajustamentos de busca (para a psicose) e ajustamento de fuga (para a neurose).
Nesse sentido, quando se diz que, nos ajustamentos psicóticos, percebemos uma espécie de rigidez, tal não tem relação com aquelas respostas comportamentais aparentemente desorganizadas, com os quais, na maioria das vezes, costumamos caracterizar a psicose como uma sorte de “doença”. A rigidez tem antes relação com a “repetição” das tentativas de preenchimento e articulação daquilo que, espontaneamente, não se organiza em alguns momentos de nossa vida, a saber, nosso próprio desejo, nossos próprios excitamentos.
Razão pela qual, por mais rígidos que sejam, os ajustamentos psicóticos são verdadeiros trabalhos de criação na fronteira de contato. Não se trata de doenças, mas de ajustamentos criadores, para usar a letra de Jean-Marie Robine . São formas de viver face às condições de campo em que a função de id se apresenta de maneira atípica. Nos ajustamentos psicóticos, o self inventa - junto aos dados na fronteira de contato - a história que ele não pode reter ou espontaneamente arranjar. Quando bem sucedida, essa invenção vem substituir os excitamentos que, diante do dado, i) ou não se apresentaram, ii) ou se apresentaram de modo falhado ou, ainda, iii) se apresentaram de modo desarticulado. Mas quem, então, é o agente dessa invenção criadora, que aqui estamos chamando de ajustamento psicótico?

3. Ações da função de ego nos ajustamentos psicóticos

O agente dessa invenção é o aspecto do self denominada de função de ego. A função de ego, entretanto, não opera do mesmo modo como ela operaria se tivesse a sua disposição um fundo espontaneamente articulado. Não se trata de encontrar, no dado, possibilidades de expansão do fundo de excitamentos disponível. Afinal, nos ajustamentos psicóticos, esse fundo não está disponível, ao menos como um todo organizado, como uma orientação intencional para a ação do ego. Ou, o que é a mesma coisa, nos ajustamentos psicóticos, a awareness sensorial está comprometida (ausente, falhada ou desarticulada) e, conseqüentemente, ela não se constitui como base, como motivo para a ação da função de ego junto aos dados na fronteira. Ao ego resta então operar de um modo diferente. Em vez de buscar, nos dados, possibilidades de expansão do excitamento (awareness sensorial), ele procura no dado (seja este o corpo próprio, o corpo de outrem, uma palavra ou uma coisa mundana) o excitamento que a função id ela própria não forneceu, ou forneceu a maior, como um elemento desarticulado. Tudo se passa como se o dado pudesse preencher aquilo que, espontaneamente, não se apresentou; ou, como se o dado pudesse dar um limite à angústia proveniente de múltiplos excitamentos que, por conta própria, não se distinguiram quanto a sua relevância ou emergência.
Até o presente momento, nossa pesquisa pôde identificar três tipos fundamentais de ação do ego nos ajustamentos psicóticos: os ajustamentos autistas, os ajustamentos de preenchimento alucinatório e os ajustamentos de articulação delirante e articulação identificatória.
Por ajustamentos autistas, entendemos aqueles comportamentos desprovidos de meta que pudesse ser reconhecida no laço social e, por meio dos quais, a função de ego tenta deter as demandas afetivas que o meio social lhe dirige, logrando assim um modo de satisfação totalmente alheio às expectativas abertas pelos demandantes. Nesses casos, aparentemente, a função id apresenta-se severamente comprometida. Nossa hipótese é de que tenha acontecido uma falha na operação de retenção de formas relativas às vivências primitivas de interação intercorporal da criança no meio. Por outras palavras, a intersubjetividade primária, nos termos da qual o infante inicia seu processo de constituição de uma identidade especular, não se deixa fixar como um fundo assimilado. Conseqüentemente, a criança não dispõe de um repertório de excitamentos com os quais pudesse lidar com a demanda social. Esse é o caso, por exemplo, dos quadros tradicionalmente descritos a partir dos critérios diagnósticos do Dr. Kanner. A função de ego é refratária aos apelos ou necessidades advindas dos semelhantes, razão pela qual sua ação parece acontecer sem meta, como se fosse acometida de uma desorientação. O isolamento, concretizado na forma de um mutismo, parece oferecer um tipo de satisfação sem objeto, sem corpo. Há, além desses quadros, aqueles classificados como síndrome de Asperger. Diferentemente dos primeiros, os segundos conseguem circular muito bem em determinados contextos produzidos de maneira simbólica. Ainda assim, nesses casos, o sofredor não consegue agregar, a essa produção cultural, um fundo emocional. Mesmo dispondo de um verbalismo, trata-se de um verbalismo abstrato que raramente é capaz de acompanhar as sutilezas do emprego cotidiano, como o emprego metafórico, por exemplo. De todo modo, podemos identificar uma forma metonímica de produzir ligações entre determinadas classes de abstração, onde se deixa verificar certa satisfação.
Nos ajustamentos de preenchimento alucinatório, a sua vez, a função de ego também está às voltas com a ausência de um vivido (co-dado) que não foi retido. Porém, diferentemente dos ajustamentos autistas, os vividos não retidos não dizem respeito às experiências intercorporais que constituem nossa intersubjetividade primária (a percepção do olhar, da voz, do gesto do semelhante e assim por diante). Dessa vez, o não retido tem relação com as vivências de contato instituídas pela linguagem, especificamente com as vivências culturais em que se procura deslocar, para o campo simbólico, os excitamentos primitivos originalmente vividos de maneira corporal. Por outras palavras, o que não se retém é o simbolismo na forma da qual transformamos em “valor” social o afeto, a agressividade, a curiosidade, enfim, toda ordem de experiência até então vivida como uma intersubjetividade primária, intercorporal. A função de ego, então, procura alucinar a palavra não retida, fazendo do corpo próprio e das coisas mundanas um corpo palavra, uma imagem palavra, uma voz palavra, tal como na caricatura que fazemos das pessoas ditas esquizofrênicas.
Nos ajustamentos psicóticos de articulação de fundo, o que se passa é possivelmente algo bem diferente do que acontece nos dois anteriores. Isso porque, conforme nossa hipótese acerca da gênese dos ajustamentos psicóticos, há retenção. O que significa dizer que as vivências de contato anteriormente estabelecidas foram assimiladas, fossem elas intercorporais ou culturais. Acontece, entretanto, que a falha agora repousa no processo de repetição desse fundo junto aos novos eventos de fronteira. Ou, mais precisamente, as vivências retidas não comparecem, junto ao novo dado, como um fundo de excitamento articulado, integrado entre si. É como se elas se apresentassem como fundos diferentes, havendo não apenas um fundo, mas muitos. Em decorrência dessa desarticulação, também aqui o sistema self não dispõe de uma orientação intencional espontânea (awareness sensorial), ao menos de uma orientação unificada. Conseqüentemente, a função de ego não sabe com qual fundo operar, a partir de qual parâmetro considerar o evento na fronteira de contato. Em decorrência disso, não se forma, para a função de ego, uma figura definida. A função de ego precisa antes se ocupar do fundo, articulá-lo, estabelecer para os muitos excitamentos uma organização que, espontaneamente eles não têm. A criação da função de ego nesses casos envolve pelo menos duas estratégias. A primeira consiste em alienar, por meio de associações e dissociações delirantes, os excitamentos junto aos dados disponíveis na fronteira de contato. Encontramos aqui as paranóias. A segunda estratégia consiste em eleger, na realidade, um dado com o qual a função de ego possa se identificar, de sorte a poder assumir todos os excitamentos co-presentes (caso em que temos a mania), ou se desviar de todos eles, por se haver identificado a algo morto (caso em que temos a depressão).
Não temos agora tempo para aprofundar a discussão sobre esses tipos de ajustamentos, especialmente sobre a maneira como eles se configuram na clínica e sobre as possíveis estratégias de manejo que desenvolvemos. Tais temáticas estão publicados em uma revista eletrônica brasileira de Gestalt-terapia, que se chama IGT na Rede, editada por Marcelo Pinheiro. Daremos continuidade a nossa exposição com breves comentários sobre a condição dos clínicos que se ocupam de acompanhar ajustamentos psicóticos.

4. O clínico como acompanhante solitário

No trabalho clínico com consulentes que, por vezes ou na maioria delas, se ajustam psicoticamente (ou no modo da busca), os clínicos raramente identificam as categorias com as quais, no artigo supra, procuramos caracterizar as diferentes ações da função de ego (isolar-se do meio social no caso dos ajustamentos autistas, preencher o fundo de maneira alucinatória no caso dos ajustamentos de preenchimento, articular o fundo de maneira delirante ou identificatória no caso dos ajustamentos de articulação). Os ajustamentos psicóticos, na maioria das vezes, são muito sutis e, sobretudo, não dirigem ao clínico uma demanda que os denunciasse, como no caso dos ajustamentos neuróticos. Nestes, os consulentes freqüentemente reclamam do clínico que este lide com a ansiedade advinda os excitamentos que os próprios consulentes inibiram de maneira inconsciente. Nesse sentido, demandam ao clínico: seja meu modelo (confluência); seja minha lei (introjeção); seja meu réu (projeção); seja meu algoz, talvez, meu cuidador (retroflexão); seja meu fã (egotismo) e assim por diante . Nos ajustamentos psicóticos, a sua vez, os consulentes não demandam nada. Quando muito, “fazem uso” da imagem, das ações e das palavras do clínico, servindo-se delas para preencher ou articular algo que, de forma alguma, é uma tentativa de manipulação ou dissimulação. Os consulentes, quando se ajustam psicoticamente, estão tentando compreender algo que se passa com eles; o que é diferente de quando se ajustam neuroticamente, ocasião em que procuram fugir daquilo que estão sentindo (como ansiedade advinda do excitamento inibido). Por isso, nos ajustamentos psicóticos, o clínico quase não tem lugar. O que não apenas dificulta qualquer tentativa de classificação que o clínico nesse momento tentasse fazer, quanto também desencadeia, nesse mesmo clínico, um insuportável estado de angústia. Afinal, o clínico fica sem saber o que se passa e sem saber o que dele se quer. O clínico sente-se um acompanhante solitário.
A experiência clínica nos ensinou essa dura lição: somente quando alcançamos este estado de profunda insegurança e angústia ante os ajustamentos produzidos pelos nossos consulentes é que nos tornamos aptos a participar do esforço que estejam empreendendo para se ajustar. É fato que, depois de tanto tempo de acompanhamento e reflexão, nossa ação parece estar instruída por um fundo de pensamentos já estabelecido – e que este pequeno texto tenta tornar público. Mas a intervenção é mais intuitiva do que planejada; e consiste em ocupar um lugar de secretário, de auxiliar nas ações que a função de ego no consulente esteja desempenhando, sejam elas autistas, alucinatórias, delirantes ou identificatórias. Afinal, não conseguimos compreender o que o consulente elabora, onde ele quer chegar, o que ele está omitindo ou procurando. Ele não dá sinais disso, não percebemos nele traços ansiogênicos, os quais denunciariam para nós a presença de uma inibição inconsciente. Ao contrário, nos momentos em que se ajusta psicoticamente, o consulente age como se tivesse uma certeza impenetrável: a de que só ele pode dar conta da dúvida que o abate. Tentar afrontar essa condição ou roubar do consulente o lugar de protagonista redundaria no fracasso da terapia; ocasionalmente, num pequeno surto.
Respeitar esse limite e, ao mesmo tempo, se fazer disponível para secretariar o ajustamento que, naquele momento, estiver acontecendo é algo muito difícil de fazer. Implica, para o clínico, a suspensão das próprias expectativas. Em alguma medida, temos de ter a coragem de confiar nos consulentes e nos deixar levar para onde eles quiserem nos levar – desde que isso não implique a aniquilação dos laços de inclusão social. Mas não apenas isso. Precisamos compreender que o nosso limite, o limite que impomos aos nossos consulentes é um parâmetro de extrema relevância para que eles possam se certificar do êxito de seus ajustamentos. Nossa pontuação do término da sessão, a denúncia de nossa própria ignorância para acompanhar o delírio que estejam produzindo ou a declaração de nosso mal-estar frente ao contato físico muito intenso que procuram às vezes estabelecer: tudo isso ajuda os consulentes a se organizarem em seus ajustamentos, seja porque podem então compreender a finitude das solicitações que dirigimos a eles, seja porque podem enfim compreender que estamos acompanhando o que eles estão fazendo. De um modo geral, podemos dizer que a melhor intervenção em ajustamentos psicóticos é aquela em que o clínico aprende, alucina, delira e se identifica junto com seu consulente, de modo a poder estabelecer, “de dentro”, o limite do ajustamento que estiver acontecendo.

5. Considerações finais

Com o presente trabalho, quisemos apresentar uma hipótese que ampliasse as formulações lacunares com as quais os fundadores da Gestalt-terapia se referiram às psicoses. Dessa forma, pretendíamos submeter às críticas da comunidade de gestalt-terapeutas uma elaboração que tivesse efeito em nossas clínicas. E, segundo tal elaboração, poderíamos entender que a psicose é, por um lado, o comprometimento da função id ou, o que é a mesma coisa, da capacidade do sistema self para espontaneamente articular, quando não para disponibilizar, um fundo de co-dados (ou excitamentos). Mas, por outro, a psicose é um ajustamento. Trata-se da efetiva capacidade da função de ego para aprender, preencher e articular seu próprio fundo, de modo a poder operar fluidamente com os dados na fronteira de contato. Cada uma dessas atividades da função de ego (aprender, preencher e articular) caracteriza um tipo de ajustamento (autista, de preenchimento ou de articulação), o qual sempre depende do laço social para poder se efetivar. O surto, a sua vez, é o malogro social desses ajustamentos e a conseqüente emergência de um estado aflitivo, no qual o sistema self não encontra força para operar com os dados e com os próprios excitamentos, caso eles se apresentem. A função do terapeuta é assegurar direito de cidadania aos ajustamentos psicóticos produzidos pelos consulentes – estejam estes ou não em surto. Para tanto, os terapeutas devem poder promover o deslocamento seguro dos ajustamentos com menor poder de contratualidade para ajustamentos com maior aceitação social; o que de forma alguma se confunde com a eliminação dos ajustamentos psicóticos em proveito de um padrão de comportamento adaptado, freqüentemente neurótico. Trata-se, ao contrário, de apoiar o consulente para que este possa fazer valer seu modo de vida, seus ajustamentos psicóticos nos contextos nos quais se insere. O que, em última instância, também ilustra o caráter “político” do trabalho de acompanhamento terapêutico de pessoas que se ajustam psicoticamente.

Referências

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